Zero K, de Don DeLillo
Por Pedro Fernandes
O título
deste romance de Don DeLillo dialoga com uma extensa rede de sentidos. E a
maestria do escritor, para além de uma narrativa situada entre o limite do tom
objetivo realista, o poético e a ficção científica, está em fazer coincidir
essa pluralidade significativa que se oferece como um conjunto de camadas
diversas fundamentais para o leitor encontrar os nós das reflexões aí
propostas.
Essas
reflexões, por sua vez, apesar do tom futurista dos acontecimentos, encontram
matriz entre as principais questões que nos movem desde sempre: a morte, a
limitação da vida, o que nos constitui enquanto humanos, o amor, entre outros.
E também aos temas mais contemporâneos, aqueles que se tornaram pauta desde o
advento da revolução tecnológica, como, quais os limites da ciência sobre a
nossa existência, a ética que os move e as transformações possíveis ou utópicas
no exercício de materialização daquilo com o qual sonhamos nossas fantasias
mais inusitadas.
Durante a
Segunda Guerra Mundial, Zero K era uma expressão utilizada pelos bombardeiros
para dizer zero mortos. No romance de DeLillo, o leitor encontrará um ambicioso
projeto comandado por uma extensa rede de interesses cuja proposta é a de oferecer
aos clientes a manutenção de seus corpos para uma possível ressurreição futura.
A criogenia, responde por um desafio do homem em relação à ação indelével do
tempo – “A gente se rende ao tempo”, cita Ross Lockhart, um dos envolvidos no
projeto batizado de Convergência, para justificar ao filho a necessidade dos
altos investimentos numa proposta aparentemente absurda. Uma vez essa proposta
realizada chegaríamos ao status de
zero mortos, ainda que a questão seja debatida em várias ocasiões da narrativa como
uma invenção para muito ricos e possível de gerar um impasse de grandes proporções
na civilização humana.
Outra das
significações para o termo que intitula o romance é a da temperatura Zero
Kelvin. Na criogenia, os corpos são guardados a essa temperatura, a única capaz
de não danificar totalmente os tecidos do corpo. Quer dizer, a uma temperatura
não exata à de Zero Kelvin, mas assim designada pelos mentores como uma das
estratégias de facilitação sobre a compreensão do processo de preservação dos corpos.
Em criptologia, Zero K diz respeito ao conhecimento zero. Deste sentido conjugado
com o anterior sabemos que o ponto zero significa simultaneamente o fim e o início
e, entre essas duas dimensões, não encontramos respostas para nenhuma das perguntas
que aí se apresentam, sejam elas de cunho científico, ético ou filosófico. Por
exemplo, se sabemos como congelar corpos para um futuro, ainda não sabemos como
ressuscitá-los e se o ressuscitássemos não sabemos como seríamos, se uma continuidade
do que fomos ou um outro; ainda considerando esta última hipótese, o que seria
da morte, da vida e da sorte de conceitos culturais que vimos forjando ao longo
da história da humanidade? A ciência tomaria, ao romper um dos limites de
sustentação do pensamento religioso, em definitivo, o lugar de uma nova
religião?
Zero K é
ainda uma abreviatura de quilha zero, um tipo de quilha de suspensão usado por carros
da Fórmula 1 cujo interesse é contribuir com a aerodinâmica dos carros. Ao que
parece, o grande conglomerado do projeto Convergência, apesar de o narrador não
fornecer ao leitor uma dimensão muito própria do espaço, se localiza numa
região remota do globo terrestre no intuito de garantir uma autonomia nos exercícios
científicos aí praticados, bem como um equilíbrio entre os sentidos históricos,
jurídicos e mesmo sociais da empresa. Isto é, preservam-se nesse conjunto de
interesses, um tratamento limiar, ponto zero, de suspensão para a ventilação
favorável a existência do projeto.
Por fim,
nessa rede de sentidos do termo título da obra, Zero K é um jogo de estratégia
em tempo real de código aberto. Não precisa dizer que esta é a dimensão para a
qual o leitor é transportado juntamente com o protagonista da narrativa. Jeffrey
Lockhart é levado numa espécie de missão secreta até o interior da Convergência;
ao chegar ao lugar, sem contato com a geografia externa, nem as dimensões
temporais, descobre que sua madrasta, Artis, está no fim da vida e o pai, como
membro honorário de um projeto de ressurreição a mantém inteirada do interesse
em contribuir para os experimentos. A partir daí, Jeff entrará num vórtice
diverso de situações que ora recobram seu passado, o presente indistinto nesse
reencontro com o pai e o próprio futuro, uma vez que por trás das ideias de
Ross escondem-se outras ideias que o narrador-personagem começará a precisar com
maior clareza à medida que se vê preso nessa teia propositalmente forjada pelo
pai. Isto é, toda a narrativa se constrói numa espécie de jogo de estratégia no
qual não se tem, ao certo, clareza alguma sobre as situações – estas, no virar
das horas podem ser outras e não as que Jeff (e consequentemente o leitor) acreditavam.
Para citar
um exemplo e oferecer ao leitor um dos vários debates propostos por Zero K, falemos de quando Jeff realiza
duas dentre as várias descobertas: uma, que o nome do seu pai não é Ross Lockhart
e sim Nicholas Satterswaitte; e outra, a decisão de Ross / Nicholas em
adiantar-se ao tempo para ir junto com Artis, repetindo uma espécie de amor
trágico ao estilo Romeu e Julieta. Não cabe aqui revelar o desfecho dessa condição,
mas as implicâncias são interessantes de pontuar, sobretudo, porque se abre
outra perspectiva das diversas oferecidas pelo debate sobre a morte (ou a
relação entre vida e morte) que é aquela tão antiga quanto a tragédia de
Shakespeare, a decisão sobre o fim, neste caso, em específico sobre o que se acreditar
ser a entrada num limbo que poderá servir de dimensão para outra vida. Jeff descobrirá
então que, paralelo ao Convergência existe outro projeto, o Zero K, este que
salta e nomeia o romance, cujo interesse é o de preparar para a passagem
aqueles que por alguma razão têm interesse de abreviar a vida.
Zero K lida com um ponto recorrente na
literatura estadunidense contemporânea, constituída possivelmente pelas
produções de ficção científica, gênero que encontrou aí solo fértil, que são as
narrativas que dialogam com os lugares do pós-humano. Não se trata de uma ficção
aos moldes da ficção científica porque lida com questões cujas implicâncias
são-nos contemporâneas: a iminência do fim da civilização e da espécie humana,
apesar de um medo antigo, se tornou nos últimos anos numa situação cada vez
mais possível devido aos modelos acelerados de exploração dos recursos naturais
para atender a necessidades cada vez mais sofisticadas da comunidade humana. A ciência
não descarta a possibilidade de que, no ritmo que levamos, muito em breve o
planeta cairá num colapso sem retorno – se já não estamos nele. Na mesma linha
de um fim iminente, ventila-se com mais frequência as alternativas de
preservação da espécie noutra dimensão. No caso da criogenia, há empresas especializadas
em garantir o sonho possível a quem se disponha pagar e tenha dinheiro para
tanto. Entra em questão, portanto, um debate caro à situação desenvolvida por
Don DeLillo neste romance: o capital atingiria com o sucesso da criogenia o
último de seu estágio – a ciência como religião e o dinheiro como salvação?
A variabilidade do nome próprio de Ross, num exercício cuidadosamente pensado por ele, para adquirir um termo que o represente de maneira clara e universal, sendo uma forma nova porque destituída de quaisquer antepassados que o determine enquanto continuum da ordem familiar (e agora que inicialmente toma a decisão de imolar-se para entrar no mesmo mundo de Artis algo como um corte com a própria ordem dos de sua espécie, instando à categoria de um novo Adão para um novo paraíso), tudo isso, é trazido aqui por um dos debates sempre recorrentes na literatura – o da identidade. Jeff se questiona, tão logo recorda da descoberta trazida pela lembrança da voz de sua mãe Madeline, quem seria Ross se ainda se chamasse Nicholas e quem seria ele próprio se ao invés de carregar o sobrenome Lockhart fosse definido por Satterswaitte. Ou seja, um retorno à tese das predisposições oferecidas pelo ato de nomear o mundo, gesto fundador da criação. Esse debate se prolonga com as questões do que seríamos num mundo cujas experiências da Convergência vingassem, isto é, num mundo pós-humano, seria este habitado por fantasmagorias do seu passado ou por um novo povo? E se ampliam com os confrontos enfrentados por Jeffrey acerca do seu passado e de suas crenças, peças que nos definem enquanto unidade, mesmo fragmentada, de sentido, e o dedicado interesse dessa personagem sobre a certeza dos significados das palavras, um gesto que domina todo o enovelado fio da narrativa de Zero K.
As implicações
sobre ato de nomear não são apenas tema da narrativa; elas contribuem
intensamente para as definições estruturais e formais da obra. Basta retomar
aqui sobre o ponto de equilíbrio dinâmico para compreender que as histórias de Zero K podem ser meras elucubrações
psicológicas do seu narrador. Chama atenção o fato de Jeff se referir a todo
momento como quem nomeia à sua maneira as personagens que transitam na
narrativa ao ponto de ele próprio assim se manifestar: “Os nomes inventados têm
a ver com a paisagem destroçada do deserto, fora o nome que é de meu pai e meu”.
Isto é, tudo neste romance pode ser mera possibilidade. Fiquemos então com a
suspeita.
A preocupação
com o sentido concreto das palavras é outro exercício que entretém o narrador e
lhe imprime uma força metalinguística, se não deixamos de considerá-lo enquanto
a figura que registra um mundo próximo de uma transição tão profunda que capaz
de refundar os protocolos da linguagem; estaríamos nessa máquina presos às
artimanhas de um autor? Além disso, o mundo da Convergência, centrado neste
propósito, funciona não apenas apartado do mundo comum; Jeff descobre-se num
grande labirinto onde é continuamente confrontado com situações que lhe chegam
através da repetição de imagens projetadas em grandes telas que imprimem na sua
consciência a possibilidade de experienciar situações desconhecidas ou recobrar
situações silenciadas pela memória.
O espaço do
projeto de Ross funciona à maneira do mito caverna, de Platão. Sem quaisquer contatos
com o mundo externo, os habitantes desse conglomerado são levados a uma
suspensão de todos os sentidos até um total apagamento das formas que o
situavam no plano cultural que habitavam – de modo que o narrador-personagem
por vezes se sinta confrontado em chamar o lugar de uma nova seita que incute,
por vias diversas, uma condição fantasiosa na cabeça das pessoas. Não é
gratuita, nesse ínterim, a repetição de que os sujeitos envolvidos nas experiências
da Convergência estejam em fase de partir para o renascimento num mundo mais
autêntico, numa realidade “mais profunda e verdadeira”.
Zero K se faz, assim, um dos textos
magistrais de Don DeLillo, seja pela capacidade de forjar um enredo objetivo e
simultaneamente complexo e arrojado, seja pela diversidade de temas com os
quais a comunidade humana se engalfinha desde a mais remota existência (como as
ideias de salvação, de vida depois da morte – ou não é a criogenia uma
repetição moderna do que fizeram os egípcios e outras culturas com a mumificação
dos corpos?), seja pela maneira como as situações individuais são transformadas
em dimensões universais. Uma potência que reafirma a tarefa do literário em
estabelecer pontes entre tempos diversos, inclusive para os pós-humanos se um
dia alcançarmos essa façanha ainda incipiente.
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