Cecília Meireles: transcendência, musicalidade e transparência
Por Neiva Dutra
Cecília Meireles em Ouro Preto. |
Mário de Andrade, referindo-se a Cecília
Meireles, disse que ela passou – não necessariamente incólume – pelas diversas
experiências do Modernismo, mas com uma resistência firme a qualquer tipo de
adesão passiva. Esta serenidade com que sua sensibilidade se moveu talvez
explique a sobrevivência do pós-romantismo (muito mais simbolista que
parnasiano) de sua poesia.
Esta poesia, que não se enquadra nos
movimentos literários pelos quais transcorreu, conserva o culto às abstrações e
à beleza incorpórea, uma profunda e refinada visão da vida, os efeitos musicais
e pictóricos da palavra. Propõe uma nova forma de espiritualidade, com um
desapego expresso na intuição de uma realidade que transcende o afastamento,
tendendo a enunciar sempre uma verdade que apenas pode ser expressada através
do que não é, inclinando-se a desestabilizar os mecanismos pelos quais se
compreende o sagrado.
Essa forma de arte poética, baseada
no desapego da superficialidade e no dizer o que se entrevê como transcendente
através de sugestões do que se pressente, mas não se conhece racionalmente,
define seu ofício de escritora que transita entre o poeta e o sujeito: está
sempre em uma atitude de busca do ser, colocando-se na imanência do mundo, mas
sempre em busca de transcendência.
Cecília vai além, tanto quanto é
possível no caminho que, da poesia, leva à música. Os pequenos versos frágeis,
transparentes, se confundem com a música de uma forma inexplicável, perfeita,
em uma gênese espontânea e simultânea de palavras e sons que dispensam uma
análise rigorosamente lógica.
Precisamente por essa leveza
musical, os versos de Cecília Meireles não rompem com o passado, não têm a
pretensão de propor nenhum deslumbramento, mantendo-se fiéis à sua
personalidade. Por ela passaram escolas e modismos pelos quais transitou com
elegância, em um tom sereno, sentimental, melancólico.
Por este caminho chega, autêntica
poetisa, à reinvenção da vida como a única possibilidade da vida. Esta mulher,
essencial e profundamente lírica, que cantou seus próprios sentimentos,
inventou um objetivismo que une uma arte fina e ponderada de narração objetiva
com um lirismo tão profundo que impressiona, como faz em Romanceiro da
Inconfidência, uma das obras mais grandiosas da poesia brasileira.
Cecília Meireles desfaz todos os
nós, criando uma lenda, uma leitura poética de um momento histórico, no qual se
alça um corpo poético extraordinário, tanto em qualidade e extensão como em
sensibilidade. Precisamente no Romanceiro da Inconfidência, articula
materiais épicos tradicionais revestindo-os de um espirito diverso para
redefinir o passado e negociar um espaço entre a tradição do canto épico e a
sensibilidade profunda que a caracteriza.
Em oitenta e cinco poemas evidencia
o forte impulso de resgatar a ira como sentimento transcendente, castigando as
crueldades e injustiças cometidas por Portugal contra Vila Rica. Essa ira,
porém, está presente nos poemas, mas ausente da conferência meta-textual –
sustenta a indignação da voz lírica e estabelece o tom de protesto político de
forma consciente e programática, com uma preocupação metalinguística
veementemente expressa.
Cuidadosamente, convida o leitor a
refletir. Não julga, mede o efeito de suas palavras para – como expressa em
Conferência proferida na Casa dos Contos, em Ouro Preto, em 20 de abril de 1955 – “narrar o que foi ouvido nestes ares de Minas, especialmente nesta Ouro
Preto, cheia de ressonâncias incansáveis – e apontar nessa interminável
confidência o que lhe dá eternidade, o que não é somente uma palavra ocasional,
local, circunstancial –, mas uma palavra de violenta seiva, atuante em qualquer
tempo, desde que interpretada, como ontem os oráculos e as sibilas”.
Neste exercício torna o poema eterno
não em suas razões, mas na evocação da liberdade cantada em tantos momentos,
sempre e quando...
[...] Liberdade – essa palavra,
que o sonho humano alimenta:
que não há ninguém que explique, e
ninguém que não entenda!
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