Lolita, amor e perversão
Por Rafael Kafka
Lolita não é um romance de amor. Isso é tão óbvio, mas dito com um
ar de crítica profunda por pessoas de setores supostamente progressistas que
adoram censura baseada em uma leitura apologitiva de obras de arte. O
neologismo que emprego aqui serve para designar uma visão na qual as pessoas
acham que toda obra de arte serve para enviar uma mensagem grandiloquente sobre
a vida, talvez influenciadas demais por livros de Paulo Coelho e filmes de Jim
Carrey. O que elas esquecem é que arte é vontade de mostrar algo usando
determinada técnica. Nada mais. Mesmo que esse nada mais gere uma série de
efeitos e reflexões muito interessantes.
Assim, Lolita não se propõe a ser um romance romântico. Nabokov na verdade
nos ajuda a refletir na essência do sentimento amoroso como algo que pode ser
bastante pervertido. Pensei nisso quando vi o intenso Love, do brasileiro Gaspar Noé e depois decidi ler comentários
sobre o filme em uma rede social. Muitas pessoas dizendo que o filme na verdade
era sobre um relacionamento abusivo, o que me fez ficar impressionado com a
argúcia de tais pessoas. Mas o amor também é relacionamento abusivo.
O que acontece é que ainda temos
em nossa mente a ideia do amor colocada por Paulo em uma determinada carta
mostrando tal sentimento como algo altruísta e nobre. Mas o amor é tão somente
desejo de estar com o outro e esse desejo pode ser influenciado por uma série
de fatores. Numa sociedade patriarcal, por exemplo, o amor pode vir na forma de
um pai e marido opressor que se utiliza de violência para mostrar aos filhos e
à esposa quem é o rei da casa. Num romance como Lolita o amor pode vir na forma de perversão e crimes em sequência.
Assim, de repente a frase que
inicia esse texto precisa ser modificada: Lolita
não é um romance sobre o amor perfeito expresso por Paulo e o qual ainda
buscamos em nossas vidas. Lolita é um
romance sobre como as perversões humanas poluem os sentimentos dos mesmos e
como a liberdade de um ser pode destruir a existência do outro. Por mais
chocante que soe colocar a pedofilia no mesmo âmbito semântico da palavra amor espero que quem leia esse texto
entenda que na verdade o grande problema social de todos os tempos seja a
supervalorização do sentimento amoroso. Tal supervalorização gera um desejo de
dominação no outro e leva a abusos. Como diz Bauman em alguns textos sobre
amores líquidos, não ter amor nos tempos atuais é ser um fracassado, é estar na
lata de lixo da história.
Nabokov escreve um romance que
se utiliza muito bem da ambiguidade do texto literário. A todo instante nos
perguntamos se Humbert Humbert é um ser doente ou um criminoso frio com fortes
traços psicopatas a transformar seu sentimento de afeição em um desejo de
dominação de uma menina de doze anos apenas. Lolita, no começo, me fez pensar
em diversas crianças e adolescentes hipersexualizadas pela nossa sociedade as
quais muitas vezes entram em jogos de sedução impostos pelo meio social, mas na
verdade vivem uma espécie de brincadeira que acaba sendo levada longe demais
por adultos irresponsáveis e de comportamento criminoso. Mas para o fim do
texto já comecei a entender que nunca devemos confiar em um narrador
problemático como Humbert, uma espécie de Bentinho pervertido.
O que as versões cinematográficas
do livro parecem ter perdido é justamente esse aspecto narrativo do romance.
Humbert narra uma história em tom lírico o qual aos poucos se torna
perturbadora pelo modo como os traços psicopatas se mostram mais evidentes. Há
uma frieza calculista até no momento final da história que revelam a forte
possibilidade do professor pedófilo ter em todos os momentos assumido uma
postura de anular os sentimentos de Lolita até mesmo no plano da narração. Aos
poucos, começamos a ver em flashback as cenas de Lolita fazendo uma certa
manha, como nos filmes é exibido, como produtos de uma imaginação doentia que
em seu amor nada altruísta criou um esquema de ação e de representação no qual
a criança abusada virou uma pequena amada.
Isso só faz ressaltar o brilho
narrativo de Nabokov nesse romance. Mesmo sendo um monólogo, Lolita assume uma série de elementos
típicos dos romances polifônicos. Humbert é um ser que em sua narração deixa
diversas camadas de si à mostra e leva o leitor a se confrontar com um cenário perturbador
de pensamentos obcecados e de abusos constantes. A menina Lolita quase não tem
voz dentro da história e mesmo no final do romance, quando é revelado o dano
causado pelo professor na vida da afilhada – que fica com ele após a morte
bizarra da mãe da menina – não por um discurso direto da moça já grávida, mas
sim pela imaginação de Humbert que sequer permite a Lolita se expressar por
conta própria.
Lolita não é um romance sobre o amor altruísta descrito por Paulo. Lolita é sobre perversão e sobre
perversão se passando por amor. Ou sobre amor como simples desejo do outro que
vira doença. Amor mais perversão. Lolita não
é um romance moralista e muito menos apologético, como diversas pessoas querem
avaliar e censurar a obra. É um romance que pega um tema ácido e decide se
debruçar sobre ele. O interessante da literatura é justamente a possibilidade
de lidar com temas espinhosos que de repente, em outro tipo de discurso, soaria
ruim, bizarro. Como a literatura não possui a missão de dar lições e ensina sem
ensinar, ela pode falar de qualquer coisa, inclusive de um sujeito que cria uma
tara por meninas de doze anos e vê nisso todo o romantismo do mundo.
É que na verdade muito de nossos
sentimentos amorosos são viciados. Quantas pessoas neste exato momento não
estão vivenciando absurdos em nome do amor? Nabokov pode ser acusado tão
somente de pegar um caso extremo para nos fazer refletir – assim como Gaspar
Noé fez – sobre as idiossincrasias e os modos de relação com o desejo pelo
outro. Claro que Lolita pode e deve
ser usado como elemento para se discutir a questão dos abusos infantis. A
leitura do romance mostra que Humbert não será morto por ter abusado da criança
e sim que ele cometeu o crime de assassinato ligado a essa paixão pervertida.
Nabokov revela em seu romance a argúcia de abordar o espinhoso tema de abusos
sexuais que ocorrem dentro dos laços familiares, algo que não serve de muita
preocupação para quem quer fechar museus por performances envolvendo homens
nus.
Mas por mais que o autor russo chame
a atenção para este problema, ele nada quer ensinar. Ele se coloca no ponto da
ambiguidade entre a pessoa doente e a pessoa criminosa. Nós é quem definimos
qual o matiz das imagens de combinando é melhor para nós. Porém o que é mais
importante e o que o autor jamais poderá responder: como faremos para cuidar de
nossas crianças? De forma secundária e ampliando a questão do abuso além da
perversão pedófila, o romance também nos leva a pensar em outro questionamento:
qual a forma de lidarmos com os diferentes abusos a que nos submetemos ou
submetemos os outros pelo nosso insistente desejo de ter algo a que chamamos de amor em nossas vidas? Perguntas que
fazem o romance ainda mais espinhoso e difícil de ler, mas ainda assim
necessário e prazeroso pela capacidade de revelar o quão problemática, doentia
e cruel a mente de um ser humano, ainda mais do gênero masculino, pode ser.
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