José Saramago e Jorge Amado. A arte da amizade
Por Pedro Fernandes
A coisa mais
bonita de ressaltar na relação entre os homens é uma amizade – seja qual for
seu nível. Não falo sobre a amizade por puro e gratuito interesse, que essas
são súcubas, mormente daninhas, porque em parte estão alimentadas por um
sentimento muito doentio chamado inveja. Também não é o caso de a inveja ser
estritamente danosa. Não é isto. Como todos os sentimentos têm dupla face e são
fundamentais para o equilíbrio das pulsões do mundo, este é sumamente necessário
porque é uma força motriz ao ser e ao fazer dos indivíduos. Tanto é verdade
isso que as obras literárias são, desde sempre, para citar um exemplo, produtos
de uma inveja. Qual escritor não traz consigo uma certa ponta de frustração
quando descobre uma obra sublime e depois de constatar “ah, como eu gostava de
haver escrito isso” se vê motivado a “eu posso escrever algo como ou melhor que
isso”? Se é verdade que assim não se sente faltam-lhe algumas necessidades
indispensáveis ao gênio criador como o conhecimento da tradição e dos seus contemporâneos
e a motivação para a construção de uma obra de relevância entre as criações
humanas.
A amizade
tem algo de amor. Do mais puro, porque não envolve os interesses do corpo. É coisa
espiritual. Portanto, da mais fina condição. É uma relação custosamente fabricada
na urdidura do tempo. Despida de vilania, aberta aos afetos e aos gestos sem
desmesura. Nasce quase como obra do acaso, como se o encontro entre pessoas
fosse uma dádiva sobre a qual, como noutras condições sublimes da existência (a
fé, a poesia e o gozo), não resulta uma explicação linearmente desenhada pelo
traço duro da razão. Amizades assim, embora não possam se medir em estatísticas,
quando e quanto existiram, se para mais ou para menos, são intuitivamente muito
raras. Mas não impossíveis. Todos nós,
bons ou maus, devemos ter, suspeito, alguém capaz de nos estar perto mesmo
quando está longe, de nos ajudar mesmo quando não tem qualquer possibilidade,
porque às vezes uma só palavra, um só afeto fala e vale mais que qualquer outro
gesto por mais caro e sofisticado que o seja. Há um ditado popular repetido
pelos meus avós e com alguma frequência por meus pais e alguns próximos a mim
que diz “pode-se não ter nada, mas se, se tem amigos, não nos falta nada”. Para
o bem e mal. A amizade é a coisa – se assim posso enumerá-la objetivamente –
mais preciosa da vida.
Dentre os
laços de afeto que sustentam a amizade, a camaradagem é o mais importante. É
porque nela reside uma certa cumplicidade, um certo zelo, e uma maneira de se tratar
que estão muito próximos de designar claramente aquilo que denominamos
humanidade e que nos colocam numa relação melhor na natureza. Ou pelo menos nos
devia. É a camaradagem que nos faz melhor suportar a dor de existir – e os casos
mais extremos em que isso pode ser percebido são aqueles em que predominam a
usura e o que há mais ruim de nossa espécie. Penso aqui nos contextos extremos,
de um front ou de censura e de perseguição
– se nos faltasse camaradagem, possivelmente a muito que havíamos sucumbido à
barbárie que nos habita. Não é que a raça se faça apenas de maus; é que somos –
para voltar novamente à compreensão de que os sentimentos são como Jano –
formados em parte de uma massa de ruindade e outra de bondades e os bons
rareiam porque estão há muito mais sossegados que inquietos frete à ordem que
nos domina e esta, infelizmente, mesmo nos processos genuinamente democráticos
(porque escolhidos entre os da mesma comunidade), sempre tratam de isolar-se em
torno de seus próprios umbigos. Naturalmente somos tendenciosos para a
individualidade. E, não fosse isso uma verdade, esse sistema cruel que nos
domina e que a cada dia reinventa outras maneiras mais sutis e logo mais cruéis
de submissão não alcançaria a validade com que tem se assumido desde suas
formas mais primitivas.
O leitor que
cruzou ou cruzará com o livro de correspondências entre José Saramago e Jorge
Amado, Com o mar por meio, organizado
por Paloma Jorge Amado, Bete Capinan e Ricardo Viel, logo percebeu ou perceberá,
que tudo o que disse acima trata-se de uma percepção sobre a amizade construída
a partir da leitura dessa troca de palavras. Até a chegada pública desse
material através desta edição a única coisa que sabíamos da relação entre os
dois escritores, que começou tardia, foi breve mas intensa, eram as menções do
português nos seus diários. A ocasião me permite recomendar um texto esclarecedor,
construído da acurada leitura comparada a partir dessas passagens dos Cadernos de Lanzarote entre a relação de continuidade entre as percepções e sentimentos sobre a realidade
histórica, política, social e literária entre José Saramago e o escritor
brasileiro – no caso deste, a partir do seu livro autobiográfico Navegação de cabotagem. Refiro-me ao
ensaio “Querido diário...” da saudosa Professora Lílian Lopondo publicado na
primeira edição da Revista de Estudos
Saramaguianos, que organizei (e organizo, a revista é publicada todo semestre) numa parceria – eis outro exemplo de camaradagem
– com Professor Miguel Koleff. Uma das edições da revista Blimunda, periódico conduzido pela Fundação José Saramago, também
dedicou a de n. 3, publicada em agosto de 2012, no ano quando se celebrava o centenário
de Jorge Amado, a explorar essa proximidade. Em Lisboa, nas ocasiões de quando
estive na sede da Fundação, para citar outro exemplo de aproximação a união dos
dois, é possível encontrar elementos da amizade reunidos numa exposição que
também assinalava o centenário do brasileiro. Além das ocasiões nos Cadernos, e aqui sublinho a bela ocasião de quando a voz de Pilar
del Río, companheira de Saramago, irrompe à estrutura do diário dele para falar
sobre a estadia dos dois na Bahia (está no volume 4), as fotografias sempre recorrentes
na web de quando Saramago esteve nessa
visita a Salvador, gesto que culminou numa das ocasiões de coroação dessa reciprocidade.
Mas as correspondências
cumprem outras funções mais determinantes que estas. Elas nos tiram o véu da
intimidade e só sem ele é possível estabelecer a compreensão clara dessa
relação e dos sentidos que envolveria os dois escritores, “dois grandes nomes
da língua portuguesa, que se queriam bem, que de tudo conversavam e que marcaram
o século XX com seus talentos”, recuperando a voz do texto de introdução a Com o mar por meio escrito por Paloma
Jorge Amado. É quando é possível entrever a estreita cumplicidade de
pensamentos mas também de companheirismo, admiração, sinceridade e, camaradagem,
assumida entre essas duas personagens.
Além disso, angariamos outras compreensões
sobre os sentidos que dão fôlego a amizade entre um e outro: no caso dos dois,
por exemplo, nos despimos da ideia de amizade intelectual, no sentido do colóquio
literário, porque vemos que não se encontraram para falar sobre obras
literárias, gestos de escrita (o que poderá desapontar alguns, sobretudo
aqueles curiosos pelos segredos de trabalho dos escritores). Encontramos os
dois a falar sobre as inquietações que os moviam: os grupos de intervenção, as
posições ante a realidade, os gostos, as possibilidades dos encontros, os desencontros,
os compromissos, as atividades corriqueiras, e, claro as preocupações em torno do
Prêmio Nobel de Literatura – sempre ansiado por Jorge Amado,
embora este tenha construído probabilidades (e estava certo) de quem ganharia
seria o amigo ou um escritor em língua portuguesa.
Também se revelam algumas
nuances do contexto habitado por essas duas figuras, sobretudo do nosso lado, o
suficiente para percebermos quantas esperanças se esfumaçaram e o quanto ainda
somos os mesmos. No Twitter eu escrevi, enquanto acabava de ler uma das cartas
de Jorge: “As notícias de mais aperto no cerco da censura no Brasil chegam-me
justo quando atravessei essa passagem nas cartas entre Jorge Amado e José
Saramago. Sublinho “Aqui o sufoco é grande, problemas imensos, atraso político
inacreditável, a vida do povo dá pena, um horror”. A carta é de 20 de abril de
1993. No ano seguinte, depois da eleição de Fernando Henrique Cardoso para
presidente da república no Brasil, Saramago suspeita que Jorge Amado tenha escolhido
o tucano e emenda: “Ainda que não possa deixar de pensar que os males do Brasil
não se curam com um presidente da República, por muito democrata e honesto que
seja. E tu bem sabes, melhor do que eu, que a democracia política pode ser facilmente
um continente sem conteúdo, uma aparência com pouquíssima substância dentro.
Quanto à honestidade, Fernando Henrique Cardoso tem uma tarefa gigantesca à sua
frente: fazer com que os maus políticos brasileiros não só passem a parecer
honestos como o sejam realmente”. Apesar de Jorge Amado ignorar totalmente o
tópico nas cartas seguintes, obcecado que estava com o Prêmio Nobel, o fim da
história, nós, os brasileiros, já sabemos: Fernando Henrique Cardoso manteve a
aparência de honestidade e praticou abertamente toda sorte de subterfúgios para
abafar as situações que só agora, duas décadas depois foram prescritas e as que
não foram, tornam novamente abafadas num claro retorno à manutenção de uma casta
que pousa de honesta, mas se mantém no poder instalada como uma quadrilha especializada no mando e no roubo. E a constatação de Jorge Amado na carta de 1993 parece
que foi escrita olhando para agora. No Brasil, o tempo não passou.
As cartas,
nessa tarefa de remover o véu sobre certas intimidades dos escritores, lançam
luz sobre aquilo já tratado nos Cadernos.
Um exemplo, ainda na seara dos interesses pelo prêmio de maior prestígio nas
letras, o leitor dos diários sabia de uma conversa entre Jorge Amado e José
Saramago que trazia a notícia suposta de um jornalista recebida pelo brasileiro
de que António Lobo Antunes seria o ganhador do Prêmio Nobel de 1994 (a entrada
de Saramago foi no dia 21 de setembro desse ano e está no segundo volume dos Cadernos de Lanzarote). A antologia de cartas
traz a correspondência motivo da entrada nos diários, do mesmo dia: “Aliás, por
falar em Estocolmo, um telefonema de Nova York ontem me fez saber que o próximo
prêmio Nobel será o escritor português Lobo Antunes”. A passagem recuperada nos
diários é acrescida daquela intriga que tem alimentado e dado sustento aos
leitores mais incultos dos dois escritores portugueses que foram tornado rivais
no cenário das letras portuguesas. “Quanto a mim, de Lobo Antunes, só posso dizer
isto: é verdade que não o aprecio como escritor, mas o pior de tudo é não poder
respeitá-lo como pessoa. Como não há mal que um bem não traga, ficarei eu, se
se confirmar o vaticínio do jornalista, com o alívio de não ter de pensar mais
no Nobel até ao fim da vida”. Jorge Amado continuava a acreditar no Nobel para
um português – “aposto noutro romancista, também português”, finda a carta. Sobre
este assunto, António Lobo Antunes, não se faz mais nenhuma menção entre os
dois.
O burburinho em torno do galardão, entretanto, irá perdurar. Até a uma das últimas cartas a Jorge Amado, datada de 9 de outubro de 1997, o assunto é colocado
em pauta: “Querido Jorge, não há nada a fazer, eles não gostam de nós, não
gostam da língua portuguesa (que deve parecer-lhes sueca...) não gostam das
literaturas que em português se pensam, sentem e escrevem. Não têm metro que chegue
para medir a estatura de um escritor chamado Jorge Amado, para não falar de
outros bastante mais pequenos, no número dos quais a voz pública insiste em pôr-me.
Temos de aprender a nada esperar de Estocolmo por muito que nos venham cantar
loas ao ouvido. A experiência de injustiça a que tens estado sujeito durante
anos e anos deve levar-te, imagino, a encolher os ombros diante destas contínuas
provocações suecas. Mas aqueles que, como eu, veem, em ti nada mais nada menos
que o Brasil feito de literatura, esses indignam-se com a já irremediável falta
de sensibilidade e de respeito dos nórdicos”. Noutra carta, próxima à primeira
que citei acima José Saramago encerra dizendo que “há anos que o Lobo Antunes
andava por aí a dizer (em entrevistas, em colóquios, em toda parte) que o seu
objetivo era o Nobel” (de 25 de setembro de 1994, o ano que mais angustia os
dois escritores sobre o tema, uma vez que é um assunto que volta em todas as cartas).
Pelo visto, se publicamente Jorge Amado disfarçava a angústia de não ser um dos
galardoados, algo que segundo Saramago era notório em Lobo Antunes, era o brasileiro
quem padecia do desejo de escrever para o Nobel, condição que nos bastidores se
mostra ter se tornado uma perseguição de si para si, algo que Saramago, bem
mais despojado de interesses e de expectativas, pareceu não alimentar com uma
obsessão. Em 1998, o escritor português recebeu o prêmio e Jorge Amado morreu
feliz pela conquista. Este é um gesto, aliás, que alinhava o valor de uma
amizade verdadeira: ficar feliz pela alegria do outro, sentindo como se fosse
sua.
Com o mar por meio, título que é um recorte
de um fax de José Saramago e Pilar aos amigos Jorge Amado e Zélia Gattai
(aliás, grande parte dessa conversa é realizada de forma coletiva entre as duas
famílias), é um privilégio de colocar seus leitores como participantes num colóquio
do qual, se antes não se podia participar porque estava marcado pela distância
que naturalmente governa as relações, agora só podemos participar pela força da
palavra escrita, este gesto que ilumina e nos permite pela capacidade fictiva a
qual todos somos dotados de fabular os espíritos, as preocupações, os gestos, os
gostos, as opiniões, as idas e vindas, os sentidos, os volteios do pensamento, de
um de outro. O livro de correspondências é de uma certa maneira um romance pelo
qual o leitor em trânsito entre o que se diz e o que se responde, o que se
mostra e o que se silencia, pode construir pela sua percepção imaginativa a
vida e as ações de suas personagens. É, portanto, uma narrativa das mais
democráticas.
E, no caso
dessas missivas entre Saramago e Jorge Amado, reitero, se comprovam aquelas características
que discorri sobre os verdadeiros valores da amizade – um acontecimento raro e,
no tempo turbulência pelo qual passamos, assinalado pelo levante das hegemonias
do ódio gratuito e do fundamentalismo – são um bálsamo. Quisera habitar um país
de tão sincera cumplicidade entre os homens como foi este país sem fronteiras
inaugurado pelos dois!
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