Matadouro 5: um soldado perdido no tempo
Por Grace Morales
Alemanha,
fevereiro de 1945. A cidade de Dresden era um gigantesco hospital de guerra,
seus edifícios convertidos em refúgio para os feridos da frente oriental. O
abastecimento de
comida, cada vez mais escasso. Muitas fábricas já haviam sido destruídas pelas
bombas dos aliados. Mas Dresden mantinha uma junção ferroviária que podia
prejudicar os interesses soviéticos, cujo exército já se encontrava às portas
da Silésia. A inteligência britânica decidiu reabrir a Operação Thunderclap de
44, render pelo ar as resistências do oeste, mas desta vez só as cidades mais
importantes. Para acelerar no tempo o fim da guerra, decidiram bombardear
Dresden, conhecida como a Florença do Elba pela enorme quantidade de museus e
monumentos, uma cidade repleta de beleza. A noite de 13 de fevereiro, os pathfinders britânicos arrasaram
Dresden em duas ondas de bombas incendiárias. Deixaram casas e seres vivos consumidos
por uma chuva de fogo gigantesca que succionou o oxigênio e fez explodir tudo o
que havia por terra. No dia seguinte, os caças estadunidenses deixaram cair
outras tantas toneladas de bombas sobre diversos pontos da cidade e seus
arredores. Por causa da nuvem de fumaça e das condições climáticas, algumas
bombas foram desviadas e chegaram até Praga.
Durante muito tempo, este
episódio do fim da Segunda Guerra Mundial ficou apagado pelos acontecimentos de
Hiroshima e Nagasaki do verão de 45. Poucos dados se ofereceram com precisão,
especialmente o número de vítimas. Eram quase todas civis ou soldados feridos e
a cidade, seu centro urbano, um lugar de grande valor histórico que não possuía
interesse militar algum, salvo a vingança do poder britânico pelos ataques
alemães. Os livros falaram de cento e trinta mil pessoas mortas, enquanto que
os números oficiais oscilam entre vinte e cinco e sessenta mil. As poucas
imagens que há de Dresden depois dos bombardeios são terríveis e custa imaginar
a reação dos escassíssimos sobreviventes.
Por pura sorte ou ironia do
destino, um desses sobreviventes foi um soldado estadunidense. Ou melhor, um
rapagote de dezessete anos, sem a mínima habilidade militar, que havia sido
feito prisioneiro pelos alemães na Bélgica e levado para Dresden para trabalhar
numa fábrica de xarope para preparar vitaminas. Escapou de morrer nestes pavorosos ataques porque conseguiu se esconder com seus companheiros num enorme armazém
de carne do antigo matadouro da cidade, onde os alemães os mantinham confinados.
Era um lugar encravado na pedra sob a cidade. O Matadouro n.5. O prisioneiro se chamava
Kurt Vonnegut e vinha, sim, de uma família de imigrantes alemães que havia se
instalado e prosperado em Indianápolis. Já como escritor, levou vinte anos para
transformar em literatura o que havia vivido naqueles dias na Europa.
Sobretudo, o que viu acontecer no improvisado refúgio, entre a cortina de
fumaça que tapava o sol. O que restava de Dresden. Segundo ele,
não havia muita diferença entre a superfície da Lua e aquilo, exceto que o solo estava quente e os pés afundavam numa papa de cinzas.
Um escritor com semelhante experiência às suas costas
poderia ter aproveitado para fazer parte da lista de autores que retrataram
estes acontecimentos, embora a partir de posições ideológicas diferentes,
sempre com um olhar épico sobre o confronto e seus trágicos desenlaces (de
Jünger a Hemingway). Mas Kurt Vonnegut não era um escritor como eles. Suas
memórias da Segunda Guerra Mundial carregavam um peso que era impossível de
reproduzir com palavras.
No primeiro capítulo de Matadouro 5, que serve como parte explicativa desta história inacreditável,
Vonnegut expõe a dificuldade que teve para descrever o indescritível, a contemplação
de uma cidade destruída até aos alicerces, confundindo-se o pó dos edifícios com
os dos ossos dos mortos, ou como antes de chegar a Dresden passou alguns dias
infames num campo de concentração para soldados, onde se alumiaram com velas
feitas de gordura dos judeus mortos.
Num estilo satírico que o fez mundialmente famoso, o autor
explica que queria se tornar rico com um livro nessa tradição da literatura de
guerra, mas depois de escrever centenas, milhares de páginas, não conseguia. Como
era possível escrever sobre uma matança desse calibre? Nas suas próprias
palavras, “não há nada de inteligente a ser dito”.
Também deixa clara a intenção nestas primeiras páginas. O
romance pode e será muitas coisas, mas acima de tudo é um desesperado discurso
antibelicista, uma narração que mostrará uma mensagem mil vezes repetida, mas
nem por isso escutada o suficiente: o absurdo, mais trágico que a própria
morte, dos campos de combate. A sucessão de acontecimentos espantosos e
situações ridículas, às vezes idiotas, não isentas de comicidade que rodeiam
qualquer enfrentamento desta classe. Os seres humanos sabemos, mas voltamos à
guerra sempre, num ciclo imperturbável de loucura e desgraça.
Matadouro 5 tem outro título – A
cruzada dos meninos –, em referência à idade dos soldados que, como
Vonnegut, participaram na Batalha das Ardenas. Nesse primeiro capítulo nos
mostra outros exemplos de fanatismo louco, como por exemplo, a “cruzada” medieval na
qual embarcou milhares de meninos que acreditavam irem lutar na Terra Santa,
quando na verdade, e depois de uma penosa viagem, seriam vendidos como escravos
na África. Ao longo do livro aparecerão mencionados títulos de romances muito célebres
cujas narrativas foram ambientadas numa guerra e situações traumáticas como a
do escritor Ferdinand Céline, quem, depois de ser ferido na Primeira Guerra
Mundial ficou perturbado, obcecado pelo tempo e pela morte. O autor também se
detém na história de Dresden e repassa suas etapas de esplendor artístico,
assim como episódios anteriores de destruição, como o incêndio da guerra dos
Sete Anos, em que também a cidade ficou reduzida a escombros. Tal como foram
devastadas Sodoma e Gomorra, com chuva de fogo. Vonnegut incide desta maneira
no aspecto cíclico da história, na incansável e imbatível estupidez humana e na
inevitabilidade dos acontecimentos. As três ideias sobre as quais está
construída a narrativa de Matadouro 5.
Mas esse romance convencional sobre a guerra termina no capítulo
primeiro. Depois, se desenvolve uma história que tem mais a ver pelo tom com as
cruas narrativas picarescas tal como O
aventuroso Simplicissimus (Von Grimmelshausen, 1668), ou sátiras contemporâneas
de Matadouro 5, como o romance Ardil 22, de Joseph Heller (Catch-22, 1961). Isto é algo totalmente diferente. Vonnegut descreverá as penalidades do soldado adolescente
desde que é lançado de paraquedas sobre um ponto qualquer de Luxemburgo no
inverno de 1944, mas não se limita a estes feito e sim que colocará diante de
nós a vida inteira de seu protagonista, porque esta experiência ressoará e
voltará ao longo de todos os dias, para que tentemos compreender com ele de que
maneira mudou sua percepção do mundo, como se modificou sua mente e a
realidade. E nos narra de forma não linear mas em saltos temporais, tal e como
os vive Billy Pilgrim, o alterego de Kurt Vonnegut no romance.
O autor se desdobra nesta personagem – muito típica de
sua literatura –, a de um pobre homem atravessado pelas circunstâncias, mas não
apenas isso, que se reencarna diversas vezes ao longo da narrativa, aparecendo como
ele mesmo e como o escritor veterano de ficção científica Kilgore Trout. Este é
uma das personagens mais célebres de Vonnegut; foi inspirada tanto nele próprio
como em seu amigo e também escritor Theodore Sturgeon (levando ao limite a
broma, o escritor Philip José Farmer publicará em forma de romance um dos
títulos que Vonnegut atribui a Trout em seu romance Good Bless You, Mr. Rosewater [Benza-te deus, Mr. Rosewater]
(1965), como esse mesmo pseudônimo, Venus
on the Half-Shell [Vênus na concha, em 1975). A personagem do senhor
Rosewater, certamente, também parece em Matadouro
5 – um recurso habitual, portanto. Desta forma, escritor e personagem recorrem
um ciclo de realidade-ficção congruente com o de espaço-tempo.
O soldado Pilgrim (“peregrino”) experimenta em plena
batalha um estranho fenômeno. É capaz de ver sua vida passada e futura, pode se
sentir e se ver antes de nascer, saber quando e como vai morrer, o que se passa
depois da morte, assim como reviver episódios de seu passado ou contemplar com todo aquele detalhe experiências de seu futuro. Uma explicação racional a estas
viagens no tempo qualquer um daria referindo-se a uma ferida de guerra ou um
profundo choque traumático, mas isso é o de menos, porque a capacidade de Billy
Pilgrim de ver o tempo e ser consciente de que tudo está escrito é a filosofia de
Vonnegut que subjaz em Matadouro 5.
Um determinismo fatalista de que só cabe aproveitar os escassos momentos
felizes.
A partir da Batalha das Ardenas, Billy Pilgrim entra e
sai de diferentes épocas de sua vida como um piscar de olhos. Faz isso de tal
forma que pode presenciar o momento da morte de seu pai ou voltar a um instante
de seus dias como bebê. Assim, volta a repetir de forma infinita todos os
instantes de sua vida. Num humor nonsense, se dedicará profissionalmente à
gestão de uma rede de óticas (um cargo milionário que recebe, de forma
totalmente casual) e está empenhado em fazer com que seus compatriotas obtenham
uma visão clara do mundo. Ele, que vê as coisas desta forma tão peculiar.
E se as viagens no tempo já são incomuns, quando Pilgrim
é um homem adulto, casado e com dois filhos, vão e aparecem os extraterrestres.
Não aparecem de forma casual: é durante a festa de aniversário de seu casamento
e num instante que faz saltar a emoção que o protagonista guardou desde os dias
da guerra, quando Billy é abduzido por uma nave espacial e é levado ao planeta
Tralfamador. Ali, os extraterrestres, uns seres de meio metro que parecem alicates
postos em pé, mas de cor verde, prendem Pilgrim com uma famosa atriz de
Hollywood, ambos nus, numa cúpula geodésica de zoológico para que os
tralfamadorianos se entretenham observando os curiosos costumes dos terrícolas
e em troca oferecem-lhes informações sobre seu mundo e a sabedoria que acumularam
depois de percorrer o universo.
A cúpula foi uma invenção de Buckmisnter Fuller, o
arquiteto visionário que desenvolveu soluções para um planeta sustentável e acreditava
que a guerra desapareceria. Será um dos poucos lugares felizes onde vive
Pilgrim, que desde os episódios da guerra vagará por sua biografia sem ter consciência
do que faz. Se casa com uma mulher que não quer, seus filhos serão dois
estranhos e os acontecimentos do mundo deixarão de ter o menor interesse.
O romance desliza pela ciência de ficção, não como
simples recurso cômico para aliviar a terrível experiência do soldado Pilgrim,
mas como a única saída que o escritor e também protagonista dos acontecimentos
de Dresden encontra para dar sentido a uma vida absurda que culmina com a
morte. No sanatório onde é preso depois de voltar para casa, Billy Pilgrim canaliza
seus pesadelos na leitura das spaces
operas de Kilgore Trout, o veterano escritor de sci-fi que não conseguiu o sucesso comercial. As histórias de robôs
e invasores do espaço se misturam com os acontecimentos da vida de Pilgrim, que
são, ao mesmo tempo, os fatos da biografia de Vonnegut.
Como outros
contemporâneos de geração (Robert Sheckley), o autor escreveu a maior parte de
seus livros em clave de ficção científica, com uma profunda mensagem crítica
sobre a sociedade estadunidense. As mensagens religiosas do cristianismo são
sublimadas nos relatos pulp sobre
máquinas do tempo, suas experiências em Tralfamador se convertem num romance de
Trout intitulado O grande tabuleiro,
os marcianos se tornam em dependentes de casas de revistas pornôs e os
militares são constantemente ridicularizados, por exemplo, através de Joseph W.
Campbell Jr., o histriônico chefe dos Free American Corps, um desertor que se
vendeu para os nazistas para lutar contra os comunistas e quer devolver aos
seus compatriotas o orgulho perdido. (Salvo no uniforme e uma fantasia como de
super-herói entre cowboy e a mando
das SS, o discurso recorda e muito o atual presidente dos Estados Unidos. Recomendo
vivamente o romance de Vonnegut onde Campbell é o protagonista absoluto: Mãe noite, de 1961).
Matadouro 5 se fecha num de seus numerosos círculos. As últimas
páginas são as mais duras; uma viagem a um planeta de sábios tralfamadorianos
que conhecem a quarta dimensão. Nelas se revela o coração das trevas desta
viagem do soldado Pilgrim. Não se encontra o fim de sua vida, mas sim o
princípio, quando ele e os sobreviventes da destruição de Dresden têm que cavar
entre as ruínas e encontram entre os mortos milhares de cadáveres reunidos em
abrigos inúteis. A morte é um absurdo inevitável que só algumas entidades
extraterrestres com conhecimentos superiores aos nossos podem controlar. Os seres
humanos podem superá-la de diversas formas – com a religião, o amor aos
semelhantes, a loucura, as elucubrações da ficção científica ou do
existencialismo filosófico – mas o que não se pode superar são os efeitos da
guerra.
O romance foi publicado num momento crucial da história.
Kennedy e Martin Luther King haviam sido assassinados e a Guerra do Vietnã era
duramente contestada nas ruas. Um relato sobre um episódio tão espantoso, que a
opinião pública não conhecia, escrito com o olhar sábio e humorístico de seu
autor, no melhor estilo de escritores como Mark Twain ou Cervantes, o converteu
num ídolo da contracultura. Por ser “antiestadunidense”, “ofensivo na linguagem”
e possivelmente também “comunista”, Matadouro
5 foi e continua sendo perseguido pela censura (em alguns lugares dos
Estados Unidos os seus livros foram queimados publicamente), mas é uma obra a
qual necessário sempre voltar, pelo valor literário e pelo testemunho pessoal.
Kurt Vonnegut morreu há dez anos, mas também acredito na noção do tempo
tralfamadoriana. As ideias e imagens de sua obra são momentos únicos que
permanecerão sempre e ao mesmo tempo. And
so it goes...
Ligações a esta post:
* Este texto é uma tradução de "Matadero cinco: un soldado perdido en el tiempo", publicado no suplemento Jot Down espanhol.
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