Múltipla escolha, de Alejandro Zambra
Por Pedro Fernandes
Ao falar
sobre avaliação que dava acesso à universidade no Chile, o narrador de um dos
textos que compõem Múltipla escolha
diz que esta era produto de sistema educacional falido; bastava ao estudante
“entrar no jogo e adivinhar a pegadinha”. Esta observação recupera a natureza
do livro de Alejandro Zambra, uma dentre as experiências literárias mais radicais
das criações deste início de século. Este livro é uma encenação da falibilidade
da literatura numa era quando à forma e à estrutura não escapam outras
alternativas de reinvenção. Marcado pelo discurso fatalista da impossibilidade
da narrativa, discurso aliás do qual seguramente o escritor trata de zombar, é
uma obra construída como provocação à ordem. Uma ode ao caos e a variabilidade das
formas e estruturas estéticas e sociais.
O escritor chileno
se apropria de uma estrutura não-literária, um certame objetivo muito em voga
no seu país até meados do início deste século – no Brasil, esta avaliação em
muito se assemelha à utilizada para acesso às escolas técnicas federais durante longos anos – e engendra
uma obra que congrega uma variabilidade de formas literárias, todas colocadas,
propositalmente em condições-limite. O leitor vislumbra o poema e a narrativa curta.
A primeira forma se associa muito claramente a estética de Nicanor Parra cujo
discurso poético lida com as formas de uso pragmático, tais como o jornal e a propaganda. A segunda remonta a tradição francesa do nouveau roman e se associa, para citar um nome contemporâneo ao de
Zambra, às criações em prosa do português Gonçalo M. Tavares. Outro nome que o
leitor também não deixará de lembrar é o do argentino Julio Cortázar e o seu O jogo da amarelinha, um romance que,
tal como Múltipla escolha, insinua uma
variedade de possibilidades de leitura.
Se considerarmos
o título original – e aqui é preciso sublinhar ora a importância do contexto
para as leituras propostas pelo criador ora as múltiplas leituras que o livro
alcança fora de tal universo –, Facsímil.
Libro de ejercicios, logo compreenderemos melhor quais as provocações
favorecidas pela obra. É que facsímil
[fac-símile] é tanto o exame de aptidão verbal em sua modalidade vigente até
1994 naquele país, que incluía noventa exercícios de múltipla escolha
distribuídos em cinco seções*, como fotocópia, a reprodução exata de conteúdo de
um documento qualquer. Isto é, no instante em que é um livro que se apropria de
uma determinada estrutura também estabelece sobre ela uma crítica, corroborando,
assim, com as afirmações apresentadas no início destas notas. Entretanto, obedecendo
mais a estrutura e não ao sentido restrito do termo na língua espanhola, a
tradução brasileira optou por seguir a ordem das demais traduções e intitulou o
livro por Múltipla escolha, transferindo
de alguma maneira parte do sentido de facsímil
porque os tais testes por aqui se denominam como provas de múltipla escolha
e obrigando o leitor a mais um exercício: capturar o tratamento crítico
proposto pela obra.
Assim, a
obra de Zambra estrutura-se em cinco seções de noventa questões: o leitor é convocado
a, como um aluno, aplicar-se em respondê-las e então construir, a partir das
respostas o conteúdo, por assim dizer, do livro. É evidente que não tardará perceber
o caráter irônico da obra quando se encontrar ante questões cujas alternativas
que respondem ao enunciado é qualquer uma delas ou se sentir obrigado a encontrar
a resposta que não existe porque destoa, como se numa espécie de falha
proposital do sistema, do pedido pelo enunciado. Nessa última ocasião, o leitor
precisará forjar uma resposta a partir de uma regra própria justificada por uma
lógica inerente à relação entre o enunciado e as opções de escolha. E muitas vezes
nem isso: não há nenhuma lógica aparente e o leitor propositalmente rompe com a sua própria ordem.
Começa aqui
a provocação do escritor acerca dos tais certames: a crítica ao mecanicismo do
sistema e sua ineficiência, uma vez que, quando o leitor-estudante entra no
jogo logo se descobre incapaz de seguir com seu raciocínio até o fim. Da mesma
maneira que precisará forjar uma resposta a fim de que sua lógica se mantenha
eficaz, a impossibilidade da resposta colocará em questão todas as respostas
apresentadas antes, já que, em tais testes, uma vez descoberto o jogo se
adivinhava a pegadinha. E um dos estratagemas desses exames para desviar a
linha de raciocínio dos candidatos se pautava na similitude dos enunciados e
das opções à escolha como resposta.
O livro é assim
um projeto. Enquanto construto, obriga ao leitor deixar sua posição de figura
passiva ante o que lê para erguer as possibilidades de textemas. Isso significa
uma revalidação do estatuto do leitor, algo que remete ao trabalho de outros
dois escritores de fôlego da literatura contemporânea – José Saramago e António
Lobo Antunes. Este último mais que o primeiro, uma vez determinar ao leitor refazer a tessitura verbal através não apenas de remontagem da dicção sintática
como da narrativa.
Nas micronarrativas
incompletas, Zambra subverte, ao propor essa revalidação do trabalho do leitor
(ou melhor, a percepção do leitor de sua importância para a realização da obra
à medida que examina em consciência seu papel na construção da obra), aquilo que
a narratologia considera como narrador e narratário. Múltipla escolha pratica o apagamento dessas categorias. O texto é
um mecanismo que se instala entre um autor empírico / sujeito próprio da enunciação
e o leitor. E isso se dá por uma convenção: a dos suportes textuais: fora dos
limites de um livro escrito por um escritor este seria um mero teste de
aptidão. E além dessa ruptura com os planos mais abstratos do texto, este livro
pratica outra ordem de subversões; desabriga, por exemplo, o gênero literário
do seu lugar institucional. A prática da criação literária está limitada única
e exclusivamente pelas fronteiras da palavra.
À medida em
que se praticam tais subversões, o escritor propõe uma denúncia acerca das limitações
impostas pela ordem. Esta é um atentado contra a criatividade, a renovação de
estéticas; a ordem está a serviço da alienação dos saberes, da repetição do
mesmo e, logo, ao favorecimento de mesmidades. É o poder de docilização dos corpos pela prisão em formas e estruturas
pré-determinadas. A constatação logo se encontrará não apenas nos modelos de
exercícios recuperados, mas o contexto histórico no qual foram aplicados: o da
ditadura militar e da restruturação da sociedade chilena depois do trauma. Ou
seja, o desmantelamento da repetição e da ordem participam do desmantelamento
de um poder e de uma ordem que, tais como os exercícios de múltipla escolha,
não esteve interessado na expressão das ideias e no pensamento crítico acerca
da realidade construída e mantida pela facção criminosa da imposição de modos
de ser e estar convenientes com os mandos do poder.
Este livro-certame não evidencia apenas uma desconstrução dos modelos regimentais, critica as cicatrizes
sociais deixadas por eles e repensa que suas estruturas não foram de um todo
superadas e sim aperfeiçoadas através dos novos modelos que elegemos sob o
signo da liberdade. Deste modo, Múltipla
escolha denuncia diversas problemáticas do novo sujeito: a solidão, a
substituição da ideia platônica de amor pela mera relação dos corpos, a era das
repetições contínuas, os modismos, e das respostas surdas, as relações de classes,
sobretudo num continente como o nosso, as intolerâncias, os radicalismos e,
dentre tudo, o mais grave: a extrema
apatia. Num dos últimos textos do livro, o narrador (sim há textos realizados, por assim dizer)
afirma: “Vivemos no país da espera”. Uma sentença que não pode ser lida apenas como
um designativo para o Chile, nem para a América Latina, onde se inclui o contexto
dos retrocessos políticos e jurídicos brasileiros; é esta uma constatação
universal, quando avistamos o mundo entrar noutra celeuma de recrudescimentos
que poderá significar outro mergulho a um tempo de trevas.
Por mais
inovadora ou autônoma que se mostre a atitude criativa, este caráter irônico
que sustém a própria estrutura do que alguns poderão ler como não-livro é o
melhor de Múltipla escolha. Prova os
valores emancipadores da arte frente aos modelos impostos pela ordem comum,
muitas vezes árida, vazia e ditatorial. É este um livro cuja proposta é de demover
o leitor, em todas as posições, a abandonar o conforto e a mesmidade da existência.
Não há vida se não há embate.
* A nota
apresentada pelo editor na edição brasileira destoa da original: informa que o
exame de aptidão verbal esteve em voga até 1993 no Chile. Este texto optou pela
data apresentada na edição original.
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