A partir de quando alguém que escreve se converte num escritor?
Por Cristian
Vázquez
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Todo dia 13
de junho na Argentina é celebrado o Dia do Escritor. A data assinala o nascimento,
em 1874, de Leopoldo Lugones, a figura mais conhecida da literatura deste país
durante as primeiras décadas do XX. Se for para internacionalizar um pouco este
assunto, pode-se acrescentar os aniversários de Fernando Pessoa, nascido em
Lisboa no dia 13 de junho de 1888, e de Augusto Roa Bastos, quem chegou ao
mundo em Assunção na mesma data mas de 1917, isto é, há um século e poucos
dias.
Em tais ocasiões
em que as saudações e as felicitações vão e vêm, uma dúvida recorrente me toma
mais uma vez: em que momento uma pessoa que escreve passa a ser um escritor ou uma
escritora? A partir de quando alguém
é escritor? Minha resposta, admito desde já, é “não sei”. Mas acredito
que pensar a questão pode levar a algumas reflexões interessantes.
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Digamos,
para começar, que nos limitaremos aqui a falar de escritor a pessoa que escreve narrativa, poesia ou teatro. Quantos
escrevem essas coisas? Muitos. São todos escritores? Não parece que o epíteto
se possa aplicar, por exemplo, a todos os alunos de oficinas literárias ou a
todos os adolescentes que escrevem poemas de amor... Haverá, portanto, alguma
diferença.
Uma primeira
ferramenta que vem à mente para distinguir os escritores das pessoas que escrevem
é a publicação. Quando alguém publica seu primeiro livro, poderíamos dizer, se
torna um escritor. Patricio Pron em seu artigo “Como alguém se transforma num
escritor? Dez notas sobre o primeiro livro” (ver link abaixo), traduzido a alguns meses neste
espaço, nos fala um pouco sobre isso. Começa com uma citação de Ricardo Piglia,
quem escreveu em Os diários de Emilio
Renzi que “o primeiro livro é o único que importa, tem a forma de ritual de
iniciação, uma passagem, uma travessia de um lado para outro”.
Mas em
seguida levanta-se a questão: é preciso ser publicado para ser um escritor? É
um oximoro falar “escritores inéditos”? Para publicar um livro é necessário havê-lo
escrito e quem escreve um livro já enquanto escreve é um escritor. Embora até
esse momento não haja publicado nada. Pensemos num caso mais extremo: um autor
X escreve cinco, seis, dez romances, mas não consegue publicar nenhum. Até que
enfim um editor o descobre e publica todas as suas obras quase ao mesmo tempo.
Apenas nesse momento o autor X se torna um escritor? Acaso escreveu cinco,
seis, dez romances sem sê-lo? Suponho que estaremos de acordo que a resposta a
todas as perguntas deste parágrafo é “não”.
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Imaginemos
agora que nosso autor X haja dedicado muito tempo e esforço à escrita durante
toda a sua vida – composto poemas, contos e romances, trabalhado seus textos
reiteradas vezes, corrigido, reescrito, descartado e voltado a corrigir até ficar
de alguma maneira satisfeito com sua produção. E então não encontra editor nem chega
a publicar nada: morre inédito. Depois
de sua morte se descobre sua obra. Diremos que morreu um escritor?
A fábula se
parece muito com a extraordinária história real de Vivian Maier. Ela trabalhou
toda sua vida como babá e nunca se preocupou por revelar as fotografias que
fazia; alguém as descobriu por acaso depois de comprá-las num leilão em Chicago
em 2007 e as divulgar: são 100 fotos que constituem uma obra magnífica. Agora,
ao falar de Maier, dizemos que foi uma fotógrafa apaixonada. Mas se suas fotos
não fossem tão boas, se de fato fossem ruins, também diríamos que foi uma
fotógrafa ou a consideraríamos simplesmente “uma babá que fotografava”? Acredito
que aconteceria esta última situação. E com o nosso autor X se passaria o
mesmo: se seus textos inéditos fossem bons, haveria morto um escritor; se não,
só “alguém que escrevia”.
Essa lógica
nos faz pensar que na qualidade do escritor, já não em sua publicação, reside a
chave para diferenciar um escritor de alguém que não é. Talvez, basta se
deparar com as estantes nas livrarias ou nas bibliotecas para se perguntar como
diabos tal ou qual texto chegou a ser publicado sob a forma de um livro. A
resposta, de toda maneira, quase sempre é uma destas quatro: a) o editor
gostou, porque sobre gostos não há nada escrito; b) o editor acreditou – talvez
com razão – que o livro venderia bem; c) o editor e o escritor são amigos; d) o
autor publicou por conta própria. Por isso é que se pode falar de “maus escritores”, mas não se
pode tomar a qualidade como critério para afirmar se são escritores ou não são.
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E, se um escritor
deixa de escrever, deixa de ser um escritor? Na lista estão Juan Rulfo,
Rimbaud, J. D. Salinger e tantos outros para negarmos enfaticamente. Mas
suponhamos outra vida agora para nosso autor X: aos vinte e tantos anos de
idade escreve e, como tem um editor amigo, publica vários livros. Sua obra é pobre e não transcende. Quando
chega aos trinta já não escreve nem um rol de feira; o resto de sua vida se
dedica a qualquer outra coisa. Quando chega aos sessenta anos, setenta,
oitenta, continuará sendo um escritor?
A intuição me
diz que a reposta, também neste caso, é “não”. A intuição é inclusive mais radical:
me diz que esse autor X nunca foi um
escritor. Atrevo-me a postular uma hipótese: quem escreveu são escritores
enquanto sua obra vive. Há obras que morrem pouco depois de nascer ou que já
nascem mortas. Outras são imortais.
Em 2009, a
prefeitura de Buenos Aires aprovou o chamado Regime de Reconhecimento à
Atividade Literária, conhecido popularmente como “pensão para escritores”. A lei
motivou a necessidade de estabelecer com precisão quem poderia cobrar a pensão,
isto é, quem eram escritores. Estabeleceu-se como condição principal – além de
ter acima de sessenta anos, nativo da cidade ou ser radicado aí há pelo menos
quinze anos e não cobrar outra pensão – a de poder “provar uma trajetória pública
constante na criação literária não inferior a dez anos ou haver publicado cinco
livros” através de editoras (não autoeditados). Se Rulfo, Salinger e Rimbaud
vivesse então em Buenos Aires não poderiam receber a pensão.
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“Não existe
nenhum momento do qual se possa dizer: é então quando me converti num escritor”
– apontou Tobias Wolff em seu romance Velha
escola. “As peças soltas se encaixam mais adiante, com maior ou menor sinceridade,
e depois de que as histórias tenham se repetido adquirem a categoria de
memórias e bloqueiam todas as demais rotas de exploração”.
É que se converter
em escritor não é como se tornar carpinteiro ou professor de matemática ou
advogado. Não porque acredite que exista algo místico ou especial na escrita,
mas porque nessas ocupações é mais sensível reconhecer quando alguém conquistou
um título ou começou a exercer o que exerce. Tornar-se em escritor, ao contrário,
parece-se um pouco com se tornar adulto ou numa pessoa de esquerda ou em rival
do River Plate. É um processo, algo que acontece, ou melhor que aconteceu em
algum difuso momento do passado. Um momento irrecuperável a partir do qual já não
se pode viver sem escrever.
Como antecipei,
não sei a partir de quando alguém que escreve é um escritor. Se sei que ser escritor
não é algo que dependa de haver publicado ou não, nem de que o escrito seja
melhor ou pior, nem da imagem que alguém tenha sobre os demais. “Eu me enuncio
e me anuncio escritor pela sensível e inquestionável razão de que parto a alma
na escrita e, depois, a escrita volta a juntar seus pedaços”, disse certa vez a
escritora argentina Giselle Aronson. E talvez neste caso não haja melhor parâmetro
que as próprias sensações e convicções. Cada um sabe o que faz.
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