Marcelo Chiriboga, muito além de uma broma literária



Se há um escritor do Boom que levou uma vida cheia de incógnitas e teve um fim misterioso é o equatoriano Marcelo Chiriboga. Foi o único equatoriano do Boom e o primeiro a utilizar o humor em sua obra. Seu primeiro romance, La línea imaginaria, é uma voluptuosa obra que exerce uma crítica ácida ao absurdo e a inutilidade do conflito entre Peru e Equador que resultou na guerra de 1941. Tudo isso é broma, claro. Porque Marcelo Chiriboga nunca existiu, ao menos não na vida real, só na ficção.

Chiriboga já havia aparecido nos romances dos escritores José Donoso e Carlos Fuentes. Num dos livros do primeiro, Nueve novelas breves escreve a contracapa da obra, esta aliás, uma recompilação póstuma de textos de seu criador. Num romance de Donoso, ele é o romancista mais aclamado do boom, aquele em que a personagem principal de O jardim do lado quer se parecer. Aquele que quer ser. No seu primeiro romance, os jovens soldados equatorianos se encontram em meio a selva, desconcertados, sem saber que a guerra já terminou e que tudo é um nonsense. Essa ideia de país que os equatorianos têm em mente desaparece paulatinamente até ser apagada do mapa. Literalmente.

O escritor tem todos os elementos do escritor latino-americano que decide viver fora de seu país e preferencialmente na Europa. Logo depois da juventude guerrilheira em que pega em armas quando integra parte do grupo resistente de Toachi no Equador e de passar uma temporada na prisão por isso, Chiriboga muda-se para Berlim oriental, onde é testemunha dos apagamentos à liberdade de expressão do regime comunista. Ele é o primeiro escritor do boom a sair do grupo, antes mesmo de Vargas Llosa.

Aquele projeto de romance a quatro mãos sobre o conflito peruano-colombiano que Vargas Llosa e García Márquez planejaram escrever e nunca chegou a se concretizar poderia ser parte da obra do inexistente Chiriboga. Ele não acredita nas fronteiras, nem nas nacionalidades, tudo é imaginário. O conflito entre os países latino-americanos é inútil, estéril e absurdo. Muito recentemente esta não-vida do escritor foi contada – com a mesma força de manter a broma forjada pelos do boom – no documentário Un secreto en la caja, realizado pelo cineasta Javier Izquierdo. “A personagem de Chiriboga, que teve sim ressonâncias no mundo literário equatoriano, despertou muitas inquietudes na gente. De alguma forma, Chiriboga fala, também, dessa invisibilidade dos escritores equatorianos dentro do que se chamou o boom. De todos esses escritores que não saíram na foto”, diz o cineasta.

Foi, por isso, não apenas um jogo de máscaras e ventríloquo; talvez a caricatura do escritor do boom, cujo perfil se iguala por diversas constantes, isto é, o boom a rir-se do boom, porque talvez tivesse plena ciência da broma editorial onde estavam metidos; ou ainda, como diz Izquierdo, o sintoma mais evidente da invisibilidade. Não é à toa que ao perfil de Chiriboga, nessa dimensão de uma ficção lúdica de uma realidade, sua obra tenha sido a única reconhecida e quista em toda a parte – dos Andes à América Central, do Ocidente ao Oriente.

Tantos anos depois, o trabalho de Izquierdo, responde às explicações que os pais do equatoriano já não podem dá e que antes só estava ao alcance nas poucas passagens que Chiriboga havia assumido na literatura de Donoso e Fuentes: o citado O jardim do lado, mas também em Onde vão morrer os elefantes, também do escritor chileno e em Diana ou a caçadora solitária e Cristóbal Nonato. Em 2010, o equatoriano Diego Cornejo Menacho trouxe a personagem em seu romance Las segundas criaturas.     

Na literatura de Fuentes, Chiriboga caminha como uma referência, é um ser etéreo e uma personagem secundária, uma menção. Na de Donoso é uma figura-chave para a tensão narrativa e se configura como projeção do escritor chileno nas páginas da ficção. Em Cornejo, por sua vez, ele é o protagonista que volta ao passado e recupera o vivido. Se para os do Boom o equatoriano nasceu em Cuenca, para a obra de Cornejo sua biografia é melhor detalhada e assim, em aspectos de ascendência e genealogia é originário de Riobamba.

Fisicamente era – aos olhos de Donoso – “tão bem feito como uma dessas figuras criadas por ourives renascentistas”; brilhava, desde sua presença aristocrática, sua cabeleira prateada, vasta e engraçada, pele morena ou bronzeada, rosto sombrio; “tão reconhecível como a figura de um galã de cinema”. Sua personalidade é expansiva, de discurso vivaz e linguagem rebuscada. Com esse aspecto se presta com a mesma facilidade com que seduz uma jovenzinha tímida ou uma senhora libertina pode conversar e encantar o papa, Brigitte Bardot ou Fidel Castro. 

De convicções sérias, firmes, acredita na arte, ou melhor, na salvação pela arte, de tal maneira que foi capaz de levá-lo a abandonar sua filiação comunista porque o partido se empenhava em lhe ser um castrador de sua ética criativa. Isto é, mesmo que na mocidade ele tenha sido um amarada do Partido Comunista, a literatura e seu gozo são forças maiores de seu idealismo. Ainda, no dado da conversa franca que gosta sobretudo nas reuniões de boemia, é vez e outra tomado pela nostalgia por sua terra; isso quando vai viver em Paris, cidade que o recebeu depois de passar pelo México, de onde foi expulso.

Chiriboga deixou o Equador e seu posto sem relevância como burocrata ministerial ante a reprovação dos seus colegas que não podiam entender a literatura desligada do compromisso político – “a vida intelectual de Quito é insuficiente, hostil, devoradora”, haveria dito. Dizem que Benjamín Carrión o ajudou a sair de sua terra natal e que a agente literária catalã Núria Monclùs (clara ficção de Carmen Balcells) foi gratamente surpreendida por seu romance La caja sin secreto (título a partir do qual Izquierdo, claro está, retira o do seu filme). Ganhou  o Prêmio Cervantes e envelheceu. Morreu em Paris, não se sabe se foi numa tempestade – citando César Vallejo – porque desmoralizado ou de câncer no fígado cuja uma das causas foi a desmoralização. Foi a imagem idealizada de todo o espírito literário e mundano que aspiravam os escritores de então.

Para uns é a presença mascarada de José Donoso, sua simbiose e representação. Para outros uma mistura de García Márquez com Julio Cortázar e Vargas Llosa. Fuentes, ao contrário, disse polemicamente numa entrevista ao jornal El comércio, que Chiriboga foi o favor que ele o escritor chileno fizeram à literatura equatoriana – um membro do boom para um país que não teve nenhum. 

Se formos pensar na influência que a presença desse fantasma representou para a literatura no Equador até aos anos 1950 desprezaremos parte da arrogância de Carlos Fuentes e lhe daremos alguma razão. O vazio, possivelmente proposital, porque todo cânone é redutor e se constrói em oposição a outros cânones, deixado pela ausência de vários outros países que compõem a América Latina, tomada como continente do boom, tem presença com a criação de Chiriboga. Sua condição de defender os não-limites do nacional e ser ele próprio uma representação transnacional atenta ainda para outro fator que os idealizadores do boom deixaram de fora: para a verdadeira literatura os limites são mesmo meros produtos da imaginação. Agora, que nunca esqueçamos da existência, por detrás do fantasma, de uma literatura.

PS: Muito além do pseudônimo

O caso de Marcelo Chiriboga não foi o único. Da amizade entre Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares nasceu Honorio Bustos Domeq, um autor fictício que escreveu Seis problemas para Don Isidro Parodi, entre outros títulos. Agora, esse também não foi o único escritor criado pelos literatos argentinos; outro foi Benito Suárez Lynch, quem tem teve uma de suas obras com prólogo de Bustos Domeq. Fradique Mendes foi um poeta, viajante e homem do mundo que vários escritores no final do século XX deram-lhe vida: Eça de Queirós, Jaime Batalha Reis, Antero de Quental. A correspondência de Fradique Mendes é o libro que conta sua história e onde se recolhem suas cartas. Tudo inventado.

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