A relevância atual de Memórias do cárcere, de Graciliano Ramos

Por Maria Vaz



Graciliano Ramos dispensa apresentações – já foi alvo de muitos textos publicados pelo Letras in.verso e re.verso. Nessa medida, com este texto temos apenas a pretensão de furtar uma obra que assume carácter autobiográfico para, a partir daí, expor a sua relevância atual para o meio jurídico e artístico brasileiro na atualidade.

Em Memórias do cárcere o autor disserta sobre o azar existencial que o levou à prisão, motivado pela suposição de que estaria envolvido numa tentativa de golpe contra o governo autoritário de Vargas – episódio que ficou conhecido na história como Intentona Comunista. Contudo, a obra de Graciliano Ramos em questão é extensa, dividida em quatro volumes, e a sua publicação teve lugar apenas a título póstumo, sendo que o autor não chegou a terminar o último capítulo.

Em torno da publicação da obra em questão geraram-se muitos rumores de que poderia ter sido alvo de censura ou, por outras palavras, que houvera exigência de eufemismos ou suavizações daquilo que viveu para que pudesse ser publicada. Em relação a isso não há certezas: ficou no ar apenas a especulação normal de quem não compreende, atiçada pela curiosidade natural das pessoas em torno do autor e da sua vida privada, pelo que a publicação a título póstumo acabou por mistificar o seu significado. Independentemente dessa questão, o seu valor literário baseia-se na objetividade que o autor deu à estampa, sendo inequívoco.

Destarte, Graciliano Ramos deambula como ninguém sobre as suas memórias – na intensidade que demonstra a inteligência intrapessoal que, na minha opinião, se assume como uma marca de um escritor que cativa –, sem se deixar perder no seu subjetivismo, nos seus sentidos, na sua mundividência. Por esse motivo, olha para o ‘outro’ como seu semelhante, como pessoa que ali está nas mesmas condições de injustiça e opressão. Amplia, com isso, o grau de análise e observação para tentar compreender histórias que se cruzaram devido a quid comum, ainda que atado pelos nós da incerteza, da mera suposição ou de um sentido instintivo de ameaça ao poder instituído. Pelo facto de não se perder em si, amplia, ainda, a sua consciência sobre a realidade objetiva que o circunda, enquanto percorre o passado.

Graças a essa peculiaridade de Graciliano Ramos, o leitor consegue ter uma pequena noção daquilo que viveu: a liberdade era uma ameaça; a prisão preventiva uma medida de coação repressiva que, sem prazo nem fundamento, se convolava em pena de prisão efetiva não decretada em termos formais e sem prazo para ter fim; o processo era inexistente; a opinião ou ideologia contrária ao poder instituído era considerada uma espécie de crime de opinião que originava prisões justificadas por motivos estritamente políticos; a prisão mais não era do que um local de expurgação e segregação de opositores; e a busca da verdade na caça daqueles opositores era sacralizada ao ponto de valer tudo, como a tortura para obtenção de prova ou de delação; a sentença era verbal, partidária e arbitrária.

Por outro lado, Graciliano demonstra mais do que isso: percebe que foram parar ao cárcere não apenas os opositores do regime, mas também aqueles que eram vítimas de injustiça pela mesquinhez de terceiros.

Logo soube que se chamava José Inácio e era beato. Homem de religião, homem de fanatismo, desejando eliminar ateus, preso como inimigo da ordem. Contrassenso. Como diabo tinha ido ele parar ali? Vingança mesquinha de político da roça, denúncia absurda, provavelmente e ali estava embrulhado um eleitor recalcitrante, devoto bisonho do padre Cícero. Com certeza havia outros inocentes na multidão, de algumas centenas de pessoas.

O sentimento de injustiça que levara aquelas pessoas ao cárcere era misturado com novas histórias e acusações disseminadas na prisão para que se deixassem apoderar pelo medo e, sobretudo, pela desconfiança, tornando-se facilmente controláveis.

Como as informações se multiplicassem, tentei saber em que se baseavam. Nada de concreto: sugestões malévolas apenas. Indícios confusos encorpavam ali dentro, ganhavam relevo, mudavam-se em provas. Fora do mundo, aqueles espíritos caíam em forte impressionabilidade, gastavam as horas longas criando fantasmas ou admitindo, ingênuos, inventos alheios, as informações mais disparatadas. Só mais tarde percebi como embustes grosseiros nos enleiam no cárcere e esforcei-me com desespero por vencer o rebaixamento mental, a credulidade estúpida.”

Memórias do cárcere passou para o grande ecrã – numa dessas vezes em que a literatura serve de alavanca para a sétima arte –, tornando-se um filme de Nelson Pereira dos Santos, em 1984.

Passaram-se os tempos, ficou uma lição daquilo que não queremos ver repetido na história. Ficam notas do que ocorria por rotina, mesquinhez e eliminação de hipotética ameaça. No fundo, esta obra ilustra aquilo a que qualquer pessoa com opinião se encontra sujeita em climas de conflito de poder. Mas pelo facto de o demonstrar não significa que a situação de injustiça relatada tenha sido única na história, ou na história brasileira. Antes disso – na Inconfidência Mineira – encontramos alguns padrões semelhantes: o argumento de que uma opinião diferente em relação ao regime (na altura a monarquia portuguesa) é suscetível de ser subsumida em crime contra o Estado; a sacralização da verdade a permitir a tortura para efeitos de prova (de fundamentos de acusação) ou de delação para eliminação de ameaças; a utilização da prisão e, pior do que isso, da pena de morte, para aniquilar opositores (v.g., o caso de Tiradentes).

Evidentemente que no início do século XX a realidade brasileira era muito distinta da do século XVIII, designadamente em termos políticos ou culturas. Os intelectuais modernistas exerceram muita pressão política e conseguiram a libertação de Graciliano Ramos do Cárcere. Contudo, não podemos esquecer-nos de que o autor em questão era conhecido pelas pessoas em geral devido à sua visibilidade intelectual, na medida em que, além de escritor e jornalista, era político. Fica sempre a questão: o que terá acontecido a alguns homens comuns, desconhecidos do público, aqueles que foram lá parar não por opinião política ou ideologia, mas por mesquinhez humana?

O autoritarismo manteve-se e gerou situações de censura nas artes, mas gerou também uma elite capaz de driblar essa censura com base no carisma e em trocadilhos literários que deram esperança a algumas gerações. Uma constituição de 1988 nasceu baseada em princípios nobres, como a Dignidade da Pessoa Humana. Um Estado Democrático de Direito emergiu. O mito da cordialidade brasileira foi desmembrado e a cultura abriu-se a novas revoluções: as subculturas assumiram a sua diferença e resistência (pense-se, em termos musicais, no funk ou no samba). A liberdade floriu.

Não obstante, nestes últimos tempos, a instabilidade política voltou, os confrontos de poder também. A corrupção entranhou-se. A criminalidade proliferou. A necessidade de controlar aquela criminalidade levou à sobreposição e sacralização da segurança e à desconfiança da liberdade.  A insegurança levou ao medo de tudo, incluindo da própria polícia, que deveria prover a segurança: levou ao medo puro e à consequente tentativa de prever e afastar qualquer tipo de ameaça. Começaram a rotular-se as pessoas, a colocar-se etiquetas. O inimigo deixou de ser a pessoa do partido ou ideologia oposta, para ser qualquer desconhecido na rua. A imprevisibilidade do risco levou ao fanatismo na fé. O fanatismo da fé deveria ser uma opção individual e não uma forma de controlo coletivo de mentes fechado num dogma que não aceita abrir a mente além disso. Os inimigos aumentam: passaram a ser os do partido oposto; os rotulados como perigosos pelo clima de insegurança; os de religião diferente; e, mais grave, aqueles que não compreendemos nem queremos compreender, com base em puro preconceito. A visão ampla de uma mente livre de preconceitos morreu e passou a cingir-se a um pensamento binário: ou x ou y. O que vai além do rótulo abre a ferida da desconfiança e é rotulado como mau, ameaça, perigo ou loucura. O falso moralismo emergiu. Os discursos de ódio tomaram conta das conversas do dia-a-dia. De ódio e de combate a uma corrupção incontrolável. Os mass media tornaram-se uma forma de influência sobre a opinião pública e esse populismo constitui uma forma de influenciar a imparcialidade que se quer quando o que está em causa é a realização da justiça no que toca a um caso ou processo concreto.

Entretanto, a sacralização da segurança deixou um espacinho à sacralização da  ‘verdade’ – uma verdade que só atente a uma das partes –, passando a ser premiada a delação. E, no meio de tantos inimigos, preconceitos e rótulos, o que não é ‘normalzinho’ não é bom – uma exposição de arte queer fechou.

Por onde anda a Constituição de 88? Fará de novo sentido ouvir a letra de Chico Buarque quando, em trocadilho, escreveu (…) afasta de mim esse Cálice”? Ou será que a esperança prevalece e podemos dizer que “apesar de você/amanhã há-de ser/outro dia. Esperemos que histórias semelhantes à de Graciliano não se repitam pelos cárceres sobrelotados.

Despeço-me com Caetano.

Será que essa minha estúpida retórica

Terá que soar, terá que se ouvir
Por mais zil anos?


Enquanto os homens exercem seus podres poderes

Índios e padres e bichas, negros e mulheres
E adolescentes fazem o carnaval


Queria querer cantar afinado com Ellis

Silenciar em respeito ao seu transe, num êxtase
Ser indecente
Mas tudo é muito mau


Ou então cada paisano e cada capataz

Com sua burrice fará jorrar sangue demais
Nos pantanais, nas cidades, caatingas
E nos Gerais?


Será que apenas os hermetismos pascoais

Os tons, os mil tons, seus sons e seus dons geniais
Nos salvam, nos salvarão dessas trevas
E nada mais?


Enquanto os homens exercem seus podres poderes

Morrer e matar de fome, de raiva e de sede
São tantas vezes gestos naturais


Eu quero aproximar o meu cantar vagabundo

Daqueles que velam pela alegria do mundo
Indo mais fundo
Tins e bens e tais



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