Os melhores diários de escritores



Um diário é, como diz sua própria definição, um texto que cresce à medida que se anotam os acontecimentos do cotidiano, incluindo a reflexão de índole íntima, isto é, o lugar invisível do eu, suas emoções. É em parte um texto livre, despojado do artifício da ficção, e por isso, pelo qual se entrevê a alma do escritor, seus medos, alguns dos movimentos de sua psique e os envolvimentos com extensões mínimas da existência.

Podem acompanhar o escritor para uma vida, ou passagens das mais difíceis, agitadas, trágicas. Ou podem ser apenas uma proposta ambiciosa de contenção da areia do tempo que se esvai. Nesses registros ficam ainda, quando estamos ante diários de escritores, suas inquietações com os afazeres da criação, as relações interpessoais com outros de sua seara.

Apresentamos uma seleção desse espírito descoberto de grandes escritores que mantiveram o gesto do diário pessoal e se atreveram torná-lo público, alguns só depois de sua morte, outros, como um exercício narcísico ainda em vida. Claro, o interesse para composição dessa lista se dá por duas publicações recentes do gênero, dentre tantas, no Brasil: os diários do escritor russo Fiódor Dostoiévski e do escritor tcheco Franz Kafka – os dois já incluídos no rol a seguir.

Esta lista inclui tanto diários publicados por longa data ou em passagens curtas, situados, portanto, em contextos bastante heterogêneos. Lançam luz sobre a vida desses escritores desde há muito situados entre os mais influentes da literatura universal. São uma excelente maneira de aproximação dos leitores à suas obras por ângulos diferentes e ao seu pensamento.
 
1. Os diários de Sylvia Plath
A escritora estadunidense é famosa por sua poesia, por seu romance A redoma de vidro e pela morte precoce aos trinta anos, depois de enfrentar longos períodos de perturbação decorrentes de um casamento malfadado com o também poeta Ted Hughes. Também é reconhecida por este intenso diário, no qual se revela sua perspicácia criativa, a lucidez sobre o mundo e as coisas, as tensões espirituais e a sinceridade. É bem verdade que se Sylvia Plath não tivesse morrido quando e como morreu, como assegura Laura Freixas, seriam textos que não teriam vindo a lume. É um livro que traz em seu próprio corpo as marcas dos tempos de perturbação padecidos pela escritora, visto sua incompletude; o orgulho doente ou a obsessão por modelar a imagem de Plath fez com que Hughes destruísse grande parte das entradas escritas nos últimos meses de vida da diarista. Nele se revelam a consciência da escritora não apenas sobre os dilemas pessoais e existenciais, mas aqueles do “ser escritora”: a escrita, a publicação, o sucesso, o reconhecimento... Some-se a tais inquietações as reflexões sobre a condição da mulher segundo o ideal ocidental dos anos 1950 – sempre brutais e explosivas. Juntamente com outros diários incluídos nesta lista de outras escritoras, como os de Virginia Woolf e Anaïs Nin, formam um corolário indispensável a um lado sempre destratado na literatura pela cultura falocêntrica; têm percepções inovadoras e nos fazem sempre pensar como a história da humanidade poderia ser diferente se pensada por elas.

2. Diários (1984-1989), de Sándor Márai
O encanto de um livro como este – o interesse, é melhor – é que não mente. Não pode: o escritor tem 85 anos e já está morrendo. E é quase impossível mentir ante a morte, não? Estes cinco anos constituem o último volume dos diários escritos por Sándor Márai escritos ao longo de quase uma vida, sempre no estilo de textos abertos e reflexivos sobre um pouco de tudo mas nada triviais, diferentes dos diários de sua companheira: informe minuciosos do cotidiano de toda uma vida e que, depois da morte dela, o escritor lê para evocá-la, rever seis décadas juntos, e que constituem a única leitura que no fim de tudo o consola. Frente e dentre às intenções de tantas outras leituras, principalmente a dos clássicos e da poesia húngara, um vício de toda uma vida tão forte como caminhar ou comer. Os diários tratam sobre, e podem ser citados em temas como, o negócio desumano da medicina nos Estados Unidos, o exílio político de longa duração (quarenta anos fora da Hungria comunista), algumas conclusões literárias, a velhice a decadência física. Mas o que importa é que, como todo bom livro de testemunho, testemunho da verdade essencial, estes assuntos de alguma maneira dão conta da agonia e morte de um escritor. Sim, também da morte: a última anotação de seu diário é de 15 de janeiro de 1989.

3. Escrever. Viajar. Viver, de Robert Louis Stevenson
Recentemente os leitores brasileiros tiveram contato com um livro-diário de Robert Louis Stevenson no qual recobra uma viagem realizada pelo escritor pela serra das Cevenas, no sul da França, entre 22 de setembro e 3 de outubro de 1878 com uma burra. Mas não é sobre Viagem com um burro pelas Cevenas que citamos nesta lista. E sim de uma reunião de textos diversos (ainda desconhecidos do leitor brasileiro, a edição indicada aqui é a partir da versão espanhola: Escribir. Viajar. Vivir). Narrador inesquecível, poeta valioso, viajante e criador de anedotas biográficas, para conhecer completamente o universo de Stevenson é necessário visitar essas facetas de ensaísta, tão altura do resto de sua obra, didáticas e gêneros próximos. A primeira parte deste livro reúne seus ensaios sobre literatura; são textos sobre seus livros de cabeceira, retratos de seus autores favoritos e uma mistura de conselhos diversos sobre escrita, confissões literárias e recordações sobre seu próprio trabalho e a criação de títulos grandiosos como A ilha do tesouro e O médico e o monstro. A segunda parte é composta pelos textos de Stevenson sobre viagens: sua personalíssima mirada sobre sua Edimburgo natal, as excursões pela paisagem inglesa, as viagens pelo continente europeu e, por fim, cruzando o oceano até a América. E, a terceira parte agrupam os ensaios mais pessoais e biográficos, seguramente os escritos mais íntimos, quando recorda situações familiares, sobre a infância, o período de universitário etc.

4. Diário volúvel, de Enrique Vila-Matas
Este livro abarca três anos – de 2005 a 2008 – do caderno pessoal de Enrique Vila-Matas. Combina os comentários sobre livros lidos com a experiência e a memória pessoal; abrem caminho para a autobiografia ampla, sempre em busca de ver a realidade como espaço idôneo para acomodar o imaginário e assim ficcionalizar a vida. Além disso, em Diário volúvel abundam os procedimentos literários mais comuns do escritor, onde as diferenças estilísticas entre a ficção e o ensaio são cada vez menos relevantes. Composto em parte por notas que passaram do caderno do escritor à edição costumeira para a edição do jornal El País na Catalunha, mas também de fragmentos inéditos e notas escritas para compor a edição, esta obra é um labor criativo que se ergue para várias direções.

5. Diários (1947-1963) / Diários II (1964-1980), de Susan Sontag
"Quem inventou o casamento era um torturador astuto. É uma instituição destinada a embotar os sentimentos." Reflexões agudas como essa, entre a amargura e a ironia, fazem parte da matéria-prima do primeiro volume dos diários de Susan Sontag, espécie de buraco da fechadura privilegiado por onde se enxerga a intimidade mental e existencial dos anos de juventude de uma das intelectuais mais influentes da América do pós-guerra. Selecionados por seu filho David Rieff depois de sua morte, os trechos ora publicados exibem um foco temático irrequieto que se desloca num caleidoscópio de assuntos da esfera pessoal e cultural. A par do seu vasto itinerário de leituras e experiências de fruição artística, presenciamos aqui, em registro confessional, a descoberta adolescente da sexualidade, as vivências como caloura precoce na Universidade da Califórnia, onde ingressou aos dezesseis anos, o breve casamento aos dezoito com seu professor Philip Rieff e as duas grandes relações amorosas mantidas com mulheres na sua fase de jovem adulta. O segundo volume retrata dos anos turbulentos da viagem de Sontag a Hanói, em pleno auge da Guerra do Vietnã, até a experiência como cineasta na Suécia e às eleições presidenciais americanas de 1980, este volume documenta a evolução de uma mente extraordinária. Em 1966, a publicação de Contra a interpretação lançou Susan Sontag da periferia do ambiente artístico e intelectual de Nova York para os holofotes de todo o mundo, sedimentando seu lugar como uma força dominante no mundo das ideias. Esses registros são um retrato inestimável dos pensamentos íntimos de uma das mais inquisitivas e instigantes ensaístas do século XX. E os Diários nos transportam, enfim, para o denso e rico mundo mental da escritora.



6. Os diários de Virginia Woolf
Escritos com honestidade, acuidade e sentido de imediatez, os diários de Virginia Woolf afloram a correnteza de vida que flui incontida por trás de seus romances. Suas palavras dão sentido à uma escrita simples e ao mesmo tempo vertiginosa. A luz que verte sobre os lugares, sua genialidade e clarividência iluminam um hiato de sua vida e de sua obra, como a opinião tecida em torno de um de seus títulos mais famosos, Orlando. Sua inserção numa agitada vida social, as impressões sobre nomes como W. B. Yeats, H. G. Wells ou Thomasn Hardy, seu amor por Vita Sackeville-West e o de Ethel Smith por ela, suas leituras, seus empenhos, os textos aí reunidos colocam os leitores nos lugares mais escondidos da intimidade da escritora inglesa. Esta edição publicada no Brasil reúne apenas uma seleção de excertos dessa obra de Woolf, então organizados por José Antonio Arantes a partir da edição preparada por Anne Olivier Bell. Neles se deixa entrever a escrita diarística como um refúgio para uma mulher num mundo predominantemente masculino  e sobre o qual sua opinião esteve sempre limitada. Estão repletos de luz e sombra e das visões da escritora sobre sua vida e seu entorno.

7. Diários, de Anaïs Nin
Os diários de Anaïs Nin cobrem toda sua vida; somam mais de trinta e cinco mil páginas e delas só conhecemos poucas páginas, reunidas sob o título de Henry & June que cobre os anos de 1931 e 1932, Incesto, de 1932 a 1934 e Fogo, de 1934 a 1937. Essa obra de Nin revela sem tabus a vida da mulher moderna que entra de cabeça, sem vertigem, no século XX. Testemunho de uma mulher apaixonada, autêntica, explosiva, uma impressionante tela onde se mostra desnuda, feliz, sem complexos, amando a um só tempo Henry e June. Uma Anaïs Nin que percorrer as emoções mais diversas como forma de embelezamento da vida, em toda sua pulsão; uma Anaïs Nin que sabe rodear-se de talento e se entrega às volições do corpo sem displicências e tabus. Não há na literatura – e isso é opinião unânime – quem melhor tenha se mostrado como se mostrou a escritora francesa; seus diários atestam ainda um modelo feminino que ficou arraigado no imaginário sobre a mulher francesa e símbolo de libertação, em amplo sentido, das atitudes da mulher numa cultura que esteve sempre interessada em condená-la ao reduto da insignificância e da submissão.

8.  Diário de um escritor, de Fiódor Dostoiévski
Os diários do autor de obras fundamentais como Crime e castigo ou Os irmãos Karamázov foram publicados mensalmente numa edição com o título tal qual se apresenta agora em livro dirigida de 1873 até sua morte em 1881. Nessas páginas deixou reunido todo seu pensamento sobre a atualidade de seu país, a crítica de ordem política e social, a análise literária e cultural e as impressões pessoais ante os diferentes acontecimentos históricos. Apaixonado e radical, Dostoiévski documenta nessa extensa publicação fatos como o conflito entre eslavófilos e ocidentalistas, a situação política europeia ou os problemas da educação na Rússia de seu tempo e dedica algumas de suas melhores páginas sobre importantes figuras da literatura russa, como Alexander Pushkin, Mikhail Lérmontov entre outros. Aí também publicou alguns de seus contos mais conhecidos, como “O mujique Marei”. 



9. Cadernos de Lanzarote, de José Saramago
Quando foi viver na ilha de Lanzarote, nas Canárias, depois da censura que seu o romance O evangelho segundo Jesus Cristo foi censurado pelo governo português, o escritor iniciou os registros em diários que chamou de Cadernos de Lanzarote e ganhou a forma de cinco tomos. Essa tarefa de registro diário não se restringiu ao papel. Mais tarde, Saramago voltou à ideia e agora interessado em se fazer público de imediato. Publicou então quase diariamente até sua morte em 2010 várias entradas para um blog que depois ganhou forma em outros dois volumes, O caderno e O caderno 2. Nesses registros, Saramago revela seu dia-a-dia, acompanha o trabalho de diversos amigos escritores, seu próprio trabalho marcado por uma agenda muitíssimo agitada depois de ganhar o Prêmio Nobel de Literatura, faz suas intervenções públicas sobre assuntos diversos nos quais sempre foi engajado, além, é claro, de esboçar a preparação de vários romances como o reconhecido Ensaio sobre a cegueira.

10. Diários (1910-1923), de Franz Kafka
No interior da obra genial e atormentada de Franz Kafka sobreviveu treze cadernos que deram forma aos seus Diários; são anotações que constituem um documento excepcional para o conhecimento sobre a enigmática personalidade do grande escritor tcheco. Iniciados em 1910 e continuados ininterruptamente até um ano antes da sua morte, essas peças revelam um Kafka envolto em situações das mais íntimas e secretas: suas frustrações, a relação conturbada com a escrita e a literatura, seus desejos e confissões. Da lista de textos aqui apresentadas é, certamente, um dos documentos mais significativos, quando se considera que Kafka foi um dos nomes principais a revolucionar os rumos da literatura de seu tempo.

11. Diários, de Miguel Torga
De todos os escritores aqui citados, vai para Miguel Torga a posição de maior obcecado pela escrita diarística. Sua obra do gênero está reunida em dezesseis volumes e foi designada pelo próprio escritor como uma “parábola" de seus dias e não uma crônica. Torga escreveu-os ininterruptamente entre 1941 e 1993 e com ele constitui um retrato amplo sobre o homem, o escritor e seu tempo. Revelam-nos uma visão apaixonante sobre seu país e o modo de ser português, com todas as transformações acontecidas nesse tempo. O escritor tem o diário não apenas como um gênero de expressão do eu e dos acontecimentos de seu derredor, mas como um espaço de experimentação da escrita, de modo que, aí o leitor encontra poemas, crônicas e pequenos contos. Surpreso ou extasiado ante a grandiosidade desse projeto, no último volume dos seus diários, Torga se confessa: “Chego ao fim, perplexo diante de meu próprio enigma. Despeço-me do mundo a contemplar atônito e triste o espetáculo de um pobre Adão paradoxal, expulso da inocência sem culpa sem explicação”. Talvez aqui devêssemos voltar à insinuação exposta na abertura dessa lista com uma pergunta: será mesmo que o diarista se revela abertamente na e pela escrita do diário?




12. Os diários de Emilio Renzi, de Ricardo Piglia
Os leitores do escritor argentino certamente conhecem Emilio Renzi, escritor e alter-ego que aparece e reaparece em seus romances, por vezes fugazmente, outras com maior protagonismo. De onde surge Renzi? De um jogo de espelhos que rouba o nome completo do próprio autor: Ricardo Emilio Piglia Renzi. Os diários de Piglia, portanto, são dele e assinados por Renzi. Depois de uma belíssima carreira literária que inclui romances e contos já considerados fundamentais das letras argentinas contemporâneas e vários volumes de ensaios igualmente imprescindíveis, o autor volta seu olhar e resgata os diários escritos ao longo de mais de meio século, entre 1957 e 2015, aos quais incorpora também alguns contos e ensaios diretamente relacionados com o material diarístico. É um monumental projeto editado em três volumes: Anos de formação, Os anos felizes e Um dia na vida. O primeiro cobre os anos de 1957 a 1967; se inicia, portanto, com um escritor no início da carreira, quando tinha apenas dezoito anos. Aparece aqui as primeiras leituras: A peste, de Camus, passando por Pavese, Verne, Defoe, Sterne, De Quincey, Gogól, Dostoiévski, Kafka, Proust, Fitzgerald, Faulkner, Hemingway, entre outros. Aparece aqui os filmes que o jovem autor devora: Bergman, Wilder, Visconti, Wajda, Godard. A geografia onde transitou: Adrogué, Mar del Plata, Buenos Aires. E a vida: os primeiros amores, os estudos universitários, os primeiros entusiasmos, as primeiras rebeldias, os primeiros desenganos, as descobertas e deslumbramentos vitais e culturais, as rupturas amorosas e os trabalhos incertos, quando passa a exercer o papel de editor free lance depois da universidade ser fechada pelos militares. Nesse contexto é um Piglia preso a um mundinho cuja sombra dos gigantes Borges e Cortázar estão vivas. No segundo volume, o alter-ego de Piglia percorre o período de 1968 a 1975. Se antes assistimos a forja do escritor, aqui se desenvolve sua carreira no mundo das letras argentinas com a direção de uma revista, os trabalhos editoriais, os artigos, os cursos, as conferências. A paixão e a obsessão pela literatura se materializam em ideias, esboços para contos e romances, leituras, encontros com escritores consagrados, tais como Borges, Puig, Roa Bastos, Piñera, e companheiros de geração. Passa pelas reflexões sobre a escrita e sobre a obra de autores clássicos e dos romances policiais; e novamente, descobertas, buscas e deslumbramentos. E as viagens, a vida íntima e amorosa, e a Argentina dos anos convulsos, a morte de Perón, a aparição dos grupos guerrilheiros e o golpe militar. Já em Um dia na vida finda os diários e se completa o autorretrato do escritor através dessa personagem por ela fabricada. A reflexão sobre a literatura a partir de leituras muito diversas, os encontros, os filmes e a situação complexa da Argentina no bloqueio miliar. É registrada ainda a permanência de Piglia como professor nos Estados Unidos. O terceiro volume se divide em três partes: "Os anos da peste", que é a última parte dos diários de Renzi, datada de 1976 a 1982; depois, "Um dia na vida", narrativa em que Renzi cede a palavra e se converte em personagem; e "Dias sem data" reúne anotações dos últimos anos do escritor. Passam-se os anos de felicidade, como o das últimas aulas em Princeton e os anos mais difíceis, da aparição da doença que de modo lento e implacável impõe sua lei. Encerra assim, de forma póstuma, a vida literária de Emilio Renzi. 

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