A pedagogia em tempos de ódio
Por Rafael Kafka
Soube que o Movimento
Escola sem Partido ganhou na justiça o direito de anular o critério do ENEM na
correção das redações do certame o qual zera todas as composições que firam os Direitos Humanos. Com o choque, vi-me novamente com meus 17 anos tentando a
prova pela primeira vez e lendo os critérios da redação, que naquele ano tinha
o tema do poder transformador da leitura. Quando olhei a parte que falava da
redação não poder ferir os Direitos Humanos, tive uma reação de repulsa, nada
comparada a nenhuma das reações que hoje pululam nas redes sociais, mas ainda
assim muito curiosa para o meu eu de hoje.
Fui criado com muita influência
dos programas sensacionalistas, principalmente depois que a faixa de desenhos
do SBT, no começo da tarde, passou a ser trocada por novelas mexicanas das mais
insuportáveis, as quais levaram minha família a cultivarem programas com
jornalistas sem formação intelectual alguma pregando a limpeza da população
pobre sob a forma de jargões como “bandido bom, bandido morto”. Todo dia eu
ouvia um ataque contra o segmento dos Direitos Humanos e passei a imaginar esse
ramo do direito como um monte de caras que surgia do nada e atrapalhava a
polícia de fazer o seu trabalho no sentido de proteger a sociedade.
Quando li essa expressão na
prova do ENEM, pensei que estava diante de um empecilho forte no sentido de
tirar uma nota boa, pois teria de defender algo que me soava então muito
absurdo. Afinal, eu teria de defender bandidos se quisesse tirar uma nota boa.
Ao pegar a nota da redação, na qual eu pensava que tiraria uma nota próxima de
mil, vi uma nota extremamente baixa que cujos motivos levei anos para entender.
Naquele momento, provavelmente, eu pensei que tudo era culpa dos malditos Direitos Humanos, pois não consegui defender bandidos dentro de uma prova de
redação com o pomposo tema sobre o poder de transformação da leitura.
Logo eu, jovem cidadão de bem
pobre e falido que usava a literatura como válvula de escape tirar uma nota
daquelas era um desrespeito. Hoje em dia, provavelmente vociferaria sobre o
quanto a esquerda estava me cerceando, mesmo sem entender muito bem o que era
esquerda naquele período. Demorei anos a entender o que é esquerda e a me tornar
um cidadão à esquerda e demorei um período considerável também para entender
que eu na verdade não sabia o que eram os tais Direitos Humanos e muito menos
pegaria uma nota decente na prova de redação sem uma solução para um problema
apresentado, algo muito importante para um texto redacional desse certame.
Pois se eu falava do poder
transformador de leitura, havia ali também um problema implícito: o da falta de
acesso à leitura por muitos adultos e jovens. A minha proposta de intervenção
respeitando os Direitos Humanos poderia ser algo no caminho na defesa da
construção de maiores espaços de leitura, bem como na valorização dos
profissionais dessa área, assim como uma maior possibilidade de distribuição de
edições baratas de livros ao público mais humilde. Tais propostas respeitam os Direitos Humanos ao garantirem aos jovens e adultos o acesso à educação formal
e informal, bem como ao prazer do texto, algo tão negado às camadas mais
pobres.
Demorei muito tempo para
entender que direitos humanos são os direitos mais básicos que qualquer pessoa
pode e deve ter: comida, saneamento, água potável, moradia, escola, saúde e
arte. Direitos humanos quando representados pelos caras sensacionalistas da
televisão na verdade são uma metonímia, uma parte representante de um todo, um
má-fé descabida de quem está a serviço da guerra às drogas, por exemplo. “Defender bandidos” na verdade é a deturpação
de uma atividade que visa garantir a todos, inclusive a um condenado, os direitos
básicos mencionados acima, como condições humanas em espaços onde deve haver
ressocialização e não uma imitação de masmorras antigas feitas para
apodrecimento de pessoas.
Agora imaginemos um cenário não
tão difícil assim de ser imaginado: adolescentes e jovens querem entrar nas
universidades mais concorridas do país. Os seus hábitos de leitura são muito
limitados, quase sempre regidos por vídeos do Youtube ou textos rasos de redes
sociais. Sua escrita é pobre e eles vivem levando bomba em provas de redação na
escola e falham diversas vezes no Exame Nacional. Ao mesmo tempo, temos uma mídia
que é herança da ditadura militar no tocante ao discurso criminalizador da
esquerda brasileira e tudo o que há de errado no país se torna culpa da
esquerda. Por osmose, tudo o que soa como defesa social e coletivização, seja
de terras ou de representatividade, vira uma bandeira de esquerda – ou, pior,
uma bandeira comunista – entrando nesse bolo os Direitos Humanos. Esse jovem,
em especial se for homem de masculinidade bem frágil e afirmada a brados
histéricos com vocabulário chulo, provavelmente verá a prova do ENEM como um
grande antro de pensamento esquerdista quando na verdade ali há debates os
quais devem estar além e aquém de qualquer rótulo espectral político.
Lembremos que países comunistas
mataram judeus e homossexuais, bem como diversos países capitalistas o fazem
até hoje por meio de discursos conservadores que se propagam sem oposição forte
de governos tidos como liberais e laicos. Lembremos que grupos de esquerda,
como as FARC, cometem estupros e tortura, assim como os Estados terroristas que
enfrentam. Talvez eu seja acusado de relativismo nesse ponto, mas o que quero
afirmar é que direitos humanos são algo que não são de esquerda ou de direita.
Um pensador de esquerda pode defender um programa de renda mínima para garantir
ao pobre o mínimo necessário para ter o que comer e vestir, enquanto o de
direita pode ver nisso uma forma de aquecer o mercado e de gerar um novo
empreendimento: o bem social pode e deve ser visto por cada um dos espectros,
inclusive discutindo estratégias que quebrem a ortodoxia dos dois lados no
sentido de se criar um estado de coisas mais justo – pois sei que liberais de
verdade não culpa o Estado em si pelo que há de ruim e sim o corporativismo que
esmaga inclusive pequenas empresas.
Assim, o que ficou evidente em pensar
novamente em mim com meus 17 anos fazendo aquela prova é que a falta de
conhecimento de um conceito pode levar a muitos problemas sérios,
bárbaros. A crimes mesmo. De repente,
agora comecem a pulular nas redações jovens defendendo atrocidades terríveis,
os quais podem e devem ser denunciados a órgãos competentes. Mas mais do que
isso, o apoio que o Movimento Escola sem Partido – que sabemos muito bem ter
partido (s) – mostra como o desconhecimento de noções básicas de direitos
humanos está prejudicando a ordem social por meio do pensamento reacionário o
qual recrudesce a cada momento. Tal pensamento é formado por pessoas que sabem
do que estão falando, mas se aproveitam de seres que não têm noção da
profundidade dos debates e acabam, por medo, raiva, reproduzindo fascismo e
senso comum.
A pedagogia se mostra cada vez
mais necessária em nossos tempos. Os discursos provocadores na forma de arte e
esclarecedores na forma de visões objetivamente postas são uma meta constante
para quem busca, por meio da reflexão, a criação de um meio social menos hostil
ao debate e à diferença. A demonização da esquerda e de qualquer pauta que soe
de esquerda, quando deveria ser humanista, é culpa de um sistema educacional e
midiático o qual ainda reproduz muitos discursos vazios com o intuito de gerar
certezas prontas e temores. Somente com a desconstrução de conceitos tão
enraizados em nosso cotidiano é que absurdos como o de ontem e a repulsa
sentida por mim aos meus 17 anos, já um grande leitor, podem não ter tanta força
dentro de nosso modo de vida em sociedade.
***
Rafael Kafka é colunista no Letras in.verso e re.verso. Aqui, ele transita entre a crônica e a resenha crítica. Seu nome é na verdade o pseudônimo de Paulo Rafael Bezerra Cardoso, que escolheu um belo dia se dar um apelido que ganharia uma dimensão significativa em sua vida muito grande, devido à influência do mito literário dono de obras como A Metamorfose. Rafael é escritor desde os 17 anos (atualmente está na casa dos 24) e sempre escreveu poemas e contos, começando a explorar o universo das crônicas e resenhas em tom de crônicas desde 2011. O seu sonho é escrever um romance, porém ainda se sente cru demais para tanto. Trabalha em Belém, sua cidade natal, como professor de inglês e português, além de atuar como jornalista cultural e revisor de textos. É formado pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará em Letras com habilitação em Língua Portuguesa e começará em setembro a habilitação em Língua Inglesa pela Universidade Federal do Pará. Chama a si mesmo de um espírito vagabundo que ama trabalhar, paradoxo que se explica pela imensa paixão por aquilo que faz, mas também pelo grande amor pelas horas livres nas quais escreve, lê, joga, visita os amigos ou troca ideias sobre essa coisa chamada vida.
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