História da menina perdida, de Elena Ferrante
Por Pedro Fernandes
A leitura
integral dos romances de Elena Ferrante levará o leitor a uma compreensão de
que sua literatura prima pelo desconcerto da existência. E a extensa história
das amigas Lena e Lila, faces dicotômicas – no sentido não de mera oposição mas
de posições e perspectivas distintas entretanto marcadas pela interrelação
entre uma e outra –, atesta essa compreensão. História da menina perdida, o ponto final de um romance cujo
interesse é oferecer um panorama acerca de Nápoles à maneira do que outros escritores
do realismo e do naturalismo fizeram de suas cidades (embora a própria
narradora encerre acreditando-se incapaz de ter alcançado essa possibilidade),
é a confirmação sobre o grande desencontro entre o sujeito e o mundo. A vida é
um mover-se e não importa a maneira como o fazemos, se nos apegamos às nossas
raízes e lutamos para reverter os lugares comuns ou se esquecemos delas numa
espécie de fuga do destino, estaremos reduzidos sempre à mesma e dispersa incógnita
acerca do sentido da existência.
Soma-se a
isso, uma extrema sensibilidade para tratar acerca das relações pessoais,
familiares e sociais, o que faz da sua apropriação do realismo algo inovadora. Esta
parece ser, aliás, a contribuição valiosa que a escritora empresta à criação
literária. Isto é, não estamos diante da repetição dos mesmos protocolos
formais da narrativa clássica – embora o mesmo não se diga dos estruturais. Um
dos grandes trabalhos de Ferrante é o de estabelecer uma estreita relação entre
os lugares históricos e as vidas individuais e neste panorama Nápoles não se
mostra apenas como um pano de fundo sobre o qual se desenvolvem as ações, mas,
em grande parte, a cidade influencia e determina a vida de seus habitantes: é a
degradação e a impossibilidade de insurgir da cidade que obriga Lena a imigrar
e recriá-la à sua maneira pelas sendas da ficção e são estas mesmas características
que determinam Lila a acreditar que sua tarefa é a de contribuir para a construção
de outra dimensão do lugar pela reversão de forças do capital ou a sua compreensão
mais profunda, como demonstra ao fabular para a filha de Lena, Imma, sobre a cidade.
Não se
trata, entretanto, de um jogo de determinismos no qual as personagens são o que
são por causa do espaço, mas de embate entre o homem e a sua geografia,
movimento este que no ir e vir dialético das formas, favorece o trânsito de
influências entre sujeito e realidade, embora a impressão que fique para quem
assume esse embate é da contínua repetição, sem modificações, da história. Por
exemplo, depois do retorno a Nápoles para novamente sair da cidade, Lena constata
que, apesar das pequenas transformações arquitetônicas operadas na fisionomia
do lugar, a degradação, o império do esconjuro, da miséria e de toda sorte de violências
derivadas daí não se alteraram. Da mesma forma, Lila vê que todo esforço ao
lado de Enzo ao integrar seu bairro no centro das grandes inovações
tecnológicas – com a consolidação do advento do computador – parece ser vão
quando descobre perder um a um de sua família para as drogas (embora o filho se
recupere do vício) ou pelas perseguições políticas num contexto quando a Itália
ensaia uma revisão da sua própria história.
Pessimismo
ou fatalismo? Nenhuma coisa nem outra. Elena Ferrante atesta que a sonhada
viragem coletiva da humanidade é uma poderosa utopia que fracassou. E em todos
os aspectos porque sua visão alcança do individual ao coletivo. Não há uma
força invisível capaz de condicionar todos para um mesmo horizonte embora uma
grande parte nutra as mesmas expectativas – ainda que não se deem conta disso. Lena
é vista (e se vê) como a que não se move no pântano histórico e social de seu
lugar e nele possa operar as transformações necessárias a uma revisão do establishment. Entretanto, é quem
levará, através de sua literatura, aos do seu universo olhar para si e para sua
história, um movimento capaz de favorecer uma revisão sobre o que de pior os
definem. Encontra-se aqui uma das contribuições mais significativas do exercício
da escrita sobre as transformações histórico-sociais. As revoluções são
individuais e o difícil é compreendermos isso. Talvez esteja justamente nessa
incompreensão o caminho possível para outra realidade, a que só acreditamos
possível se por um esforço e uma revisão coletivos e que a literatura há muito
tenta dizer que o caminho é outro.
A história
das protagonistas dessa obra de Elena Ferrante reanima a compreensão de que,
nossos esforços contribuem de alguma maneira para o passo por pequeno que seja
para a humanidade, a menina que num pequeno descuido desapareceu sem deixar
rastros mas é um espectro recorrente do qual não devemos nunca nos afastar.
Para isso, não é desacreditando de todo pessimismo inerente à existência,
porque afinal, bem sabemos que a nossa história é marcadamente determinada pela
falha trágica, da qual se é possível escapar. Tanto é, que Lena, depois de muito
acomodada a uma condição anos-luz melhor que a de seu passado e dos que ela
deixou, precisará retornar às mesmas origens para garantir outra impulsão de existir.
Se por um lado isso recobra a ideia da experiência fundamental ao narrador por
outro reafirma a necessidade de não nos desvincar das condições que nos cobram
intervir.
Lena, quem
escreve as narrativas napolitanas, tenta pelo amálgama de situações, o cotejo
da sua relação com Lila e das vidas do bairro onde cresceu, construir uma
unidade sobre a dispersão e descontinuidade dos sujeitos e da história
interessada em oferecer com isso uma resposta que seja à pergunta por que e
para quê existimos. Embora o que encontre não se mostre de maneira alguma
satisfatória. Não desconsiderando o pessimismo e o fatalismo, ela perceberá que
no fim, a vida é só danação e morte. Mesmo as circunstâncias históricas e sociais
das quais nunca nos apartamos, porque desse barro somos feitos e estamos
imersos desde quando nos organizamos comunitariamente, passam por dimensões que
muitas vezes não estão ao nosso alcance e controle individual revertê-las. A
existência é isto: misto de acaso porque se reveste de forças dos outros e de
nossas atitudes e escolhas.
História da menina perdida assinala o
retorno de Lena a Nápoles depois de colocar um ponto final no casamento bem-sucedido
com o professor Pietro. Não é a condição de pouco à vontade fora da terra natal
a motivação do regresso; é para se permitir realizar uma fantasia que nasce
quando criança e acompanha durante boa parte de sua vida: o amor com Nino. A
inserção desse imbróglio narrativo favorecerá a Elena Ferrante perseguir um dos
temas recorrentes em sua literatura: a condição da mulher em todas as
dimensões. Não é que esse tipo de amor, alimentado pelas cores infanto-juvenis,
esteja condenado ao fracasso desde sempre, mas pelas características negativas
visíveis apenas de entrevista ao longo do romance (porque mesmo depois de tudo,
Nino não será pintado de um todo mau pela narradora), atestam uma condenação da
personagem. É fato que, a quem depositamos um excesso de encantos e perfeições,
as chances de desilusão são sempre muito altas – é já senso comum o que Platão
definiu como incompatibilidade de mundos, o vivido e o idealizado.
Sem nenhum
idealismo, com Lena e Nino, Elena Ferrante parece atestar quão significativas
são as amarras do amor romântico no amplo processo de segregação das mulheres
pelos homens. Embora Lena demonstre sempre (pode ser apenas elucubração sua) certa
pulsão inferior a amiga, os romances do ciclo napolitano (e também outros da escritora
italiana) atestam que, mesmo aquelas que demonstram uma liberdade definitiva
sobre seus mundos de opressão machista não escapam à força do amor, apresentada
como uma marca indelével da existência e vitimadora da mulher. Lena, talvez
mais ainda, porque, imiscuída no universo literário, sempre preenchido das
forças desse sentimento, parece ganhar uma dimensão trágica à maneira de Emma
Bovary, quando aceita fantasiar a possibilidade de ter Nino só para si – ainda
que sobrem os alertas sobre a infidelidade dele.
É significativa
a aproximação de Elena com o seu passado: primeiro às margens, quando escolhe
viver num apartamento custeado por Nino noutra região de Nápoles distante do
bairro onde viveu, embora todas as situações lhe cobrem uma aproximação
impossível de fugir, seja a doença e a morte da mãe, sejam os problemas dos
irmãos envolvidos com o tráfico de drogas, seja ainda o restabelecimento dos
laços com Raffaella; depois, totalmente, quando vem abaixo a relação figurada com
Nino e vai viver num pequeno apartamento no mesmo edifício da amiga. Se por um
lado o retorno sorrateiro ao bairro de origem é o que leva a personagem a acreditar
no seu fracasso (retornam as mesmas inquietações da insegurança de quando jovem
mais o medo de ser descoberta como uma farsa e a destituição do ideal amoroso),
por outro, sua rápida integração ao cotidiano complexo do lugar lhe favorecerá
a tomada de outra perspectiva sobre seu passado e a compreensão do seu
presente, ambas matérias principais de sua obra.
A estadia em
Nápoles levará Lena a reconstruir sua carreira como escritora e servirá, de uma
vez por todas, para consagrá-la como figura importante no cenário literário italiano
pela maneira como revela aos de seu país outra dimensão – mais crua e brutal,
porém mais verdadeira e profunda – da sua identidade. A própria Ferrante num
exercício metaliterário e numa releitura sobre sua biografia? Muito cedo para essas
conjeturas. Mas a propriedade com que a narradora recupera situações e
sentimentos, em parte porque coloca pela prática dos protocolos estruturais do
exercício realista, é muito verdadeira para ser mera ficção. Há uma honestidade nas vozes que constroem seus relatos
e isso nos leva a acreditar que a única forma de o medir é pela força do
experienciado – sobretudo se o leitor tiver contato com Frantumaglia, o livro de textos em que a própria Elena Ferrante comenta
sobre algumas nuances de sua literatura.
Neste último
romance também se mostra mais claramente qual o papel do escritor no pântano da
história e sábio não é quem se contenta com o espetáculo do mundo – eis a lição
mais cara que a personagem e narradora precisará aprender com sua amiga e rival
Lila, numa ocasião quando toda vida de conto de fadas dá sinais de perecer ante
as circunstâncias cruas da realidade fora dos livros e do universo literário.
Se só existimos enquanto embate com o mundo, a escrita deve ser uma das
ferramentas capazes de compreender e servir ao escritor como modo de
intervenção. Uma lição que, embora perseguida desde a infância com o ideal de
um romance capaz de tocar o leitor pela fabulação, só é capaz de ser aprendida
na maturidade.
Das relações
pessoais, a série napolitana, lida com outro tema que diríamos é estruturante
da obra, o poder. Uma tentativa de compreensão sobre suas variabilidades e
formas. Desde o poder que exerce de cima para baixo – o da família Solara sobre
a gente simples do bairro, aos micropoderes que atuam nas relações
interpessoais. Ou seja, o poder não se apresenta apenas no sentido da voz que
manda e o sujeito a obedece, mas no sentido da sua atuação pulverizada em toda e qualquer parte. Entre Lila e Lena, só
para retomar o vetor principal da narrativa, estabelecem-se forças que exercem
um papel de uma e outra do princípio ao fim de suas trajetórias – papel este
que chega a ser determinante em grande parte das escolhas que as duas
personagens tomam para si. É muito simbólico neste caso a manifestação dessa
relação na convivência entre as duas personagens no mesmo prédio: Lena irá
morar num apartamento muito simples sobre o apartamento ao que parece de melhor
estrutura de Lila. Serão os únicos anos em que, juntamente com os da infância e
primeira juventude, as duas têm uma profícua relação e, portanto, são os desencadeadores
do interesse de Lena em investigar o repentino desaparecimento da amiga recontando
suas trajetórias.
História da menina perdida não
responderá claramente sobre essa busca. Elena Ferrante, propositalmente, nos deixa
imersos nessa dúvida que se fará eterna como outras grandes incógnitas da
literatura. Não se pode, mesmo que o senso de depuração esteja e muito em alta,
saber tudo sobre o outro se nem mesmo sobre nós conseguimos saber.
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