O pálido fogo da literatura é sua própria (possibilidade de) existência
Por Álvaro Arbonés
Vladimir Naboko. Foto: Horst Tappe. |
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Fogo pálido: um poema em quatro cantos, por
John Shade
Pretender resumir toda uma vida sempre é um trabalho injusto que tende a se tornar absolutamente obsoleto sobretudo se estabelecê-la enquanto escrita. Sempre
que pretendemos reduzir nossa existência a sequências parecerá que ficamos muito pequenos, que aqui ou ali sempre poderíamos dizer algo a mais, ou talvez certa
situação poderia ter sido explícita ou mais obscura; ao descrever nossa própria
vida sempre ficará honoráveis faltas que gostaríamos de não haver cometido. Por
isso, escrever uma biografia, pior ainda se uma autobiografia, é uma
tentativa de viver a vida em si mesma, esta que se produz sempre em trânsito e
por isso inconclusa. Que é se não uma utopia pretender escrever a vida em si
mesma em sua totalidade?
O que John
Shade, pouco antes de morrer, tenta é resumir sua vida em 999 versos – embora se
diz que ficou um perdido, que seria repetição do primeiro – e pretende nos mostrar
tudo aquilo que o levou a ser como agora o é. A escolha é a pretensão de vida que
o leva a construir um impossível, um poema autobiográfico, no qual possa expressar
tudo aquilo que está além de sua própria vida, caracterizando não apenas a
si próprio mas tudo que afetou sua vida; o propósito de Shade é construir um
mundo onde um mínimo denominador comum, buscando esse efeito que se situa como embrião
através do qual pode crescer autonomamente, com a ajuda do leitor, é mostrar a totalidade de sua vida em si mesma. O que consegue é
sintetizar imagens, tropos e estranhezas alienadas que o levam a uma viagem constante
a nenhuma parte cavalgando entre decassílabos que sempre parecem já não dizer muito pouco e sim muito da alma de homem que viveu, o suficiente para saber inclusive que aquilo que dói é o do que somos feitos. John Shade caracteriza a escrita como o
fogo pálido que ilumina sua própria vida ao demonstrar para si mesmo, e não apenas
para o leitor, o que configura sua vida em sua própria dimensão.
Eu era o pássaro abatido, sombra começa
e acaba a obra. Ele não é nem sequer a vida, aquele que mostra tudo não é ele
próprio, mas sua sombra. O escritor inventa ficções e faz de sua própria vida
uma ficção, ser assassinado no falso azul dos vidros da janela é um acontecimento de fato porque esse azul sempre será falacioso:
se é fatual, o é porque de fato ele existe muito além da realidade, se é ficcional
é porque lhe reclamam sempre para os atos do real – e de dentro me duplicava eu mesmo. O escritor, John Shade, ficcionaliza
sua vida da única maneira que um escritor pode fazê-lo, através do uso metafórico
da palavra que faz sua vida se tornar literal ao ponto de conseguir que não pareça
isso; o fracasso de todo contar uma vida é tentar narrar esta vida como algo absoluto,
fechado, fora de toda interpretação: toda vida é uma interpretação, toda vida é
um livro em processo de leitura. É por isso que a única biografia válida é a
que se pratica através do poema – Infinito
passado e infinito futuro: por cima de tua cabeça como alas gigantes se fecham,
e estás morto. Quando se acaba um poema, quando está concluído de forma
absoluta, o poema está morto, mas um poema nunca se acaba porque sempre há uma
nova leitura por fazer-lhe.
A vida é o
que acontece na própria escrita, porque quando se vive se escreve. Se escreve a
biografia de uma vida nos lugares onde habitamos, nas pessoas que amamos, nos
trabalhos que realizamos – o fato é que
os três quartos, unidos então por ti, por ela e por mim, formam agora uma tríptico
ou uma peça em três atos onde os fatos refletidos permanecem para sempre;
nada escapa à escrita, flutuamos na tinta amniótica que traçamos entre os
materiais de tudo quando nos rodeia para escrever nossa própria história. E
assim deve ser. Não há nada que não deva ser contado, porque tudo se conta em
suas mais profundas intimidades nas formas da metáfora mais pura, aquela que só
é o ato em si que se interpreta como um ato de amor ou de ódio, um ato de saúde
ou de doença, um ato que se supõe mas não se sabe com certeza. Só por isso
temos a certeza sobre eles.
Não é só que
a vida só possa ser construída num poema, é que a vida é um poema ao ser necessariamente
em processo, um constante devir – o tempo
significa sucessão e a sucessão,
mudança. Se o único que muda de forma constante é o poema, a vida é necessariamente
um poema. É por isso que escrever uma biografia como um poema não é uma genialidade,
é só uma necessidade para articular um discurso autêntico a respeito da vida em
si. Se John Shade seguisse os passos dos homens anteriores a ele se encontraria
com algo informe que não fala de sua vida, como o fogo pálido que projetou sua
sombra de falador impossível, encontraria com o nada da
terribilidade – acredito que entendo a
existência, ou pelo menos uma minúscula parte de minha existência, só através
de minha arte. Qualquer outra tentativa de ir além do mundo em si, de sair
da escrita ou da vida, é necessariamente cair na morte vazia de todo sentido
que nos arrasta à destruição completa de nós mesmos, porque só podemos compreender
a vida de Shade partindo do fato de que sua vida é em decassílabos. Pretender resumir toda uma vida sempre é um trabalho injusto que tende a se tornar absolutamente obsoleto sobretudo se estabelecê-la enquanto escrita.
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Fogo pálido por Vladimir Nabokov
Uma das
maiores dificuldades quando abordamos uma obra literária é pretender que nela o
escritor não depositou algo particular, seu. É lógico que quando uma pessoa
dedica meses, até anos, na gestação completa de um projeto inocule neste, de
forma mais ou menos notória, parte de seu espírito, de modo a insuflar-lhe uma
autêntica vida além de sua qualidade intrínseca; toda obra é filha de seu criador,
independentemente desta galgar o mundo sozinha. Mas também não há ocasião em
que um romance não carregue a opinião do outro, do leitor, daquele que comenta
a obra em suas margens – de forma literal ou metafórica – apropriando-se para
si de tudo quanto lê nele. Acaso não é lógico que, ao ler um romance qualquer,
não sintamos identificados ou, o mínimo, saquemos interpretações que sempre
estarão relacionadas com nossa opinião a respeito do mundo? É, e por isso
gostamos da literatura.
A peculiaridade
de Fogo pálido de Nabokov não é já o
fato de criar uma ficção biográfica particular forjada em forma de poema por
uma personagem, coisa que por outro lado não é tão estranho; sua singularidade é como esta serve de desculpa para edificar um romance. Isto não significa
que se valha do recurso comum de aproveitar um componente biográfico para edificar
toda uma história como se chegou até essa situação, mas que retorce toda a
premissa até converter o comentário crítico do poema na proposição própria do
romance em si. Não há uma construção a partir do poema que dê pé a uma história
narrativa no sentido clássico, mas que o poema é um inusitado exercício de
estilo que fomenta a construção de um todo maior, o romance, que se edifica a
partir de sua perturbação dos códigos escriturais. Ou podemos dizer que em Fogo pálido está contido
um romance porque de fato é um romance que se disfarça de outros gêneros – a poesia,
o ensaio literário – para assim poder se definir como tal de forma que vá mais
além dos meros convencionalismos narrativos do que se supõe ser um romance. É um
fogo pálido porque é um pálido romance, algo que só parece romance porque
sabemos que é.
É isto um voo para frente? Nada mais
distante da realidade, é uma fuga para trás; é uma fuga até o momento em que as
convenções literárias eram inexistentes e o romance era tudo aquilo que narrava
uma história embora nesta contivesse sua própria crítica, um poema ou uma
narrativa ensaística: o fogo é pálido não por ser novo, mas por ser antigo. Mas
para fazer isto não se sai do romance, não se situa ele mesmo como uma
personagem, o que constitui a ficção a partir de seu interior como o precipitado
Charles Kinbote, personagem através do qual se constrói essa simbiose constante
entre uma genuína reflexão crítica a respeito do poema e os pareceres
argumentativos comuns numa construção romanesca. O interesse radical que tem Fogo pálido não é algo como a revelação
de algo mais, de algo diferente, mas de seu retorno ao passado: não pretende
inovar, consciente de que é impossível fazê-lo, mas pretende destruir os códigos
que criam as barreiras diferenciadas entre gêneros.
Agora ter a
tentação de afirmar que é o romance de Charles Kinbote, que na verdade só ele
assume a tarefa de editar o poema ainda quando a viúva do autor se opõe à
ideia, seria cair radicalmente na farsa. O romance só é tal a partir do poema,
pois tudo é um componente em si dentro deste. O papel de Kinbote é
determinante, pois sem ele nunca chegaria a converter-se o que é um embrião
romanesco em potencial, romance em ação, mas, de fato, é outro elemento que
ativa este acontecimento; o interesse radical que mostra isto precipita os sucessos,
mais ainda se Nabokov elegesse outro crítico literário mais ortodoxo: poderia
haver convivido nesta evolução até um regime romanesco. A construção que faz é
através de todo um conjunto determinado dentro de sua própria potência, não de
uma série de elementos narrativos que acreditam o que denominamos um romance: Fogo pálido é um romance na medida em
que admitimos que sua estrutura não mantém relação com o que não é um romance; é
um romance porque de fato nos conta a história de algo – de um poema, da
interpretação de um poema, de um rei exilado ou de um poeta e sua vida – independentemente
de como o faça.
O que
Nabokov faz aqui é a construção de algo
que chamamos romance para entender o que exercita, mas que vai muito além
da limitada (e frágil) interpretação do romance clássico, imperativo na criação
literária. Seu propósito, como em toda sua obra, parece ser o de reverter esse
âmbito da narratividade para deixar passar um estilo indomável que impregne cada
gota de tinta que caia sobre o branco do papel, carregando tudo de uma mágica
aventura onde importa mais como se diz e pensa algo do que o que se diz e pensa
ao longo do tempo. Porque sendo um romance, o que realmente é um romance, está
eivado de ideias e reflexões, de aventuras e sentimentos, está carregado de uma
realidade tão profunda que o mundo transpira
a cada segundo sem necessidade de cartografar minuciosamente cada milímetro deste;
é um fogo pálido porque não necessita ser uma grande chama luminosa para mostrar
ao mundo que é fogo, e vai com sua tênue luz nos permitir clarear as figuras da
sempiterna noite.
* Este texto é uma tradução de "El pálido fuego de la literatura es su propria (posibilidad de) existencia" publicado em The Sky Was Pink
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