John Ashbery
Considerado um
dos maiores poetas de sua geração, John Ashbery foi representante do melhor já
produzido por um Estados Unidos, ao que parece, se consideramos os ventos mais
próximos, difícil de admirá-los; isto é, aquele país fundado sobre uma fé irretocável
nas liberdades civis e individuais. Não é vã, portanto, a relação que algum
momento a crítica fez, ao reparar as raízes criativas desse poeta, com o legado
de Walt Whitman, o cantor das diversidades que soube imprimir em sua poesia a
totalidade do mundo.
Ashbery era
um total desconhecido quando em 1956 caiu nas mãos de W. H. Auden, outro gigante
da poesia moderna e contemporânea o manuscrito de Some Trees (Algumas árvores, em tradução livre). De imediato, correspondendo
ao afã de todo escritor em início de carreira, a decisão foi publicá-lo. “É
possível escrever poesia hoje?”, se pergunta o poeta inglês no prólogo para a
primeira edição do livro. Este texto recobra que só é merecedor do título de
poeta quem saiba regressar às regiões do sagrado e coloca o então novo nome
entre nomes inscritos já no panteão dos poetas: “De Rimbaud a Ashbery a
imaginação continua presa aos valores do mágico”.
A estreita
relação com poeta francês, alguém perguntará, adveio do contato muito direto
que o estadunidense desenvolveu com sua obra? No período árduo da vida em que
reconhecimento tardava chegar, ele se dedicou à tradução de muito da literatura
francesa: traduziu romances de mistério e poesia, muita poesia. Nas décadas
seguintes ao primeiro livro, Turandot and Other Poems, o poeta
manteve uma relação com o poeta Pierre Martory, de quem traduziu ao menos três
títulos e foi então que traduziu também As
iluminações, de Rimbaud.
Nesta ocasião,
Ashbery, mesmo desconhecido, a poesia de Ashbery, então reconhecida por Auden,
estava marcada pelo tom que o definiu sempre: enigmático, multidimensional,
aberto aos caprichos da sorte. Além, é claro, de se alimentar de pelo menos duas
fontes, antes da francesa, advindas da tradição anglo-saxã que vai de Wordsworth
ao seu mecenas, por assim dizer, W. H. Auden. Outras raízes aí detectáveis é o
legado do romantismo estadunidense incorporado em poéticas que vão de Whitman a
Wallace Stevens.
Agora, a
proposta da vanguarda, tanto artística (Pollock, Rothko) como musical (Carter, Cage)
terão lhe influenciado sobretudo quando da relação que passa a desenvolver com
a literatura francesa, também vanguardista, do simbolismo e surrealismo,
assinala a ocasião de reconhecimento total de Ashbery – quer dizer, ao menos no
seu país. Do surrealismo, por exemplo, é visível a ideia da incoerência
sistemática marcada por ocasionais irracionalismos absolutos, próprios da velhíssima
ideia da escrita automática.
Se Some Trees conquistou prêmios de poeta
revelação, como o Yale Younger Poets, e os livros seguintes, cinco no total,
quase foram despercebidos, a aparição de Self-portrait
in a Convex Mirror (Autorretrato num
espelho convexo), já em pleno uso de algumas dessas importantes influências
bebidas do grosso caldo da poesia de até então, o inseriu, de imediato no
panteão para onde agora passamos a olhá-lo.
Com o livro de
1975, John Ashbery recebeu os prêmios mais importantes de seu país: o Pulitzer,
o National Book Award, e National Book Critics Circle Award. Paul Auster disse,
a partir de Autorretrato... que: “Poucos
poetas possuem hoje sua misteriosa habilidade para extrair nossas certezas a
fim de articular tão plenamente as mais ambíguas de nossa consciência”. Este,
sem dúvidas, foi sua obra extraordinária. Um longo poema sobre o qual não conseguimos
imaginar de que fábrica saiu, uma vez que, nem depois o próprio autor não terá conseguido
repetir a façanha.
É evidente
que algumas características aí recorrentes não ficarão perdidas: o deslocamento
do sentido, as anedotas fragmentadas, a ausência de qualquer sorte de
desenvolvimento mais ou menos unitário, são algumas delas. O poeta só toma para
sua poética rara intenção sentimental, desde quando muito atrativa, mas logo o
que prevalece sobre tudo é o vislumbre da reflexão intrigante e chamativa que
denota uma articulação do pensamento na poesia. E, em sua totalidade, prevalece
a sensação de caos controlado e exercício pós-moderno de assimilar com cautela
e distância, não sem ironia, algumas das chaves de ruptura vanguardista, ou
mais exatamente, modernista.
Além de
Stevens, ao longe se vê as influências ainda de um T. S. Eliot. Do poeta inglês,
nos salta a ideia de ruptura temática pelas incursões do traço realista e das
reflexões acutiladoras, além das inserções de citações e referências
polvilhadas no discurso – esse exercício de bricolagem quase indispensável à
poesia da geração posterior às vanguardas.
De Stevens,
a poética de Ashbery herdou a abstração reflexiva, mas sem a sensualidade exacerbada
que define parte significativa de sua melhor poesia. Se formos a uma de suas
produções mais recentes, a antologia Chinese
Whispers (Segredos chinês), de 2002 notaremos quase nenhuma distância entre
os dois poetas ou talvez melhor maestria no manejo dos mesmos mecanismos
expressivos, além da perda quase absoluta das belas capturas descritivas das
estações do ano que deverão ter parecido a Ashbery coisa dos tempos de concessões
ao espírito figurativo. No mais, o mesmo desespero ao leitor, a mesma irritação,
a mesma sensação de coito interrompido, maneira de se traduzir as infiltrações
que se operam no corpo do poema.
Só, então, Autorretrato… sobre a poesia de herança
pós-romântica, alia perfeitamente a celebração contida e a reflexão austera, um
convite a aproximar-se tanto do mistério da arte como da vida, os dois entrelaçados
inextricavelmente, com soberbas margens de fricção e interação entre os esses
âmbitos, o do quadro que não deixa de exercer fascínio sobre quem fala no poema
e o da vida diária que se imiscui maravilhosamente bem nesse âmbito de artificialidades
perfeitas que, sem dúvidas, não podem ser uma residência definitiva para
ninguém (nada, menos ainda na arte, é definitivo).
“A principal
preocupação do poeta”, escreve num breve ensaio de 1972 em que formulava de
maneira esquiva suas ideias sobre a criação verbal, “é dar vida à obra de arte
de tal maneira que seja impossível tentar explicá-la”. Sua relação com o leitor
respondia esse mandamento: o de propiciá-lo uma aproximação com o sentimento
poético além do racional. Esta é uma observação de Eduardo Lago, no obituário
que escreveu sobre o poeta para o jornal El
País. “Como na arte abstrata, da qual seus versos eram uma refração, como
na música concreta, tudo começava num plano puramente sensorial do qual saltava
imperceptivelmente o emocional; a compreensão, se chegava, era depois. Ele
próprio não tinha uma ideia muito precisa de até onde podia levar sua
imaginação quando começava a compor. As imagens chegavam-lhe sem que soubesse
bem de onde. Sua atitude acerca do objeto poético era a mesma de Czesław Miłosz,
quem, quando lhe perguntaram como nascia um poema, respondeu: ‘Não sei, mas vem
pronto’. E quando insistiram, perguntando ‘por quem’, se limitou a dizer: ‘Não
sei. Não tenho um nome para isso’.”
O poeta
também terá alcançado alguma unanimidade entre os principais nomes da crítica
de nosso tempo. Harold Bloom, por exemplo. O autor de Anatomia da influência considerou Ashbery o maior poeta de sua
geração: “Hoje não há nenhum poeta em língua inglesa que tenha mais
possibilidades que Ashbery de sobreviver ao severo juízo do tempo. Está destinado
a fazer parte da insigne constelação de poetas que inclui Walt Whitman, Emily
Dickinson, Wallace Stevens e Hart Crane.
John Ashbery
nasceu em Rochester, Nova York, em 1927 e dividiu o tempo de seus últimos anos
de vida entre o aparamento do Chelsea e uma casa às margens do Hudson, lugares
onde compartilhava seus dias com seu companheiro David Kermani. Cresceu numa
propriedade rodeada de maçãs, onde seu maior fascínio era ver a neve. Aí se cristalizou
seu interesse pela poesia, cujos exercícios ainda começaram quando tinha só
oito anos. Escreveu uma extensa obra, algo em torno de três dezenas de títulos.
O poeta morreu no dia 3 de setembro de 2017.
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