Mar morto e milagre dialético
Por Rafael Kafka
Mar morto tem a mesma
lógica dialética de "Cadeira", o que talvez explique em algum grau a
amizade existente entre Jorge Amado e José Saramago. Nos dois textos
narrativos, uma novela e um conto, o processo dialético transcorre sem que as
personagens tenham esperança em sua ocorrência, muitas vezes sequer tendo
consciência de sua possibilidade. Dulce, a professora de ar frágil do romance
amadiano, é a única que talvez perceba alguma outra realidade em potencial que
seja diferente da existência de exploração dos pescadores que em seus saveiros
vivem em estranha comunhão com o mar.
O
poder de síntese de Jorge Amado no romance aqui abordado é impressionante. Em
pouco mais de 250 páginas de uma edição de bolso, fui capaz de me deparar com
uma linguagem repleta de lirismo, sem perder em nenhum momento o viés
social capaz de se mostrar na obra romanesca. Assim como em Gabriela, o
outro romance de Amado lido por mim até agora, neste Mar... temos diante
de nós um contexto que aparenta não ser suscetível à ruptura, mas deixa sempre
à mostra, de forma mais ou menos discreta, a possibilidade de mudança.
Mais
uma vez, isso se dá com a presença das personagens femininas. O olhar de Dulce
é o olhar de quem sabe na carne o que é estar presa, em algum momento da
história, a uma condição social aparentemente imutável. Mesmo tendo um passado
não explorado dentro da narrativa, Dulce é mulher e professora, numa época e em
uma sociedade altamente patriarcal. Obtém respeito por sua profissão, a qual
precisa lidar com muitos jovens alunos, como o protagonista Guma, que largam
tudo em troca do destino dos mares e dos saveiros. Dulce com seu olhar de
mulher, de gênero eternamente preso a sua determinação imposta, é a personagem
capaz de ver por trás do véu da realidade a possibilidade de mudança.
Gabriela
também tem em si esse elemento de perturbação. Mas era uma perturbação sexual
a mexer com as profundas falhas de uma moral puritana e farisaica. Gabriela é
mulher que se dar sem ter a noção de rótulos que divide as moças em recatadas e
devassas. Sua performance, por si só, gera mudança dentro do ambiente de
Ilhéus, mesmo que ínfima dentro de todo um contexto de coronelismo e favores
políticos. Por isso a dialética de Mar Morto, mais uma vez dando ênfase
ao olhar feminino, lembra do conto de Saramago: a mudança se dá sem que a
percebamos, com forças humanas lutando sem uma coordenação precisa, mas que
ainda assim possuem uma capacidade de impacto tremenda no rumo da libertação.
Gabriela
está no plano do identitarismo ingênuo, da mulher que como toda boa personagem
de Clarice, mas sem as viagens introspectivas, é capaz de revolucionar pelo
questionamento básico de condutas tidas como fundamentais. Dulce pela cultura
letrada já contempla o ambiente como um livro aberto e procura entender as
causas de tal leitura e que fatores poderiam levar a novas formas de
existência.
Jorge
Amado, nesse sentido, mostra que o lado oprimido da história muitas tem mais
chances de perceber detalhes que o lado opressor. Claro que homens pescadores
são oprimidos pela sociedade capitalista que usa e abusa de seus trabalhos por
uma ninharia, mas mulheres estão bem abaixo na cadeira de opressão e por um
comportamento muitas vezes fugaz para escapar da dor elas percebem detalhes que
os olhos misóginos ignoram. Amado, casado com uma exemplar feminista, parece
perceber isso de forma muito viva em seus romances, neste dando um enfoque
belíssimo a Iemanjá, a de cinco nomes, musa protetora e amante dos pescadores.
A relação com a rainha das águas é explorada pelo autor com um tom quase
documental em diversos pontos do enredo, mostrando como os pescadores veneram
com temor a entidade. A morte para eles é um fato contemplado de forma similar
ao zen oriental, pois acreditam que naquele momento estão se unindo com sua mãe
espiritual.
Por
isso, a vida nos mares é vivida sem temor. Há beleza dupla nela pelas aventuras
vivenciadas e pelo fim repleto de sentido tido pelos pescadores. Jorge Amado
consegue captar a essência do sincretismo religioso baiano com a clara
influência das entidades africanas que vivem de forma relativamente pacífica
com as crenças trazidas pelos colonizadores europeus. O destemor na vida dos
mares é um correlato de um modo de existir preso ao determinismo das relações
sociais por parte dos homens, que veem naquele modo de vida algo sem
perspectiva de mudança e no qual a exploração se torna apenas mais um obstáculo
como as ondas do mar no caminho da subsistência.
Mas
a morte em dado momento do romance serve de mudança de perspectiva para Lívia,
mulher que vive em constante temor pelos riscos enfrentados por Guma, esposo
conhecido como o melhor navegante do porto. Ao assumir o leme do barco que
outrora pertenceu ao amado, Lívia garante a continuação do legado de Guma, mas
rompendo as barreiras entre os gêneros e se tornando, ela também, uma navegante.
Nesse sentido, o milagre de Dulce começa a se realizar, pois o que era estático
deixa de ser e revela outros matizes e outras possibilidades.
Amado
consegue fazer uma crítica social repleta de lirismo e existencialismo leve e
profundo. Não à toa é um escritor regionalista de dimensões universais. Na pena
de Jorge a crítica social passa bem longe de uma escrita a seguir uma cartilha
de esquerda partidária, mesmo o escritor tendo tido sua carreira política. Mar morto é a prova de que a simples performance leitora pode e deve gerar
questionamento ao mesmo tempo que produz o necessário e salvador deleite
literário.
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Rafael Kafka é colunista no Letras in.verso e re.verso. Aqui, ele transita entre a crônica e a resenha crítica. Seu nome é na verdade o pseudônimo de Paulo Rafael Bezerra Cardoso, que escolheu um belo dia se dar um apelido que ganharia uma dimensão significativa em sua vida muito grande, devido à influência do mito literário dono de obras como A Metamorfose. Rafael é escritor desde os 17 anos (atualmente está na casa dos 24) e sempre escreveu poemas e contos, começando a explorar o universo das crônicas e resenhas em tom de crônicas desde 2011. O seu sonho é escrever um romance, porém ainda se sente cru demais para tanto. Trabalha em Belém, sua cidade natal, como professor de inglês e português, além de atuar como jornalista cultural e revisor de textos. É formado pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará em Letras com habilitação em Língua Portuguesa e começará em setembro a habilitação em Língua Inglesa pela Universidade Federal do Pará. Chama a si mesmo de um espírito vagabundo que ama trabalhar, paradoxo que se explica pela imensa paixão por aquilo que faz, mas também pelo grande amor pelas horas livres nas quais escreve, lê, joga, visita os amigos ou troca ideias sobre essa coisa chamada vida.
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