Arco de virar réu, de Antonio Cestaro
Por Pedro Fernandes
“Você vive
dentro de sua cabeça. Você não vive no mundo”. A afirmativa do narrador de Arco de virar réu contradiz sua própria
percepção de sujeito: antropólogo, uma de suas preocupações reside na compreensão
da estreita relação entre indivíduo e grupo. É preciso pontuar esses dois
extremos da narrativa no intuito de compreender o contraditório enquanto elo
enformante e estruturante da obra e esta perspectiva é igualmente elementar na
própria condição enquanto sujeito idiossincrático e parte de uma organização comunitária.
O entendimento acerca deste trânsito é fundamental para afirmar este romance de
Antonio Cestaro entre os melhores da literatura brasileira recente.
Tão logo o
leitor atravesse uma estância marcada por uma descrição que irá reverberar em
diversas outras passagens da narrativa, encontrará um narrador que se propõe
fazer um relato familiar considerando como ponto de partida a ocasião quando
este núcleo se vê em profunda crise – parte dela propiciada pela ausência do
pai, quem encontra, na tarefa de servir à construção da hidrelétrica de Itaipu,
a justificativa viável para colocar um ponto final ao casamento.
A
preocupação desse relato não reside no registro do comezinho familiar, nem é
uma tentativa de encontrar elementos de coesão que alinhem essa possível
história com os enunciados dispersos e desconexos pronunciados por um irmão
esquizofrênico. Ela encontra eco noutro interesse (o principal, se considerarmos
uma vez mais a formação desse narrador, antropólogo e interessado no comportamento
dos indivíduos em grupo); isto é, aparentemente, a tarefa do narrador é a de compreender
como o grupo familiar não sucumbe quando se é tomado por situações que o
primem, pela tônica do trágico, ao esfacelamento: a traição e a loucura.
Nesse
ínterim, é preciso considerar que o núcleo em questão participa de outro contexto
mais amplo de danação: os anos da ditadura militar, tempo de igual condição
esquizofrênica propiciada pela angústia e náusea advinda do aprisionamento,
físico e simbólico, dos indivíduos, em realidades pré-determinadas. Em estados
de exceção como o de então, a fantasia e o devaneio interior ou discurso
exterior, de face diversa, são as únicas possibilidades oferecidas como
atravessamentos contra a ordem dominante.
Situado num
terreno tão pantanoso – e aqui reside o valioso neste romance de Antonio Cestaro
– o discurso narrativo titubeia. Logo, o leitor se perceberá tragado pela
ilusão e pela desconfiança quando percebe o discurso do narrador infiltrando-se
das filigranas do discurso do irmão. Não tardará notar, entre as frequentes
entradas em territórios do onírico, que aí se misturam e encerram pelo menos
três dimensões, a de uma realidade fatual, marcada por episódios vividos, e as
das realidades psíquicas do narrador e do seu irmão.
O escritor
funde, então, três discursos: um de corte realista, que é o rememorar da
possível história de família, os outros dois de corte psicológico, um deles de
marcações poéticas. Há neste jogo uma tentativa de, a partir da fusão dessas
três linhas garantir a existência de uma quarta possibilidade: a de ajustar a
narrativa ao um não-lugar e reprovar o valor de reprodução e cópia atribuídos à
mimeses porque esta agora se mostra enquanto poiesis; isto é, criação. Criação
de uma realidade própria do romance ou que o considera enquanto uma das versões
possíveis dentre as diversas formas de realidade. É o próprio narrador quem,
noutro estágio, deixa escapar o exercício criativo patente em Arco de virar réu: “Aceitei a sugestão
do Juca Bala de não perder mais tempo no esforço de separar as experiências
reais das do imaginário e do onírico”.
Mas, não
finda aí. A natureza onírica desse narrador refere-se sempre ao tônus do canibalismo.
Uma metáfora proposital para sua condição (e, por conseguinte da condição do escritor),
o seu caráter antropofágico, o que se apropria, deglute e constrói novas possibilidades
de dizer a realidade. Por sua vez, os episódios dos sonhos que despertam uma
sorte de interesses do primo, assomam certo inconsciente coletivo
sedimentado em algures acessado nas condições de limiar: do próprio sonho, do
gozo, da fé e da poesia. “Sonhar é o ensejo para mergulharmos na natureza essencial
daquilo que seríamos se não fosse o pacote de regras que exigem desde o berço,
que sejamos o mais próximo daquilo a que fomos, por manipulação e interesses
alheios, destinados”, reflete o narrador.
O contato com
esses sedimentos pela via do sonho recupera o seu lugar histórico e original de
pertença ao buscar se compreender como o primitivo brasileiro e o faz se colocar
em diálogo com o selvagem e o irracional, uns dos estágios reprimido pelas
imposições contínuas da razão e do ideário de civilização. Nessa mesma posição
não deixa de denunciar as forças que subjugaram o silvícola sobrepondo a
dizimação pela morte. Isto é, ora se avista um discurso sobre o subsolo da
nossa história enquanto civilização e de nossa história enquanto país, ambas calcadas
pela barbárie, imperativo que domina as fantasias do narrador sobre a guerra e a
dizimação dos humanos por máquinas de lhe retirar a vida.
Nesta ocasião,
o discurso do narrador transita pelos lugares de relação entre o indivíduo e o
seu grupo para compreender o primeiro enquanto construção manejada pelas
imposições, explícitas ou não, da cultura e estas forjadas pela força do
indivíduo. Se voltarmos ao contexto das situações narradas, encontraremos outra
crítica, agora sobre os dispositivos de poder que se estabelecem enquanto forças
de controle e docilização dos corpos. A loucura, portanto, é única
possibilidade de ruptura total com as predeterminações e, logo, a saída lúcida,
por paradoxal que seja esta afirmativa, para um mundo onde as condições fogem
das determinações da razão. Ou seja, é de mundo duplamente desfigurado: pela
danação e pela convicção que mesmo assim está em plena normalidade.
Não é vazio,
portanto, o discurso do Pedro, quem sempre se manifesta através de sentenças de
corte poético em oposição às de corte prosaico. Exceto o gozo e a fé, Arco de virar réu expõe, além da loucura,
a poesia enquanto discurso que trapaceia, porque se situa dentro e fora das coisas,
a via tida como normal do mundo. É também o discurso, originalmente dotado da
possibilidade de ser múltiplo, capaz de subverter a força restritiva e árida do
poder. Novamente, é possível se reportar ao tecido narrativo do romance a fim
de corroborar com esta observação; depois de uma das últimas intervenções do
discurso de Pedro no enredo, assim anota o narrador: “Sentenças que, em essência,
discorriam pelo viés do confronto e pela expressão de um senso conspiratório
instrumentado por uma ideologia militar fecunda e distorcida na cabeça por
modelos, presumivelmente, de perfis autoritários”.
Uma constatação
de como somos toldados pelas aparências do visível e das impositivas do poder
reside no próprio trânsito de percepção entre o narrador e o irmão Pedro. O
narrador, essa instância que por mais que se apresente como instância da qual
não deve se fiar ainda assim nos toma pela mão e seduz com o que nos diz, tem a
Pedro como um súcubo de quem capta gestos e dizeres porque se mostra
interessado em construir uma unidade entre eles. Mas, logo, o leitor perceberá
que ele se presta ao mesmo papel para com o primo Juca, este, por sua vez, interessado
na compreensão da efervescência onírica. É quando a narrativa sinaliza para a dimensão
que a todo tempo o sustém.
A resposta à
pergunta será que o Pedro esquizofrênico é o tempo todo o próprio narrador se
dá por uma via de dupla mão e as duas, apesar de opostas, levam a um mesmo
lugar. Se considero Pedro uma projeção do narrador, então toda a narrativa é
igualmente uma projeção. Do contrário, isto é, o narrador é uma projeção de
Pedro, a narrativa é também possibilidade. Acontece que no primeiro caso as
situações serão reflexos e no segundo refrações. Num e noutro são formas
gestadas pela fabulação criativa. Rompe-se, então, os limites que determinam a certeza
sobre as coisas e a existência, fatual e possibilitada, se mostra enquanto contradição.
Tanto é que as situações narradas em Arco
de virar réu não se anulam.
O leitor conviverá
eternamente com o impasse entre o que seria noutra situação a verdadeira
identidade de Pedro e do narrador – esse que, no fim, já não é nem ele, nem
Pedro, mas um tal de J. Bristol, quem teria trabalhado, no trânsito das
fantasias, na composição do filme do Juca Bala. Se o relatado foi vivido ou
apenas fruto de elucubrações de um paciente esquizofrênico. Impasses que se
justificam naquela frase recuperada no início do texto: “Você vive dentro de
sua cabeça. Você não vive no mundo”. A sentença fará claro sentido em duas percepções:
na do esquizofrênico Pedro, o capaz de manejar realidades paralelas ao fatual e
na do narrador, ele próprio, enquanto categoria limite entre o interno e o
externo ao texto, uma projeção do escritor.
Nesse sentido, em que se alinham
loucura e criatividade sobra uma pergunta: por que, então, uma é descrita como
patologia e a outra como uma qualidade essencial ao criador? A única justificativa
talvez seja o caso de o louco viver integralmente suas ficções, ainda que possa
sair delas e obter lampejos dos que tentam controlá-lo por fora, e o escritor
vivê-las figuradamente. Aquele não teria controle sobre suas determinantes e
este entra e sai delas por conta própria. De modo que, a escrita, sobretudo a
ficcional, é uma alternativa às tais determinações. Por mais contraditório que
isso pareça, é a existência: um cabedal de contradições.
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