O céu de Lima, de Juan Gómez Bárcena
Por Pedro Fernandes
“O amor é um
discurso, meu amigo, é um folhetim, um romance, e se não for escrito na cabeça,
ou no papel, ou quer que seja, não existe, fica pela metade; não passa de uma
sensação que imaginou ser um sentimento...” Esta frase não é do narrador de O céu de Lima; é de uma personagem desse
romance do espanhol Juan Gómez Bárcena, o bacharel Cristóbal, um missivista por
encomenda que vive nas ruas de Lima do início do século XX a escrever cartas
para gente diversa, daqueles não alfabetizados e precisam comunicar qualquer coisa
por escrito ao Estado ou aos parentes distantes a aqueles alfabetizados mas que
não sabem ao certo como dispor no papel seus estados de espírito sobretudo nos casos
de fortes amores, especialidade esta pela qual quer ser reconhecido e por isso
o gesto que pratica com melhor gosto.
A sentença cética
e irônica de Cristóbal vem numa longa conversa com Carlos Rodríguez, quando o
jovem rapaz começa a pensar juntamente com o amigo José Gálvez qual o destino
deve ser dado à criação ficcional da jovem Georgina, uma personagem que aos poucos
tomará as feições de um heterônimo que troca cartas com o poeta espanhol Juan
Ramón Jiménez. Os dois são leitores fervorosos da obra do autor de Platero e eu e têm a ideia de lhe escrever
depois de vagar por todas as livrarias da capital peruana e não encontrar seu
novo livro. A resposta do poeta e a abertura ensaiada por ele para com a
missivista levam esses dois jovens, um mais que outro, fazem como que se
mantenham fiéis à existência da tal personagem e estabelecem uma troca de correspondência
que envolve insinuações de tom amoroso, um encanto elevado pela obra do
espanhol e a margem para a composição de um obra literária cujas bases se centrariam
nessa relação inusitada. A história da relação entre Ramón Jiménez e a tal
jovem é um dos episódios mais inusitados na história da literatura, uma broma
que segundo insinuam os jovens peruanos da ficção de Gómez Bárcena, teria
vitimado escritores diversos ao redor do mundo com ou nenhum sucesso para os
missivistas fabricados.
Enfim, a pergunta
que se desenvolve, tão logo sabemos desse acontecimento, é de que maneira um escritor
o forjaria em matéria literária. A resposta, entretanto, já não será necessário
buscar noutro plano, porque Juan Gómez Bárcena soube dispor de maneira
inusitada numa sequência que deixa entrevê uma acentuada criativadade, um
engenho formal e estético muito caro à literatura, sobretudo, quando se sabe
que O céu de Lima é apenas o seu
primeiro romance e o espanhol um jovem escritor da geração de meados dos anos
oitenta. Sabendo que a ideia é aproveitada na feitura do romance, então outra
pergunta se forma para o leitor: como o escritor forja a estruturação disso,
porque, afinal, uma simples troca de correspondências em que os conteúdos são
amenidades, elucubrações literárias e insinuações amorosas, é pouca matéria
para dar sustança ao conteúdo ficcional.
A saída encontrada
por Gómez Bárcena não é de fato a mais simples e isto prova seu engenho criativo:
as duas personagens que idealizam Georgina, dois jovens de boa classe e presos
então num mundo um bocado pobre e simplista, feito de trivialidades e
imaginação poética, mas esta última em extensa crise devido uma monotonia merencória
dos discursos literários e da maneira de ser literato numa Lima ainda
extremamente rude, tomada pela corrupção, pelos jogos de dominação da natureza
e exploração dos menos favorecidos, classe composta basicamente por índios e
gente camponesa de pouca ou nenhuma instrução. Isto é, se conteúdo da broma literária é suficientemente
vago, a atmosfera criativa forjada pelo narrador de O céu de Lima, situado ora muito de perto dos tais anos de 1900 e
ora muito contemporâneo ao tempo do próprio escritor, perfazendo uma ideia
bastante recorrente nas narrativas contemporâneas, é também um bocado rasa. E
isso favorece ao início de uma narrativa que queima alguns cartuchos até encontrar
uma guinada capaz de sustentar o leitor até o final do decurso. Estamos
inseridos numa ficção de traço histórico cujo conteúdo parece de natureza ficcional
mas que no seu interior se desenha outra ficção que é a forjada pelos jovens na
criação da jovem Georgina e da relação que esta desenvolve com o poeta
espanhol. E se isso não é suficiente, entrará aí outra fabricação ficcional,
que é o romance idealizada por Carlos e José – peripécia que se confunde com o
fora do romance, o embate do próprio Gómez Bárcena na composição de O céu de Lima.
Talvez seja
útil recobrar outras duas estratégias de construção da ficção contemporânea – a
transparência e a impossibilidade de narrar. A voz recorrente que comenta de
maneira muito distanciada as situações ficcionais, como se um jogador de
marionetes, responde pela primeira caracterização; depois, a fragmentação e descontinuidade
da narrativa, quando pensada a partir da perspectiva de que o romance de Gómez
Bárcena é o próprio romance ficcionado pelas personagens da narrativa de O céu de Lima, deixamos de lidar com uma
obra que se realiza para tratar de
uma obra que se mostra enquanto possibilidade.
É bem verdade que, neste procedimento estruturado escolhido pelo escritor
espanhol não há nenhuma novidade, mas não deixará de causar certo estímulo o
domínio dessa manipulação.
No final, O céu de Lima poderá ser acusado de ser
mais um exercício de masturbação mental e firula num labirinto vasto de tinta e papel (herança do um
Borges?), mas compreender a obra apenas por esse ângulo redutor é simplista e
não despreza o valor criativo, este gesto de maior importância no contexto em
que grande parte da crítica repete incansavelmente que todos os importantes
romances já foram escritos. Este romance de Juan Gómez Bárcena é típico de seu
tempo: este em que, o escritor está mais para um ermitão preso na extensa catedral
de livros escritos por séculos de cultura letrada e mais afeito portanto às
figurações imaginativas e não experimentais. Este romance insere-se, dessa
maneira, numa era pós-crise da narrativa, aquele medo catastrófico da morte do
narrador, do autor e consequentemente do romance. Todas essas mortes,
entretanto, ao que parece, ante peças de fôlego como as desse escritor espanhol
parecem servir de compreensão para uma sobrevida do romanesco? Provavelmente.
Agora, não
pense o leitor que, preso nessa Babel, este seja uma obra, como terão pensado
os detratores pelo fim do romance, despida de um conteúdo histórico e social
(histórico aqui, no sentido de uma compreensão de um aspecto coletivo e não
meramente individual). À medida que o narrador de O céu de Lima revela a linhagem,
por assim dizer, desses dois jovens peruanos – revelação que se constrói em
paralelo à formação da Georgina, a criação
deles – somos confrontados com uma diversidade de aspectos que continuam a
provar a estreita relação que o conteúdo romanesco mantém com o solo do qual se
nutre. Assim, sabemos sobre a desastrosa relação de formação das colônias da
América Latina, construída sobre a morte e a danação de seus habitantes e do
massacre impositivo de uma cultura de dominação; as detratações desses modelos culturais
de dominação sobre a humanização dos indivíduos, reduzindo as expressões
artísticas ao mero entretenimento de gente desocupada e fraca, serviço para mulheres
e homens sensíveis; o império do macho e o tratamento danoso sobre os que
estavam sob seu jugo; a construção das riquezas e de uma estirpe familiar tradicional
e de respeito; o exploração desenfreada do capital pela domínio e exploração
vulgar da natureza; etc.
Quando o
assunto recai sobre o campo da criação literária, este romance denuncia as
relações de interesse, a desvalorização dos escritores no início de carreira,
suas frustrações e ingenuidades, e fabricação de um modus vivendi de ser o grande escritor ou o capaz de escrever a
obra que revolucionaria o status quo
da arte – estas são algumas das obsessões que dominam a cabeça desses dois
jovens apartados dos grandes centros de criação, nessa época bastante restritos
ao continente europeu. Tanto assim que os falsos modelos por eles arquitetados,
de linguagem e de ser da persona Georgina funcionam com a justaposição de
resquícios daqueles elementos de natureza clássica e que fizessem jus ao
espírito elevado do poeta Juan Ramón Jiménez, aqui tornado numa espécie de
semideus, ainda que detratado por um grupo de infratores que o reduzem por fim
a um elemento bufão, a peça de uma trapaça, um chiste involuntário produzido
por vários elementos de natureza dicotômica, quais o da ingenuidade e o da
geniosidade, do respeito santificado e
logo medroso da aproximação verdadeira e do tom zombeteiro que se a situação
aos poucos se mostra para o leitor.
Mas, a fala
do bacharel Cristóbal resumirá o espírito do romance: o leitor compreende que
os laços que estabelecem entre o motivo do chiste e a personagem que não sabe
ser sua vítima, por mais sinceros que sejam (e é evidente que o são porque o
poeta permanece seduzido pela ideia de se corresponder com essa voz inteiramente
inventada também por sua imaginação) são fabricos de tinta e papel. Então, não
haveria estrutura melhor para recobrar essa criação que não a de um romance
inteiramente encerrado nesta Babel literária. Depois, a personagem terá sua
razão: o amor, não apenas este de tinta e papel vivido (ou suposto pela ficção)
entre o casal de correspondentes, mas os amores reais tiveram fôlego apenas
quando se passou a existir uma diversidade de materiais forjados pela cultura
da escrita. Se isso é aqui apresentado apenas como produto romanesco, o que não
deixa de ser uma imagem um bocado bela e grandiosa sobre o papel da literatura
na constituição das bases dos modelos que naturalmente passaram a nos
determinar, de uma maneira ou de outra, é possível de ser ampliado para a cultura
da letra. Além da literatura, o ideal amoroso constituiu (e constitui) um dos
debates mais profícuos nos âmbitos dos diversos saberes.
Nesse curso,
Gómez Bárcena engendra um romance situado no limiar: está entre a comédia, com
forte coloração e tons de trágico e recobra um retrato vivaz da história, da sociedade,
da cultura e do fazer do literário de maneira despretensiosa e agradável.
Firma-se numa linha sobre a qual todos nós, estudiosos ou não da literatura,
sempre gostamos de tratar formal ou informalmente: a vida e as situações dos criadores,
em parte tomados como figuras de alta envergadura, semideuses, mas, na verdade,
humanos como qualquer um de nós e suscetíveis aos mesmos fados. Afinal,
diferentemente do amor, uma construção de tinta e papel, a curiosidade é imanência
do homem desde o mito da criação. Ou não foi ela a que simultaneamente nos colocou
numa saída simultaneamente salvadora e condenatória?
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