Desamparo, de Inês Pedrosa
Por Pedro Fernandes
A vida é
trânsito fugaz de existências. E Inês Pedrosa elegeu, através da sua
literatura, a tentativa de captá-las. Por isso, cada livro seu se constitui
numa reunião bastante heterogênea e, portanto, complexa de fotogramas cujo núcleo
são os elementos que nos acompanham e participam para o bem e para o mal do
enforme desse universo convencionado por todos como realidade. Nos dois títulos
mais recentes da escritora – Dentro de ti
ver o mar e este motivo destas notas, Desamparo
– é cada vez mais visível tamanha
preocupação. Nesse sentido, a escritora lida com materiais extremamente delicados
e capazes de fazer com que suas narrativas se tornem, muito cedo, objetos
obsoletos: é o grande risco que corre os escritores imersos demais nas vagas de
seu tempo.
No caso específico
da escritora portuguesa, os indícios do falhanço não são verdadeiros nem tampouco
evidentes. Isso porque, magistralmente, as tais questões ainda não assentadas não
estão no plano principal de seu interesse mas são coparticipantes na natureza
de outras complexidades, sejam estas os dramas do sujeito imerso numa caudal de
transformações histórico-existenciais, sejam as questões caras à investigação
não de um modo específico de ser e estar no mundo mas de àquelas que sempre nos
inquietou, tais como as intrincadas vias do amor e do porquê e para que
existimos, para citar duas das expressões recorrentes em Desamparo.
Mas, o
leitor que acompanha a escrita de Inês Pedrosa desde sua estreia no romance
terá percebido que sua preocupação com a diversidade de questões atinentes do
seu tempo produziu um sismo na sua prosa; seus dois títulos mais recentes estão
no limiar entre o romance e a novela. Desamparo,
por exemplo, pode ser lido, integralmente, como uma novela, se julgarmos a
estreiteza que o contexto da narração mantém com o universo externo ao texto e
pela forma ágil, superficial e resolvida como se porta a multiplicidade de conflitos
da narração.
Este romance
é mesmo um caleidoscópio pelo qual se entrevê em reflexos variados as múltiplas
questões inerentes no atual contexto do homem contemporâneo. Porque, se algo
nos aconteceu com as transformações históricas e sociais que atravessamos desde
o alvorecer da civilização é o acúmulo de questões caras à resolução e por isso
o estágio de vertigem e desemparo do qual padecemos no tempo dos paradoxos
terminais, para recuperar uma expressão cuidadosamente cunhada por Milan Kundera
que qualifica o tempo denunciado desde Franz Kafka, composto dos absurdos
institucionalizados.
Isto é, o
caleidoscópio construído por Inês Pedrosa é sintoma – ou quiçá uma tentativa
muito acertada, diga-se – de uma dimensão sobre esse tempo diverso e adverso,
da não-fronteira, da impossibilidade da unidade ou da unidade diversa, que
experimentamos diariamente até quando tudo se torne instransponível e perto do
fim inevitável do homem pelo homem, ritmo profetizado pela ciência, pelas
narrativas distópicas contemporâneas e pela literatura a qual se filia Inês
Pedrosa.
Desamparo lida com o imprevisível que
nos desorienta, com o lugar invertido das subjetividades. Por isso, sua intenção
se reveste de pormenorizar o em curso,
isto é, os apagamentos, as continuidades, os desenraizamentos, as incapacidades
de relação com a existência, entre outros claros sintomas de um mal-estar do
sujeito. Prioriza, para isso, as narrativas com pontos de vista salteados, ora
um ora outra, ora em primeira ora em terceira pessoa, capazes de captar o
máximo de quadros e contrastes que se constituem em dorsal deste livro.
Além dessa
variabilidade dos pontos de vista, é sintomática a prevalência e dominância do
espaço na constituição da experiência subjetiva sobre a categoria tempo. Com
isso, a escritora se concentra em demarcar uma crise sobre a expectativa de um
futuro possível, porque as coordenadas de remanejar as situações são escassas.
Em Desamparo tudo se passa como se
estivéssemos presos a um eterno presente, no qual a repetição do mesmo se
mostra como se anunciasse uma impossibilidade do descontínuo, que seria uma
saída para uma ordem crível de apagamento da dor e do sofrimento dos sujeitos.
E isso não se deve a um apagamento das forças individuais, mas do embate contínuo
entre tais forças.
O homem é
pedra do próprio homem. Contrapõe-se nesse jogo de forças o passado cujas dificuldades
estavam noutra esfera mas se constituíam em favorecimentos aos sujeitos no
mundo e o presente cujas marcas do capital, seja a competitividade desalmada,
seja o sufocamento das gentes simples, seja uma crença desmedida no poder da
meritocracia, são estratégias sombrias do desencanto. Desamparo é uma palavra,
portanto, que nos define no mundo atual.
As
narrativas que compõem o livro de Inês Pedrosa lidam com essa condição de
apartados de si e dos outros, signo máximo do espírito livre do capitalismo. É
denúncia sobre as desordens instituídas no núcleo dos sujeitos por um modelo
prepotente que substitui-nos os sentidos que nos fazem humanos pela invalidade
dos não-sentidos.
Isso fica
notório em diversas situações descritas em Desemparo:
a desunião recorrente da família de Jacinta, portuguesa de nascença e
brasileira de criação, que retorna ao seu país para morrer. Ela foi casada duas
vezes e duas vezes separada, teve quatro filhos: um do primeiro casamento que
nasceu morto e leva a confirmação de outra morte, a do relacionamento com
Álvaro; e três do segundo casamento com Ramiro – Rafael, o self-made man, de muitas posses, nenhum pouco afeito à família, que
mesmo a poucos quilômetros do funeral da mãe, se recusa a sujar os pés na
simplicidade dos seus; Rita, de vida modesta, mas ao que parece interessada
tanto quanto Rafael apenas nos bens; e Raul, o filho gorado, que mesmo
arquiteto escapa a trabalhar numa central de telemarketing mas não se descuida
de ajudar com o possível a mãe e carrega uma sorte diversa de culpas pelos acúmulos
de má-sorte segundo ele é seu destino e sina.
Agora, não
seria literatura se encontrássemos aqui apenas uma repetição pelo universo ficcional
dos lugares-comuns desse modelo social. Se por um lado tais lugares são recuperados
pela literatura não é para que sejam reforçados em sua inteireza, mas se constituam
problemáticos, e se demonstrem estratégias de resistências e subversão de tais
modelos. Ao menos um pouco de brisa não nos pode negar a criação artística ou
estaríamos integralmente submissos à rede de imposições que sutilmente nos
dominam e transformam-nos em coisas entre coisas, para recuperar uma metáfora
potente noutro texto da literatura portuguesa, o conto de José Saramago “Coisas”.
E não é à
toa que Desemparo escolha justamente
uma mulher (outra vez ela) para oferecer uma alternativa frente a desolação
porque atravessa esta personagem na qual a narrativa se concentra desde a morte
de Jacinta. Clarisse, quem silenciosamente acompanha, toda a vida de Raul passará
a intervir e trazê-lo à superfície, num gesto que muito tem de ressurreição,
afinal este é um homem completamente integrado à ordem das repetições – desde a
profissão que exerce – e ao desamparo: a não realização profissional, o
apagamento da liberdade criativa (antes de ser arquiteto, Raul interessa-se
assiduamente pela pintura), a impossibilidade do amor, seja porque as paixões
que desenvolve são apagadas pela inoperância do corpo, das frustrações ou pela
recusa do destino e sua força traiçoeira experimentada pela morte (fonte maior
dos nossos desamparos), a opressão familiar em que cada um dos seus membros
estão contaminados pelo jogo de interesses de nascença na mesma força decadente
do capital etc.
Se Clarisse conseguirá
resgatá-lo de um todo só mesmo a leitura de Desamparo
poderá revelar – fiquemos apenas com a suspeita delegada pela própria estrutura
limiar do gênero no qual se inscreve essa obra. Mas é preciso sublinhar que sendo
o discurso literário a contraface do desamparo, a obra de Inês Pedrosa se inscreve
no rol daquelas que denunciam a dimensão da crise enquanto projeto construído à
base de modelo cuja força se mantém pela repetibilidade das mesmas formas, isto
é, da crise tornada em estágio permanente capaz de garantir a sobrevida dos
sistemas gestados pelo capital.
O estilo
presente no discurso narrativo desse romance-nouvelle
nunca é do elogio a tais modelos – mesmo quando se entretém a descrever os zelos
do Estado para com os idosos que vivem em situações de extrema solidão nos confins
de Portugal. O leitor não poderá se descuidar disso para compreender as razões por
que Inês Pedrosa se apropria de questões tão suspensas no ar da história. A crítica
aos discursos recorrentes dos modelos de civilização tal como estes têm se
desenvolvido – em contínua substituição dos valores humanos pelos valores do
capital – constitui na literatura da escritora portuguesa o seu horizonte ético
e político.
O reencontro
de Clarisse com Raul reinstaura um valor fundamental e caro às sociedades contemporâneas,
a alteridade, valor fundante do discurso ético, silenciado ou entrado em
colapso na atual conjuntura. A presença trágica no núcleo das experiências
individuais e sua contínua recorrência no instante que confluem para o
apagamento da alteridade porque os sujeitos não mais estão preparados para a
experiência e os destinos de fracassos reiterados diariamente pelos discursos
que o enformam são as mesmas que conduzem os sujeitos ao narcisismo, ao recrudescimento
dos valores humanos. São os limites de uma sociedade doente, o que tracejam os
fotogramas criados pelo caleidoscópio de Desamparo:
um produto de inquietações sobre o
tempo de incerteza, ou terminal, de um modelo civilizatório que assiste a tudo sem
saber ao certo como reagir à ruína iminente.
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