O primeiro conto de Ernest Hemingway



Quando o furacão Irma chegou em Key West, na Flórida, quase arrasou a histórica casa do poeta Shel Silverstein. Mas Brewseter Chamberlain, um escritor e historiador, se preocupava com outra casa desse mesmo bairro. Sua amiga Sandra Spanier, professora de literatura na Universidade Estadual da Pensilvania, também estava nervosa. Não só porque temia por Chamberlain, quem esperava a passagem do furacão em casa com sua companheira, mas porque compartilhavam uma descoberta sobre a qual pouquíssimas pessoas sabiam.

Em maio, ela e Chamberlain encontram o que têm chamado o  primeiro conto de Ernest Hemingway, uma obra sem título e antes desconhecida, em 14 páginas, que escreveu quando tinha dez anos. Estava nos arquivos da família Bruce – velhos amigos dos Hemingway. A professora, responsável pela catalogação das cartas do escritor que começam a ser publicadas nos Estados Unidos em 17 volumes, buscava no arquivo de Key West mais alguma missiva quando realizou a descoberta. Era outubro de 2016. Havia se passado alguns meses depois de tocarem aquele caderno manchado e cor de café onde se encontrava o texto, mas agora, com o furacão, esse objeto excepcional poderia desaparecer.

Depois da passagem do Irma, Chamberlain voltou à casa dos Bruce, no bairro Old Town em Key West. Caminhou por entre as árvores derrubadas, os escombros que cobriam jardins e ruas. A casa não havia sido danificada. E aí estava o caderno, sem nenhum dano, guardado num saco ziploc para alimentos refrigerados e dentro de uma caixa de munição. A data “8 de setembro de 1909” ainda estava lá, escrita com lápis negro.

Mas como viajou esse caderno da casa de Hemingway em Oak Park, Illions, para ser arquivado em Key West? Essa é outra história. O escritor estadunidense foi o melhor cronista de sua própria vida ou em termos atuais, era um acumulador. Não só preservava fotografias e cartas, mas também recibos, boletos, raio-X dentais, tarefas escolares, revistas espanholas sobre tauromaquia e outra diversidade de materiais impressos. Quando morreu deixou centenas de objetos divididos em lugares diversos, por Key West, Oak Park, Cuba e sua casa em Ketchum, Idaho.

Ernest Hemingway com o amigo Toby Bruce em 1940.


A quarta companheira do escritor, Mary Welsh Hemingway, passou anos reunindo cartas, cadernos e os manuscritos incompletos de Hemingway, entre eles os de Paris era uma festa, coleção de memórias publicada depois de sua morte. No inverno de 1962, ela viajou a Key West para visitar Betty e Tlly Otto “Toby” Bruce, quem apareceu com uma pilha de caixas que estava na cantina favorita de Hemingway naquele bairro; o escritor viveu aí no bairro nos anos 1930. Bruce era um antigo confidente que havia trabalho como mecânico, empregado de mantimento e inclusive, por vezes, chofer do escritor.

Mary levou tudo para Nova York – tudo o que considerou importante e deixou o resto com os Bruce. Com exceção de algumas exposições locais e colaborações acadêmicas, o arquivo permaneceu em mãos da família por décadas.

A coleção também inclui outros objetos pouco conhecidos como fotografias, cartas, uma mecha de cabelos de Hemingway e 46 cópias de fotografias, um presente do famoso fotógrafo Walker Evans. Apenas nos últimos 15 anos todo esse material começou a ser catalogado e em grande parte graças aos esforços de Chamberlain.

É fácil ver por que Mary ignorou esse caderno com manchas de umidade. Só resta um pedaço da capa, onde o jovem Hemingway desenhou um mapa da região central do norte dos Estados Unidos.

Sua história sem título é intercalada por fragmentos de poemas e anotações sobre gramática, como regras de pontuação e do uso de maiúsculas. A história começa como um caderno de viagem de Hemingway pela Irlanda e Escócia, escrita à maneira de cartas aos seus pais e o que parecem ser entradas para um diário. Ele primeiro descreve a viagem de trem da terra natal do escritor em Illions e depois a travessia pelo Atlântico com várias impressões sobre lugares importantes do trajeto. 

No princípio esse material, de fato, não chama atenção. Até quando Spanier visita Chamberlain em maio. Os dois se deram conta que Hemingway jamais havia realizado essa viagem, nem quando criança nem adulto. Estavam diante uma descoberta: a primeira vez que Hemingway tentou escrever uma ficção. “"Estamos indo de viagem para a Europa”, se lê na primeira entrada antes da referência a uma famosa linha de trem entre Chicago e Nova York; “Estamos indo para 20th Century Ltd. depois Nova York, onde esperamos pegar um barco rumo a Europa”.

A travessia pelo Atlântico é também em grande estilo. O pequeno escritor escolhe o RMS Mauretania, que segundo observa, é o único navio, próximo ao Lusitania, a ter quatro hélices e isso favorece a viagem ser mais rápida. 

Numa seção do caderno, o autor que receberia o Prêmio Nobel de Literatura em 1954, conta a história de um homem morto que regressa uma vez ao ano para reconstruir o Castelo de Ross, na Irlanda e organiza uma festa noturna. “Quando amanhece, o castelo volta a se transformar em ruínas e O’Donahue regressa à sua tumba”, escreveu Hemingway.

Embora a caligrafia do escritor não tenha melhorado muito, de sua forma de escrever não se pode dizer o mesmo. A história, sem dúvidas, antecipa o escritor em que se converteria não só quanto ao minimalismo da linguagem de Hemingway e o uso das paisagens, mas também em sua mistura de estilo jornalístico e ficcional. Esta é uma técnica que ele empregou largamente em sua carreira para intercalar os relatos históricos às suas histórias fictícias, numa mescla entre os fatos e a experiência imaginativa.

Na continuação da história, o jovem Hemingway descreve uma acontecimento no Castelo Blarney e a pobreza da Irlanda. Escreve acerca de visitar uma casa de campo com um telhado de palha que “é muito escura por dentro” e sobre um porco que “corre por debaixo da mesa” e “a gente que o chama por ‘O amiguinho que paga o aluguel’”.

Não há uma qualificação no texto e assim não está claro se era um rascunho de uma tarefa de literatura ou se Hemingway estava escrevendo para entreter-se. Sua intenção pode ter sido a de enviar o texto à revista St. Nicholas Magazine – um periódico para crianças que tinha um concurso literário mensal e do qual havia participado sua irmã mais velha Marcelline.

Dink Bruce, o herdeiro da família em cuja casa se preservou o manuscrito ficou ainda mais surpreso com tudo embora o clima e o furacão recente tenham feito pensar sobre o futuro do material que conserva e considera vender para alguma das coleções do escritor por considerar que é um texto emblemático e que merece estar num lugar onde possa ser estudado.

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