De Mário Peixoto, é preciso virar a página
Por Pedro Fernandes
Repete-se com
muita frequência que a geração com pés fincados no grande pântano das redes sociais
tem se revelado portadora de um mal: tem muitos planos, aliás, é extremamente criativa,
mas pouco ou quase nada torna-se realidade. E não porque não saiba o caminho
das pedras através do qual possa concretizar suas ideias; é que, por alguma
razão, tudo se adia um pouco e quando se percebe, a ideia está morta. A acusação
tem alguma verdade, mas talvez seja necessário rever que este não é um mal de
geração. É possível até que seja, agora, uma recorrência, mas ela independe do
atual contexto. E entre o projeto e sua execução há mais elementos envolvidos
que a mera inação de nosso tempo.
A criatividade
é, no geral, coisa que carece e muito de um amplo exercício de autocontrole e canalização
das forças para um sentido em específico ou a vida inteira poderá não deixar de ser
uma sucessão de devaneios. A bem da verdade, não há mal algum na não-realização
de ideias – talvez isso signifique um mal muito mais para o idealista que para
os expectadores da ideia. O eterno fracasso, entretanto, coloca em risco o colorido
da existência e nos faz refém de uma sensaboria além de um mergulho na
falsa sensação de que tudo já foi inventado.
A negativa
de que o fantástico universo de idealizações não é produto da atual geração se
oferece quando somos confrontados com a diversidade de projetos de importantes
figuras que nunca saíram do papel e quando estas estavam num tempo em que o tsunami
de entretenimento não era uma constante. Nessa ocasião, possivelmente se pensa
que, uma parte delas estava marcada pelo desfavorecimento do meio – sobretudo
quando pensamos nos países com baixa qualidade de vida como o Brasil. Mas essa
opinião também morre no instante em que se pode compreender tal condição como
um solo fértil à criatividade tal como favorável demais ao goro das ideias.
Nesse ínterim,
vale citar um nome que, depois de passado à eternidade, não poderá continuar
sofrendo do descaso – primeiro, em parte, autoimposto, depois, imposto – e que teimam chamar de fracasso.
Trata-se de Mário Peixoto. Uma aproximação à biografia desse brasileiro logo
nos levará a compreendê-lo na galeria dentre os de alta criatividade. Não foi
um desfavorecido total porque filho de família com boas condições, criado no
sudeste do país, com incursões pela Europa, mas parece que teve o azar (ou quem
sabe a sorte) de pertencer a um país mergulhado na mais fatal das necessidades e integrado numa condição obscurantista e paupérrima.
Não é o caso
de acreditar que de lá para cá as coisas tenham dado um giro total e alcançamos
os patamares dos chamados grandes países. Não. Melhoramos muito, mas ainda
sequer colocamos o pé na estrada. Quando o assunto é criação artística, o
máximo que conseguimos foi continuar com mentes ávidas, espíritos criativos e
uma grande força de vontade de romper com o circuito fechado que nos impõem dentro e fora do país.
Isto é, em grande parte, pelo menos no nosso contexto, quando os projetos goram
não significa uma mera apatia do seu idealizador. É o meio, marcado pela cisão
de grupelhos, pelos gestos de favorecimento aos que já nascem favorecidos e o
total sufocamento na selva intrincada e fechada, coronelista, que faz de um
autor cuja ideia sobrevive a esse mar de intempéries um herói. Em parte, por
aqui, ter dinheiro é mesmo insuficiente, porque ideias, sobretudo no âmbito cultural,
não carecem apenas disso, mas de outras forças e são estas as que mais se
negam.
Certamente,
Mário Peixoto não gostaria de se deixar passar por esta imagem do herói nacional.
Mas, daquilo que sobreviveu à sua visível incapacidade de dedicar energias para
um só plano, dada a extensão da sua criatividade, apenas pela sua força de
ação, porque não foi a filiação a grupos de poder cultural determinado quem o
fez, o faz herói. Isso das filiações, por exemplo, fica notável na pouca
presença de seu nome entre os principais projetos de sua geração, muito embora
não tenham lhe faltado, vez ou outra, aproximações tímidas, como faz Jorge
Amado ao impulsar a publicação de um romance numa editora de algum peso ou Mário
de Andrade com um prefácio que escreve para Mundéu,
no qual classifica a poesia de Peixoto como “legítima”: “São poemas que nascem
feitos, explosões duma unidade às vezes excelente, em que o movimento plástico
das noções e das imagens é incomparável dentro da nossa poesia contemporânea”.
Este livro de poemas é do início da década de trinta e fora essa aproximação do
poeta paulista, ao que parece, nada melhor saiu da voz dos outros de sua
geração – embora em nenhuma ocasião a obra o faça poeta deslocado do seu tempo.
Mas, onde a
acusação de frustrado tem eco? Como cineasta pensou e produziu uma
ampla variedade de roteiros e de ideias, mas só conseguiu realizar a duras
penas um, Limite; como romancista
pensou e trabalhou quase toda a vida num grande romance à proporção de Proust com
Em busca do tempo perdido, vingou um
pequeno livro, O inútil de cada um;
da extensa quantidade de poemas só um livro saiu em vida, Mundéu, embora muito tenha aparecido depois; e das narrativas curtas
– contos e peças de teatro – sobreviveram oito texto reunidos, também
postumamente, em Seis contos e duas peças
curtas. E só.
Uma
observação superficial, e aqui, já encontramos essa raiz acusatória a qual
tratamos de expurgar de questão, poderia acusá-lo então com a máxima comum de
quem muito deseja pouco ou nada faz ou ainda a impossibilidade de ser –
salvaguardando os gênios – tudo ao mesmo tempo. Para as duas opções é preciso
olhar o seu avesso: que Mário Peixoto muito desejou é verdade, que pouco
realizou também, mas o que fez, em termos de qualidade criativa e estética, não
foi pouco e sim o suficiente para atestar seu multitalento. As
multi-habilidades, entretanto, não o fazem um gênio. Nem ele, nem ninguém. Um
artífice, um sonhador, um desassossegado, um tomado pela força da ideia – tudo
isso foi e são os multiartistas. E, no caso específico do brasileiro, demonstra
na maneira como inovou em todos os projetos que idealizou. Vale antecipar: frustrado
é uma opção cômoda de reprovar a significação grandiosa de um talento.
Limite é o raro exemplo, da cinematografia
brasileira, de uma produção que nos coloca em pé de igualdade com as criações
de ordem experimental do chamado cinema-arte mundial. Durante longo tempo este
é um dos nossos melhores filmes de culto e já agora um lendário. É desde sempre
visto como “um esforço para explorar possibilidades visuais, as técnicas
experimentais e as variações rítmicas do medium fílmico no contexto de uma
afirmação às vezes melancólica, outras um tanto agressiva sobre a limitação e a
futilidade da existência humana”. Também foi produto de uma diversidade de
esforços técnicos, numa época quando os recursos nessa área do Brasil eram
praticamente inexistentes. Sua existência é a culminância de um sonho somada à
persistência.
A leitura de
O inútil de cada um, ainda um romance
incompleto, porque depois do primeiro volume publicado graças à intervenção de
Jorge Amado, os outros cinco não passaram de planos – numa repetição post-mortem da falibilidade dos projetos
de Mário Peixoto – é motivo suficiente para reafirmar a engenhosidade da sua
prosa. Lido como uma narrativa de difícil penetração, certamente porque se
filia a uma tradição literária melhor marcada pela relação entre o conteúdo da
prosa o conteúdo poético, isto é, uma transmutação de formas, qual serão
exemplos na literatura universal, Marcel Proust, Virginia Woolf, James Joyce
entre outros, este romance, vindo a lume, remodelará certos determinismos do cânone,
sobretudo esta linha que atribui a outros nomes a força representativa da
introdução desse tipo de narrativa no país. A julgar pelo conteúdo temático de
outros textos em prosa, há ainda este outro componente que só amplia a valia da
obra de Mário Peixoto.
Agora,
quando da sobrevida do autor e quando é possível olhar para sua obra com outros
olhares, menos marcado pelas regras dos falsos dogmatismos de seu tempo,
nota-se, muito claramente que, se por um lado ele se filia na extensa lista das
figuras tomadas pelo idealismo e cujas altas temperaturas de uma criatividade
atípica contribuem para uma dispersão em igual proporção das realizações, por
outro se filia a outra lista dos que contribuíram para uma revisão fundamental
nos rumos da sua cultura.
Guardadas as
devidas proporções, nas duas listas as quais o nome de Mário Peixoto integra, está um sobre o qual poderia caber as acusações do fracasso e não pesam – o do português
Fernando Pessoa. Mário não nos deixou uma arca. Mas nos deixou uma obra inovadora.
E as acusações que pesam sobre ele são isso: acusações. Porque não se rendeu às
mesquinharias do local. E já agora se muito se planeja e pouco se faz, isto é, se isso é mesmo uma característica do nosso tempo, então, mais um motivo para ter a o escritor em conta: ele assim o era desde, pasmem, 1930!
É chegada a
hora de passarmos, portanto, para uma nova página. Aquela que visa corrigir as
falhas deste país para com a obra de Mário Peixoto (embora esse mea culpa seja uma dívida de alto valor de um país que desde sempre
terá preferido subvalorizar seus criadores, todos, sem exceção, uns mais que outros);
aquela que visa desfazer o duro silêncio visível numa simples visita às
informações de bibliografia passiva. A edição da revista 7faces a ser publicada
em breve, com material inédito sobre o multiartista e ensaios de especialistas
que reforçam alguns dos seus feitos para a arte brasileira é uma tentativa
nessa direção da negação do silêncio e do esquecimento. E, claro, reverter alguns dos comodismos formados por certa opinião sectarista e unilateral.
Porque, anotem isso, se a
inoperância for, como acusam os mais desgostosos de nossa era, uma recorrência
ou falha desse tempo, ao menos se abre agora o tempo da revisão sobre a obra de
Mário Peixoto, o que, por sua vez, só reafirma, sua atualidade e, constatada sua versatilidade e criatividade, logo poderá se desmentir a apatia de nossa geração. E se, toda inoperância, resultar em
frutos de tão boa safra como o multiartista brasileiro, então, viva a inoperância!
Precisamos dela para proteger a cultura da mesmidade – esta sim um dos miasmas
mais necessários de expurgação.
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