A noite da espera, de Milton Hatoum
Por Pedro Fernandes
A primeira
referência que saltará aos olhos do leitor diante o nome do protagonista do
romance de Milton Hatoum é a personagem de Iracema,
de José de Alencar. É possível que não haja quaisquer determinações propostas
pelo romancista, mas na tessitura textual, ou mesmo no nosso imaginário
literário, essa relação, tal como a dos irmãos Yakub e Halim que remetiam aos
irmãos Esaú e Jacó de Machado de Assis, não deve ser desprezada. No romance do
escritor cearense, que trata sobre a formação do ideal de nação no Brasil,
Martim refere-se à figura histórica do primeiro colonizador da colônia do Ceará
e significava a presença do colono português e suas tradições na constituição
desse ideal – do que muito mais tarde chamaremos de identidade.
É cedo para
apontar relações mais concretas entre a personagem de Milton Hatoum e a de José
Alencar. A noite da espera é o só o
primeiro dos três volumes de O lugar mais
sombrio. Este lugar mais sombrio, entretanto, é possível de identificar e
não está distante do lugar de Iracema:
é o próprio Brasil. Claro que esta constatação não se apresenta assim de forma
tão direta e clara, mas é constituída a partir, primeiro, das implicações do
espaço habitado por Martim no tempo da narrativa, um cubículo em Paris, onde
tenta escapar dos horrores da Ditadura no seu país natal; isto é, este espaço
mantém profunda relação com o espaço e o tempo recortado pelo narrador. Além
disso, não podemos deixar de notar, este romance é sobre Martim – sua tentativa
de compreender a condição para a qual foi arrastado – mas é, sobretudo, um
romance sobre o Brasil. Se o Martim de José de Alencar era apenas uma pequena
parte do Brasil, este, por sua vez, tal como a personagem clássica e além dela,
é metonímia do próprio país.
Enquanto
Martim tenta compreender sua condição, é a história do Brasil que se apresenta
não apenas como pano de fundo dos acontecimentos de ordem individual o que pouco
a pouco se revela, quer dizer, ao menos as várias perspectivas que cobrem uma
imagem multifacetada e por vezes deformada do país. Não apenas o ponto de vista
do protagonista o que prevalece na narrativa; Hatoum promove a presença
daqueles que falaram / falam em nome do modelo ditatorial como o mais adequado
para o Brasil de então e de igual maneira promove a voz das vítimas desse
poder. É bem verdade que no embate de forças não se busca mostrar culpados, se
busca é estabelecer uma tensão que responde pela própria condição do país nesse
tempo dos mais tristes de sua história. E, nesse impasse, fica, como é possível
em toda grande obra de crítica e/ou denúncia, a responsabilidade para o que
leitor estabeleça uma compreensão sobre a complexidade desse país e alguns dos
traumas que muito provavelmente nossa geração, mesmo filha do chamado espírito democrático,
não conseguirá se ver livre.
Exilado,
Martim reencontra com parte de seu grupo de amigos brasileiros e a partir do contato,
literalmente, com um baú de recordações, busca alinhavar cada uma das peças num
exercício que ora zela por responder algumas das incógnitas que o perseguem ora
tenta encontrar uma visão mais ou menos acabada de seu tempo. A partir de cartas,
das anotações febris a partir de quando vai viver em Brasília, depois da
separação dos pais e do cada vez maior isolamento entre ele e o pai Rodolfo, Martim
se coloca como um copista, que passa a limpo esses restos de registros, que
reconstrói outros pela relação que estabelece com os textos que encontra ou
simplesmente pelas suposições que apresenta a partir desse amálgama.
A maneira
que encontra de estabelecer algum sentido de ordem ao caos da memória e das recordações
se dá pela disposição de datas e lugares que situam o olhar do leitor ora no
passado evocado ora no presente no qual se situa a personagem. Essa sensação de
linearidade, o leitor logo perceberá,
mesmo por esse ir e vir de tempos e situações é falsa. Mas aqui, se nota outro
traço que, além do nome e do que representa a personagem para a narrativa, a
aproxima do Martim de José de Alencar; o espírito de guerreiro, patente no
significado do nome, se notabiliza pelo duelo que a personagem de Hatoum
estabelece com a memória e com o tempo. Sua condição – a de exilado – não é a
das mais favoráveis. Um inimigo do governo é inimigo em qualquer parte e em
qualquer parte o último dia pode ser no virar do próximo instante. Assim, contar
sua história é um embate com a possibilidade de iminência do fim. É possível
que o seu relato não se conclua; porque nem ele sabe se sobreviverá às implicâncias
do poder. E, claro, não bastasse isso, o tempo é inimigo nosso não apenas nas condições
de emparedamento, é também nas condições naturais; assim como a memória que
mesmo vendo nitidamente o passado não é capaz de oferecer mais que uma projeção
criada pelas lentes de percepção do indivíduo.
Ainda nesse
território de metonímias, o pai de Martim assume-se como o próprio poder da
ditadura. Se no princípio, sua mudança para Brasília, onde viverá com Rodolfo, tudo parecerá novidade aos olhos do filho e uma
tentativa de aceitar essa novidade como a única possibilidade que o destino lhe
convém, logo tudo se desenvolverá para o pior: tal como nos estados de levante
das ditaduras, sempre nascidos como um anseio de que finalmente a saída para
todos os males foi encontrada e findados com a descoberta de que essa saída era a
própria encarnação do mal. As relações entre pai e filho tomam direções
opostas, de silêncios, silenciamentos, imposições sorrateiras, perseguições de
igual maneira. Some essas características num tempo de silêncios,
silenciamentos, imposições e perseguições e não faltará mais nenhum tom da escuridão
que é essa narrativa. Martim, o de lampião na mão, é o que tenta, percorrer nas
trevas, as respostas para os silêncios, o que deixou de dizer nos
silenciamentos e o porquê da impostura e da perseguição. Examina tudo à luz de
uma obsessão – o tempo de escuridão é um tempo de obsessões dos indivíduos pela
liberdade do outro, uma espécie de histeria pública sustentada pelos nomes de
ordem, moral e bons costumes. Um coquetel venenoso que inclui algumas das
ideologias mais potentes – a religião e o poder de mandar. Dois elementos
definidores de Rodolfo, o que só tem tempo para o trabalho e para a igreja.
A pergunta
que fica é – atravessamos essa noite? A geração de depois de Martim, tomada por
uma esquizofrenia que busca reduzir o debate e a compreensão do tempo passado e
das engrenagens complexas do poder à coisa de nenhuma valia, histeria de
esquerdistas, esses zumbis programados para repetir o mesmo discurso vão e
vazio responde que não. O alvorecer que alguma vez vimos pareceu uma miragem e
sobra ainda a pouca consciência dos lúcidos a travar outra e outra vez os
mesmos embates em nome de nosso bem maior: a liberdade. A história da
humanidade, muito provavelmente, é a história de uma noite impassível, porque
os dos desmandos sempre estiveram no poder ou o poder os tornaram assim.
A obra de
Milton Hatoum chega num momento extremamente oportuno – este marcado pelo
embrutecimento dos espíritos, pela cegueira moral, pelo despautério para com o
ideal coletivo – um momento de, quem diria, ressurreição do fascismo e das
vozes que propõem a redução das liberdades individuais em favor de uma ordem
sectária. Sem querer datar, mas querendo sublinhar, é uma obra indispensável
aos brasileiros, que demonstra que entre o regozijo de poucos prevaleceu o
drama de muitos – e não foi questão de simplesmente desenvolver simpatia com os
modelos de dominação. A história está cheia de exemplos dos que sentiam felizes
com os do poder e foram – de uma hora para outra – julgados com o mesmo peso da
ignorância com que estavam acostumados a bater. Não é que agora, o escritor
tenha assumido uma verve de pessimista, mas o destino que fomos obrigados a
seguir não nos pede nenhum otimismo. E a única saída possível está nessa
direção do desencanto. O positivismo não produz nada senão a plastificada
sensação de que a aridez é exuberante. Sabiamente, Milton Hatoum, nos propõe,
pela angústia da perda e do exílio, transformar o nó na garganta que se forma
desse drama em força para superar a resignação. Eis um romance de resistência.
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