Augusto Roa Bastos: entrecruzamentos do poder e da rebeldia
Por Geney Beltrán Félix
O nome de
Augusto Roa Bastos – sua pertinência, sua posteridade – pareceria assentar-se
de forma definitiva nas páginas de uma obra: Eu, o supremo. O autor paraguaio (Assunção, 1917–2005) chegou ao
ponto mais alto de sua trajetória artística em 1974 com a publicação de um
romance ambicioso e grandioso mas sobretudo anômalo. Quem o lia em 1953 com seu
livro de estreia, os contos reunidos sob o título de O trovão entre folhas ou mesmo em 1960 com seu primeiro romance, Filho do homem, dificilmente haveria
imaginado que dessa mesma pena sairia uma obra-limite de linguagem e imaginação
como findou sendo o artefato verbal com que Roa Bastos tornou em alta matéria
literária a figura do ditador paraguaio José Gaspar Rodríguez de Francia
(1814-1840). E, se formos mais longe, tampouco haveria muito nos tratamentos
anteriores da figura do ditador e da luta política na América Espanhola que
poderiam adiantar os modos como Roa Bastos retrata e, mais exatamente, encarna
o poder na palavra ao longo de Eu, o
supremo.
O exílio e seus distanciamentos
A partir de
1947, o presidente Higinio Morínigo venceu uma insurreição militar e, já sem
inimigos, se estabeleceu no poder impondo uma ditadura no país sul-americano. O
jovem jornalista e escritor Augusto Roa Bastos se exilou na Argentina. O exílio
não durou pouco tempo: somou mais de quatro décadas e levou Roa Bastos de
Buenos Aires a Toulouse. A ditadura de Alfredo Stroessner (1954-1989) se converteu
na realidade de fundo com a qual o autor tacitamente dialogou através de suas
diversas explorações do passado do Paraguai.
No primeiro
Roa Bastos há mais que o patente cariz político de seu compromisso com a escrita
de ficção. Os contos de O trovão entre
as folhas propõem uma representação agônica, contraditória, da história e
da realidade paraguaias. Este é um país dominado pela injustiça, o
autoritarismo, a desigualdade e, sobretudo, a violência do Estado. As personagens
em sua maior parte se movem entre a rebeldia e o fracasso. Não há grande
horizonte para a esperança num futuro diferente e, mesmo assim, a luta não cessa:
várias vezes a voz e os feitos do indivíduo se levantam contra o poder abusivo
numa sociedade de características semifeudais e estrutura política fechada. Assim, o paraguaio é mostrado no início da ficção
breve de Roa Bastos, como um povo devoto e persistentemente dedicado à resistência.
Por exemplo,
em “A escavação”, narra a história de um grupo de presos que buscam recuperar a
liberdade cavando um túnel. As circunstâncias que os levaram à prisão são claras:
tratam-se de presos políticos. “A guerra civil havia terminado seis meses
atrás. A perfuração do túnel durava quatro”. A narrativa se centra numa
personagem chamada Perucho Rodi nos momentos em que, ajudado pela borda
afiada de um prato, cumpre seu turno de continuar a escavação, até que uma
tragédia acontece. Graças ao discurso indireto livre e a exploração psicológica,
o texto constrói uma diegese não isenta de tons claustrofóbicos, acompanhando o
ir e vir da consciência de Perucho enquanto escava e o oxigênio se torna escasso.
Não é difícil ler este conto como uma aguda metáfora da condição de
emparedamento e isolamento em que vive a dissidência no Paraguai por tratar da
época que trata. O pessimismo que ganha forma no futuro adverso de Perucho Rodi
faz clara contraposição, nunca superada de um todo, entre a perseverança do
rebelde e sua impotência ante um poder que parecia ter como cúmplices o destino
e a natureza.
Uma primeira
nota que é possível destacar a respeito das decisões técnicas da voz narrativa: logo
depois da agonia do preso, a narrativa não se nega a tonar explícita o funcionamento
do poder ante o burburinho público: “No dia seguinte, a cidade soube apenas que
alguns quantos presos haviam sido mortos no momento em que pretendiam fugir por
um túnel. O comunicado pode mentir com a verdade”*. Neste concerto, o poder conta
a aquiescência de um aliado submisso, o da imprensa: “Existia uma testemunha
irrefutável: o túnel. Os jornalistas foram convidados a examiná-lo. Ficaram satisfeitos
ao ver a boca de entrada na cela. A evidência anulava alguns detalhes insignificantes:
a inexistente saída que ninguém pôde ver, as manchas de sangue ainda frescas na
vala abandonada”. Estas intervenções da voz narrativa sem dúvida poderiam ser acusadas
de debilitar a complexidade da ficção ao tornar tão expressa a intenção de
denúncia. A narrativa termina com uma nota que aponta à circularidade do destino
dissidente no Paraguai: “Pouco depois o buraco foi preenchido com pedras e a cela
[...] voltou a ficar abarrotada”.
Há, sim,
algum exemplo em O trovão entre as folhas
de uma certa dose de humor na representação das relações do indivíduo com o
poder. Ocorre assim no notável “Mano Cruel”, em que se perfila a trajetória de
uma carreira – o homem significativamente chamado Mano Cruel – a partir da
perspectiva de uma de suas vítimas, quem também foi, talvez não tão
inadvertidamente, seu cúmplice. Em “Audiência privada”, um homem consegue
visitar um poderoso ministro para apresentar-lhe um ambicioso e muito útil
projeto de aterro de alguns pântanos onde vivem milhares de pessoas em condições
de insalubridade. O diálogo é paradigmático: ao idealismo e à falta de dobras
do “quase engenheiro” se opõe a desconfiança, a astúcia e o maquiavelismo do
político, quem pareceria se interessar menos na “salvação dos colonos que vivem
nesses pântanos insalubres, tomados pelo paludismo, pelas misérias”, e mais
pelas casuais espúrias motivações do visitante. Este afirma que o único que lhe
importa “é a sorte dessa pobre gente”. O todo-poderoso o questiona: “Não estará
querendo você se converter num caciquezinho desses que sobram por aí?”
A solução
dramática de “Audiência privada” destaca um ponto de ambiguidade: o indivíduo é
traído por um velho, muito próprio, impulso cleptomaníaco que propicia sua
detenção. Ao tentar roubar, sem estar consciente disso, um objeto que pertence
ao ministro, o homem pareceria finalmente equiparar-se a este último. Seu
altruísmo redentor pareceria não ser uma inclinação autêntica, mas o resultado
de uma decisão de renegar sua favorecida classe social.
Em termos
gerais, os contos de O trovão entre as
folhas não precisam de complicações e dúvidas. Como se aprecia em, para ciar
dois exemplos, “O velho senhor bispo” ou “Regresso”, o jovem contista não
terminou de separar a indignação da criação dramática. Ainda não adentrou nessa
zona de conhecimento em que o poder se revela não como uma condição alheia mas como
uma força presente em vários e amplos espectros da existência humana. Não é
grande coisa trazer ao conto uma recorrência: o uso da voz narrativa em terceira
pessoa tende a buscar explicar os movimentos psicológicos e as motivações das
personagens. É a condição literária, supomos, que impõe a distância ao escritor;
o longo exílio sugeriria neste primeiro momento uma difícil apreensão de seu
próprio sentimento.
Há, pois, em seus momentos menos inspirados algo de educativo
que ainda parece vincular o jovem Roa Bastos a escritores das gerações
anteriores da América Espanhola, como Rómulo Gallegos ou Ciro Alegría. A ficção
deixará claro de que lado se alojam as convicções do autor. Noutros casos,
ainda é visível essa pegada do “narrador visitante” que asfixia o “narrador
nativo”: como acontece em “O karaguá”, um homem da cidade faz uma viagem ao
interior profundo do Paraguai e descobre uma realidade violenta até certo ponto
tingida pelo exotismo. Este último se vê inclusive no fenômeno de diglosia do
intelectual hispano-americano destacado por Ángel Rama, que distingue a fala correta
da cidade ante os parlamentos, quase marcados de folclóricos, das personagens
locais, nas quais o recurso do guarani pareceria uma condição excêntrica. É curioso:
o narrador onisciente exerce, ao pretender monopolizar a interpretação dos acontecimentos,
uma condição autoritária sobre a ficção que debilita a ambição de uma crítica
política mais irrefutável, em termos dramáticos.
Dualidade ante a guerra
A maturidade
de Roa Bastos não tardou muito: chega com Filho
do homem. Há aqui um romance de seu tempo e seu continente. Está em suas
páginas o impulso renovador e vanguardista da narrativa latino-americana de
meados do século XX. É uma obra afim e parente de Pedro Páramo, Los recuerdos
del porvenir, Sagarana ou A cidade e os cachorros. Ao mesmo tempo,
neste primeiro romance de Roa Bastos se encontra a interlocução ficcional, sem
maniqueísmos, com o futuro histórico e político de seu país.
Filho do homem tem uma estrutura fundada
na dualidade. Na primeira parte, através de capítulos intercalados, o romance
recorre a duas vozes narrativas. A primeira é a do tenente Miguel Vera, quem
esboça vários episódios de sua vida, desde sua infância até sua participação na
Guerra do Chaco e seu regresso à vida civil. A segunda voz é uma onisciente
que se centra na história de Cristóbal Jara, desde antes de seu nascimento até
sua organização numa intentona rebelde e sua morte sacrificial na guerra. São,
os de Miguel e Cristóbal, destinos paralelos e contrapostos: atualizam o
antagonismo do traidor e do herói, do salvo e do salvador, do homem que fala e
do homem que atua.
A dialética
que estabelece entre a primeira e a terceira pessoa vai mais além de um recurso
técnico que exiba a destreza narrativa do autor. É algo muito mais orgânico: a
possibilidade que outorga a voz a Miguel contar sua história se opõe à negação
da voz onisciente para lhe dar o seguimento aos movimentos interiores do
irredutível Cristóbal. Fala mas fracassa: formula, recorda, confessa e, ainda
assim, no plano dos feitos nunca está à altura de suas ambições de heroísmo
militar. Cristóbal não tem voz mas atua. É um sobrevivente e um herói. As
profundidades de seu pensamento e sua sensibilidade são um mistério: tende a
ser reportado desde a percepção de seus amigos e companheiros, embora ao menos
a voz narrativa nem sequer se permite à focalização numa personagem em particular. Apesar desta cegueira – ou talvez devido a
ela –, Cristóbal se revela como uma personagem de perfis poderosamente
delineados: pouco menos que um emblema da resistência e a rebeldia, em suas
ações faz ver uma força que transcende sua condição de indivíduo e sugere uma
inclinação perene da comunidade.
Além das
vozes narrativas, em Filho do homem
se destaca a operação fragmentária. Os capítulos abarcam distintos momentos que
vão de início do século XX até aos momentos posteriores ao término da guerra.
Mais: o primeiro capítulo enlaça a história de uma das personagens secundárias com
as origens da nação. O velho Macario reporta como seu pai, o mulato Pilar, era
o único à serviço de todas as confianças de Karaí Guasú, o ditador Rodríguez de
Francia.
“Esta tarde
encontrei uma onça de ouro sobre a mesa [...] Não pude resistir à tentação. Peguei a onça. Da minha mão saiu o
tiro e a fumaça e o cheiro a carne queimada. Larguei a onça e corri para me
esconder. O próprio Karaí Guasú havia colocado a onça num braseiro. No seu
retorno me mandou chamar. Me fez estender a mão. Veio a chaga da verdade. Já
era castigo suficiente. Mas ele mandou que meu pai me desse cinquenta palmadas
em sua presença”.
A falta do
menino Macario provoca a queda de seu pai, quem aceita castigar o filho mas a
partir disso se revolta e o ditador finda por mandá-lo fuzilar. Deste breve
episódio resgatamos dois pontos. O primeiro tem a ver com a liberdade que
adquirem as personagens secundárias de assumir a voz e dar testemunho e isso
sem requerer em suas feições de uma aparência de folclorismo linguístico
através de contrações idiomáticas. O segundo toca a própria estrutura do romance:
a presença da figura patriarcal do velho Macario no povoado de Itapé é
resultado da arbitrariedade no uso do poder que caracteriza o ditador. Décadas
depois de sua morte, Rodríguez de Francia continua mostrando a extensão de sua
influência sobra a vida dos paraguaios. E esta relação do presente com o
passado é sublinhada por Roa Bastos sem necessidade de recorrer à essencialismo
a-históricos como os que enfraquecem, por exemplo, a obra de Carlos Fuentes.
A
fragmentação de Filho do homem
permite, assim, ligar distintas épocas da história paraguaia através de uma
seleção de saltos temporais. Esta característica tem chamado atenção de críticos
e estudiosos. Pedro Lastra observa como os capítulos, considerados como
“relatos entrelaçados [...] acusam – estimados independentemente – uma
autonomia notória”. Não falta quem inclusive chega a supor que não é este um
romance mas uma compilação de relatos apenas arbitrariamente unidos. É difícil
estar de acordo com afirmações como esta Filho
do homem desloca a exigência de linearidade temporal ou de fixidez
estrutural mas oferece ao contrário uma organicidade
temática e dramática e isto se consegue mediante o paralelismo das histórias de
Miguel e Cristóbal e sua relação crítica com a história nacional que conduz ao
sacrifício das juventudes paraguaias nos hostis territórios do Chaco.
Assim fala o poder
Apesar da
audácia técnica que se adverte em Filho
do homem, nada nos preparava para chegar às páginas anômalas de Eu, o supremo. Há que aceitá-lo:
trata-se de uma obra extrema, exasperante, excessiva. E genial. Não há em suas
páginas complacências com um leitor fácil ou comedido. Em sua vocação
pantragruélica, Eu, o supremo leva ao
limite as possibilidades da ficção para abordar a História.
Eu, o supremo é um concerto de vozes em
que um solista predomina: o próprio ditador Rodríguez de Francia. Roa Bastos
deixou para trás a fidelidade à terceira pessoa que prevalece em sua primeira
ficção e o realismo autobiográfico dos capítulos ímpares em Filho do homem. O “eu” de sua
obra-mestra é um “eu de eus”, assim por dizer. É um eu múltiplo, irrompido,
insaciável. À parte da “circular perpétua” que o Supremo dita a seu amanuense
Policarpo Patiño, na obra se intercalam passagens de um caderno privado do
próprio Rodríguez de Francia, citações de outras fontes historiográficas,
anotações de um “compilador”... Importa menos que as versões se oponham e corrijam;
o que sobressai em Eu, o supremo é a
vontade da fala, ou das falas, de abarcar tudo: todos os acontecimentos, todos
os tempos, todas as pessoas. Essa vontade nasce de um eu que, insistimos, se
desdobra ou multiplica (se autonomeia “Eu-Ele”) e que é capaz de romper as
limitações de conhecimento que haveria de impor sua pertinência a uma só época.
Não há forma de por uma barreira ao Supremo, pois os tempos todos convivem em
sua voz: o passado, o presente e o futuro (“o futuro é nosso passado”, anota
sem incongruência em alguma página). De igual forma, a lógica racionalista
tampouco resiste e em sua narrativa os feitos podem ocorrer de formas que,
assepticamente, qualificaríamos de irreais ou maravilhosos. Nada o impede de
narrar como acompanhou em 1811 o herói argentino Manuel Belgrano numa cavalgada
pelas nuvens... graças a um recurso que lhe permite contar com cavalos
voadores.
A própria
língua está sob assédio. Não é raro por isso que o ditador tenha uma fixação
por jogos de palavras. Estes abundam e tornam nauseabunda a conversação para
seus interlocutores. A desmesura metaverbal do Supremo é a expressão superior
de sua ambição de dominar tudo, até os sentidos múltiplos que estão nas
palavras.
A obsessão
logorreica do Supremo não é uma intenção por fixar uma versão da História. É a
ambição superior do poder: criar realidade através da linguagem. “Escrever não
significa converter o real em palavras mas fazer com que a palavra seja real”.
Há, assim, no Supremo, uma locução inesgotável que ansiaria romper com a
obediência à linearidade entre significado e significante. “Escrever dentro da linguagem torna impossível
todo objeto, presenta, ausente ou futuro”.
O
“compilador”, que faz suas aparições em notas de rodapé ou em textos intercalados
em coluna dupla, é uma sorte de rival débil do Supremo, embora a própria obra o
revela noutra condição: é seu herdeiro. “Carpincho”, como é apelidado por um
amigo da infância, tem a obsessão de possuir a pena (uma “cachiporrita de madrepérola”) que havia pertencido ao ditador. Mas,
no momento de recebê-la, nas vésperas de seu exílio, em 1847, recebe também uma
espécie de maldição: “Te esperam muitos tempos maus, Carpincho. Tu vais te converter
em errante, traidor, desertor. Vão te declarar infame traidor da pátria. O único
remédio que te resta é chegar até o fim. Não ficas pelo meio”. Não se trata
apenas de um destino de exilado. Também a maldição recai sobre a escrita: “Se chegares
a escrever com a Pena, não leias o que escreves [...] Verás amontoadas em
linhas coisas terríveis no sombrio que farão suar e gritar até as árvores
apodrecidas pelo sol...”
A relação do
Supremo e o compilador insiste em sublinhar a continuidade do passado no
presente e também restabelece a oposição, já marcada em Filho do homem, entre o homem de ação e o homem de escrita. O
Supremo faz e fala; concentra as duas fases do poder. O compilador carece de
poder e portanto vive numa condição subsidiária em relação ao ditador: o de recuperar
suas palavras, comentá-las, compô-las. Mas sem o seu labor o Supremo estaria
num limbo de supostos arquivos bolorentos. Daí que sua compilação é mesmo um
juízo, uma refutação e uma apropriação cúmplice das palavras do ditador. Quem deve
mais a quem? Quem fala graças a quem? O próprio autor voltou a levantar um exercício dessa natureza em seu romance Vigília
do almirante (1992), uma notável busca na complexidade da personagem
Cristóvão Colombo, mas Eu, o supremo
permanece como obra-limite, pois exibe a complexidade de toda incursão nos
espaços da ficção histórica, e esta hiperconsciência de sua elusiva natureza em
volta da mais orgânica exploração do poder ditatorial como não existido outro
na América Espanhola.
* Esta e todas as traduções de trechos de obras ao longo deste texto não segue as traduções oferecidas no mercado editorial em língua portuguesa; foram realizadas a partir do original em espanhol. Este texto é também a tradução de "Augusto Roa Bastos: entrecruzamientos de la rebeldía e el poder", publicado em Letras Libres.
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