Esculpindo o tempo nas recorrências da existência
Por Rafael Kafka
Frame de O sacrifício, de Andrei Tarkovsky |
De 2014 para cá, comecei a me
interessar mais por questões ligadas ao estilo das obras. A presença desta ou
daquela figura de linguagem, o uso de frases mais secas ou adjetivadas, a
construção de um enredo linear ou alinear, os parágrafos longos ou curtos e
outros recursos me chamaram a atenção em especial nas obras autobiográficas por
indicarem marcas dos autores responsáveis pela produção do texto. Sinto que
desenvolvi desde então uma forma de perceber o autor a partir de seu estilo
dentro da obra, algo que pode soar óbvio para muitos leitores mais experientes,
mas que para mim revela a profunda dimensão existencial da leitura.
Esse efeito se tornou ainda mais
interessante para mim após ler obras de autores consagrados que decidiram em um
lapso de emoção se transformarem em obra. Nesse sentido, os diários de Saramago
lidos por mim recentemente muito revelam de uma dimensão poética que se
expressa na forma de absurdo de cegos em epidemia ou de jangadas de pedra, mas
falando com a mesma bonomia irônica dos cachorros adotados por ele e por Pilar.
A experiência de leitura se
ampliou ainda mais quando comecei a ler obras de cineastas com forte verve
literária. O primeiro foi Tarkovsky, cujo Esculpindo
o tempo me fez entender melhor como o tempo é a ferramenta base de
construção da sétima arte. Por meio dos cortes e enquadramentos, o que o
diretor assume é a tarefa de controlar o tempo para passar uma mensagem, em
sentido não didático, por meio da obra de arte. Depois li Glauber Rocha, que
com uma verve modernista muito interessante mostra como o Cinema Novo entendeu
bem que nem só de bons princípios artísticos vive o ser humano: em A revolução do Cinema Novo, um de nossos
maiores cineastas revela que além do tempo é o olhar inquieto que caracteriza o
fazer cinematográfico, com ele se dirigindo para as mazelas sociais sem o ar
viciado das grandes obras hollywoodianas.
Em ambas as obras, os autores
deixaram claro ao lado de aspectos teóricos questões de estilo que são marcas
profundas de seu ser. A agressividade de Glauber e a sutileza de Tarkovsky
estão em seu fazer literário que mesmo assumindo uma postura metalinguagem
acaba rompendo esse simples pragmatismo, gerando obras de grande profundidade. A
arte se mostra como um discurso o qual por meio da técnica o sujeito se coloca
aquém e além da simples linguagem referencial, pois se utiliza da metáfora,
figura de linguagem que por si só é marcada pela amplitude do sentido usual dos
signos linguísticos.
Ler Bergman me fez entender
perfeitamente o que é esse estilo como revelação do ser e mais uma vez a
experiência se plenificou após outra leitura: as entrevistas de Woody Allen
para Eric Lax. Lanterna mágica e Conversas com Woody Allen são obras que
não se preocupam em fazer um panorama linear dos dois cineastas, mas sim
mostrar como ao longo do tempo as ocorrências e recorrências caracterizam o seu
trabalho em um plano profundamente ontológico.
Não à toa, Woody Allen que cita
Bergman em suas entrevistas com uma frequência incessante trabalhou com o mesmo
diretor de fotografia do diretor europeu, fez filmes como Interiores e A outra mulher
com clara alusão a seu maior ídolo e ainda tem uma resenha crítica como
prefácio da edição mais atual do livro biográfico do autor de Morangos Silvestres. Mesmo que por um
processo de escrita diferente, ambas as autobiografias mostram como os autores
moldaram, ou esculpiram o tempo, de formas muito particulares.
Woody é um produtor de comédias
bastante lineares em sua cronologia; porém em um gênero criado para representar
seres humanos ridículos, como diria Aristóteles, Allen consegue criar dimensões
existenciais únicas marcadas pelo absurdo e pela solidão. Em seus depoimentos,
o drama surge como um estilo por ele amado e tentado quando ele queria se
testar enquanto diretor. Não à toa, Matchpoint
é um de seus filmes cujo resultado mais o agradou. As entrevistas organizadas
por Lax possuem uma referência metalinguística muito forte em relação ao texto
de Bergman, pois diante de nós temos Woody em diversas idades falando de temas
como testes de atores, níveis de atuação, problemas de orçamento, ideias,
direção, cortes e montagem e música. Se não nos atermos as datas, ficamos com a
impressão de estarmos diante do sujeito que não envelheceu e que se tornou
célebre pelo ar neurótico de seus personagens.
Lanterna mágica é um livro de autobiografia que não segue a lógica
linear tradicional. É puro trabalho de memória. Talvez o momento mais
cronologicamente preciso do texto inteiro seja o começo, no qual Bergman fala
de seu difícil nascimento. Mas o nascimento para Bergman é morte em potencial.
Desde o momento do parto, a criança teve de lidar com a fragilidade a qual
depois se mostraria um traço constante e com fortes elementos psicossomáticos
na vida do autor. Após esse começo, Bergman irá alternar sem pudor entre os
problemas técnicos do cinema e do teatro, o começo e o desenrolar da carreira,
a conturbada vida amorosa, o modo como aprendeu a lidar com os demônios
internos e a relação complicada com pais conservadores e religiosos, para os quais
ainda assim havia profunda ternura e amor.
Em seu livro, Bergman usa e
abusa de elementos presentes em seus filmes, como Morangos silvestres e Gritos
e sussurros. Nesses filmes, a ruptura da cronologia é elemento recorrente
para mostrar o poder da memória em ser um passado que se mistura ao presente,
revelando toda a dimensão existencial ser-aí. Mas não o assexual de Heidegger e
sim um sexualizado, com diversos problemas amorosos e carnais os quais se
interligam de forma concreta com existências perdidas no absurdo e no fluxo
temporal.
Se não é um livro sobre cinema,
com raras alusões a questões técnicas como os outros aqui citados, o cinema se
mostra na escrita da obra, a qual a todo instante mostra o mesmo discurso
suave, trágico, realista, preciso e desconstruído de Bergman. Diante de nós há
personagens bergmanianas falando com o mesmo tom pacato e cheio de verdades em
aparente calma usando a voz do próprio autor, o qual assim como seu maior
admirador, Allen, parece lidar com um constante fluxo de pensamento vendo no
cinema uma espécie de expressão dos dramas existenciais que geram descompressão
de ser.
Por isso, fica evidente na obra
de Bergman os traços existenciais os quais se tornariam traços estéticos
importantes em seus filmes e mais uma vez fica claro que o modo como produzimos
nosso discurso não é apenas uma questão de pragmática ou de retórica. Habitamos
o reino da linguagem diria Zizek citando Heidegger, fazendo desta objeto de
tortura por meio do qual buscamos nossa irreal realização. Bergman tortura a
linguagem esculpindo o tempo para mostrar como diferentes aspectos de sua
existência se combinam em presente e passado para a produção seus roteiros e
filmes. Bergman se mostra como síntese de luz e sombra, de belo e de trágico
mesmo em seu livro, quando revela as dores de estômago que durante muito tempo
o perseguiram e os escândalos com o fisco, causados provavelmente por algum
contador incompetente.
Mais interessante do que
discutir os bons méritos literários de um grande diretor é interessante
entendermos como as questões de estilo devem ser vistas, em especial do ponto
de vista metafórico, como elementos de ontologia. Assim, a escrita se revela
ainda mais como a ação por meio da qual o ser, usando da estética ou da
especulação, busca se definir plenamente e precisa lidar, como bem ilustram os
textos de Clarice Lispector, com a impossibilidade dessa concretude, seja
existencial ou artística.
Não à toa, Bergman, amante da
tragédia, ama filmes com finais belos, como se ali houvesse a redenção para a
existência absurda. A irmã que se nega morrer no quarto vermelho é ressuscitada
pela leitura de seu diário para falar do encontro no parque com as duas irmãs,
revelando uma dimensão existencial de felicidade profunda a ponto de superar
toda a dor de uma morte renitente; assim o idoso que volta aos seus tempos de
infância acha alguma esperança de ver a vida com os olhos belos no tempo
restante para ele quando volta para seu passado; assim Bergman encara seus pais
novamente e retira de seu conservadorismo o amor que influenciará profundamente
seu trabalho, não alimentando por eles ódio e apenas estupefação com o absurdo
da vida.
Ler Bergman e mesmo Woody Allen
em seu criativo pastiche produzido por Eric Lax são experiências
cinematográficas na forma de literatura, mostrando que no fundo, não importa a
mídia, o objetivo de todos nós é esculpir o tempo para nessa escultura nos
encontrarmos a nós mesmos brincando de ser algo além daquilo que somos.
***
Rafael Kafka é colunista no Letras in.verso e re.verso. Aqui, ele transita entre a crônica e a resenha crítica. Seu nome é na verdade o pseudônimo de Paulo Rafael Bezerra Cardoso, que escolheu um belo dia se dar um apelido que ganharia uma dimensão significativa em sua vida muito grande, devido à influência do mito literário dono de obras como A Metamorfose. Rafael é escritor desde os 17 anos (atualmente está na casa dos 24) e sempre escreveu poemas e contos, começando a explorar o universo das crônicas e resenhas em tom de crônicas desde 2011. O seu sonho é escrever um romance, porém ainda se sente cru demais para tanto. Trabalha em Belém, sua cidade natal, como professor de inglês e português, além de atuar como jornalista cultural e revisor de textos. É formado pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará em Letras com habilitação em Língua Portuguesa e começará em setembro a habilitação em Língua Inglesa pela Universidade Federal do Pará. Chama a si mesmo de um espírito vagabundo que ama trabalhar, paradoxo que se explica pela imensa paixão por aquilo que faz, mas também pelo grande amor pelas horas livres nas quais escreve, lê, joga, visita os amigos ou troca ideias sobre essa coisa chamada vida.
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