O músico cego, de Vladimir Korolenko
Por Pedro Fernandes
“A cegueira
fecha o mundo visível com uma cortina de escuridão, que dificulta e impede o
trabalho do cérebro e, mesmo assim, com as imagens e impressões obtidas por
outras vias, o cérebro cria nessa escuridão seu próprio mundo, um mundo triste
e sombrio, mas não privado de uma poesia vaga e peculiar”. Este excerto pode
ser tomado como uma boa chave de leitura para este romance de Vladimir
Korolenko, autor de uma obra até então a única traduzida no Brasil, a novela Em má companhia.
O músico cego trata-se de um romance cujo
principal tema o insere numa ampla rede textual cujo imaginário remonta às
primeiras formas narrativas. Na mitologia grega, Tirésias, cegado por Hera, ganha
de Zeus, como recompensa, a dom da previsão. Assim, sua figura percorre o
imaginário literário ocidental, aliado à capacidade intrínseca da condição do cego,
capaz de desenvolver outras faculdades e sensibilidades, como símbolo da percepção
aguçada e inusual acerca do seu entorno. Na Odisseia,
Tirésias é quem aponta o mapa de retorno para casa a Ulisses; em Édipo rei, ele é quem revela para Édipo
seu triste fado. Prenunciador da tragédia, na narrativa de Sófocles, é ele o
autor de uma sentença recuperável nesta ocasião para servir de contraponto à citação
do texto do escritor ucraniano – contraponto porque esta sentença se coloca
justamente em ponto oposto à do narrador de O
músico cego, ao evidenciar a falibilidade do ato de ver mesmo quando se tem
olhos sãos: “Como é terrível saber, quando o saber de nada serve a quem
possui”.
Piótr, desde
quando é descoberto como cego pouco depois de seu nascimento, é criado pela mãe
e com toda a atenção de um tio deficiente por ter amputadas uma perna e
uma mão em decorrência de uma rixa provinda de discussão política; este tio fora antes um jovem
impetuoso interessado no contínuo embate de forças do poder e integrado aos
princípios de um outro modelo social para seu país. A princípio, Anna Mikháilovna
teme pela segurança do filho e o quer protegê-lo como numa redoma; depois, pelo
interesse natural da criança em compreender o mundo esforça-se por dotá-lo de
uma condição que o permita não perecer entre os tantos que de sua estirpe estavam condenados
a vagar pelas ruas sem amparo. Por sua vez, Maksim, que no início imagina ser a
tarefa dos preceptores cuidar da independência de Piótr, descobre-se partidário
da tese de que para evitar no jovem a frustração de não ser um igual aos jovens
comuns, preservá-lo de determinadas percepções das quais não poderá nunca, no
seu entendimento, serem vividas na sua dimensão completa. Esta posição do tio ganhará novo rumo no decorrer da narrativa.
Mas Piótr
não se ajusta ao juízo pré-determinado para ele. E faz-se, embora não deixe de
ser toldado por certas cores melancólicas, sobretudo quando desenvolve contato com
outros jovens seus contemporâneos, homem à frente das designações a ele
ofertadas graças a admiração que constrói desde criança pela música. Não
deixará de escapar aos olhos do leitor numa narrativa de atmosfera bucólica,
linguagem sombria, e certo espírito nostálgico, uma releitura do imaginário
mítico sobre a figura do cego.
O músico cego
é um romance de forte tom sensorial e escassa imagem. Isto é, Korolenko forja
um narrador cuja percepção imiscui-se a da personagem principal da narrativa.
Este gesto nos faz conviver muito de perto com a perspectiva da qual Piótr compreende
e enforma sua realidade. E é justamente aqui onde encontramos a atualização,
apesar das assertivas restritivas do narrador, do mito. A certa altura da
narrativa uma personagem assim se refere ao jovem: “a força divina abre ao cego
aquilo que os capazes de ver não enxergam”. Piótr tem uma percepção previsível
de si: embora todos almejem para ele um mundo encerrado entre as paredes da escuridão
é quem se sente desde quando descobre seu gosto pela música que não deverá
obedecer as rédeas do destino. Mais tarde, essa compreensão se demonstra em
plena forma quando não apenas os do seu convívio o reconhecem como alguém capaz
de captar as sutilezas das canções populares de seu povo mas ele próprio encontra uma alternativa frente ao drama.
Este é um
ponto, aliás, bastante interessante na narrativa de Korolenko: o debate costurado
do par de opostos (os que podem ver de uma maneira e os que reparam o mundo de
outra – para recuperar o tom da narrativa, aqueles para quem os olhos são a
janela da alma e aqueles outros para quem a alma é uma contínua procura) favorece
à cena diversa das oposições no contexto ao qual pertence essa narrativa.
Dessas oposições, destaca-se a entre a obra de arte enquanto objeto erudito e a
obra de arte popular. Nesse debate o escritor posiciona sua narrativa não numa
fronteira e tampouco na repetição da ideia que lhe antecede sobre as
representações populares como protoformas ou criações inferiores em relação à
arte do establishiment.
Quando Anna
descobre a paixão ainda infante do filho pela música, logo quer demovê-lo da
ideia de ele venha a se juntar com o reles cocheiro Iókhim e então compra um
sofisticado piano de cauda com o qual tentará repetir o sonoro efeito de
sedução que deitou sobre o companheiro para com Piótr. A aguçada sensibilidade
do menino, entretanto, não resiste à complexidade da melodia desenvolvida pela
pianista e nem ao som estridente do piano; continua a preferir a suavidade e a
simplicidade da flauta. Desse embate, a mãe de Piótr descobrirá o essencial
valor da expressão artística cuja poesia reside não no engenho da criação mas
na possibilidade que esta tem de arrebatar os indivíduos pelos sentidos que
nela se materializam.
Essa delicada
beleza tal como se apresenta parece reafirmar certo princípio romântico de
valorização do nacional sobre os modelos estrangeiros – consciência, aliás, que
se formou, ao que parece, além de muitíssimo antes, com força maior entre os
europeus, se compararmos nossos pífios esforços em torno desse ideal e já agora
integralmente desfeitos pela permanência do potentado da globalização. Tanto é
verdade que a grupo diverso de jovens que passam a frequentar a casa de Piótr
estão integrados na ideia de recuperar
toda uma cultura popular em vias de desaparecimento, além, é claro, da insistência
da narrativa por este tema, que marca uma linha contínua por sob o narrado e
que por vezes se mostra à superfície da trama.
Embora o
temperamento oscilante e das emoções extremas seja uma constante em toda a
narrativa, não se apresenta nenhum conflito exacerbado; toda vez que uma
possibilidade se arma, o narrador trata logo de resolvê-la. Isso não apenas
contrapõem aos modelos mais próximos de se construir o enredo, como faz de O músico cego um romance muito leve,
tendido para uma parábola de corte semipedagógico sobre a revisão daquilo que a
todo tempo o narrador lembra e a narrativa desfaz, a limitação. Esta não é uma condenação
nem uma imposição se os que estão próximos aos necessitados de construir outra
relação com o mundo não lhe são facultadas as oportunidades comumente oferecidos
aos que se enquadram na condição ideal esperada por todos.
É evidente
que há nessa narrativa de feições pueris, no sentido fabular e na delicadeza com
que o escritor engendra os conflitos narrados, não apenas uma metáfora nesse tom
de lição de moral sobre as deficiências e limitações mas simultaneamente uma
metonímia acerca da identidade nacional. Vladimir Korolenko está situado num contexto
bastante acidentado do Império Russo; tem uma forte compreensão do sentimento
popular de pertença a uma cultura com raízes próprias, a do povo ucraniano, e
não se percebe parte da unidade apregoada pela força imperial (novamente
retoma-se aqui a louvação à cultura
popular). Logo, Piótr é este indivíduo do limiar: sua condição de cego, mas de
aguçada percepção sobre as coisas, isto é, um sujeito que vê de outra forma,
possível até de ser próxima a dos indivíduos que tem a luz dos olhos, qual
Evelin, a menina que desenvolve um amor desde a infância pelo da propriedade
vizinha, o faz único e não reconhecido como o mesmo dos integrado à sua comunidade.
Ou seja, não
poderão acusar Vladimir Korolenko de alguém pouco inventivo, que tamanha
engenhosidade para a composição de um romance como O músico cego desmente toda calúnia do gênero. Prova ainda outra façanha
– a mais interessante das façanhas da literatura – não perder a multiplicidade
de camadas de sentidos oferecendo-nos a mais simples das narrativas. Parece que
quis provar formalmente o valor profundo da cultura popular, cuja simplicidade
nem sempre deve ser confundida com o primitivismo de valor artístico duvidoso.
Comentários