Coração e alma, de Katell Quillévéré
Por Pedro Fernandes
A literatura
de cunho pedagógico remonta uma longa tradição cuja função foi definitiva para
modelar algumas das maneiras como passamos a compreender o mundo. Uma das correntes
desse modelo na França tem representantes que vão das fábulas de La Fontaine a
textos de Jean-Jacques Rousseau. E não é que tenha deixado de existir, mas o
terreno de agora já não dispõe do glamour do passado. Numa época, então, em que
se privilegia o leitor perspicaz, capaz de construir por outros caminhos sua compreensão
das coisas, ou ainda, o capaz de construir com sua própria visão a partir dos
sentidos construídos de obras de natureza diversa, o tom, até certo ponto,
autoritário da pedagogização caiu em desuso e se tornou matéria de péssimo ou
duvidoso gosto. É claro que ninguém é obrigado a nada, mas a maneira de se perceber
conduzido por alguém que deseja de maneira muito clara lhe conduzir a um
destino pré-determinado não agrada. Principalmente pelo tom farsesco e artificial
que a narrativa pode assumir, toldando irresponsavelmente a empatia e o
envolvimento do leitor.
Notavelmente
a linha que sustenta Coração e alma
encontra-se presa nessa tradição. E se o romance de Maylis de Kerangal desmente
ou não a intuição comum das narrativas do tipo é algo a ser verificado e servir
de debate para a manifestação contrária à opinião desenvolvida neste texto.
Isto é, o filme de Quillévéré deixa e muito a desejar. Principalmente se considerarmos
a segunda parte da narrativa, aquela, aliás, que sustenta a responsabilidade
pelo título da obra. O caráter quase documental assumido pela narrativa
cinematográfica mantém-se excessivamente preso a uma obsessão: reafirmar a
importância do ato de doação de órgãos. E o tratamento oferecido pela produção
a este gesto é integralmente contaminado por um extremo grau de pureza e rigor capazes
de convencer os espíritos mais difíceis da necessidade da doação. Soa como um
filme produzido para ser visto durante o processo de decisão dos doadores indispensáveis
mas mais resistentes à doação. É como se a todo tempo estivesse ao nosso alcance
uma voz a nos dizer “doar órgãos é bom”, “nós vamos tratar você (ou seu parente)
com zelo e carinho necessários e não há complicações quanto a isso”. Bom, até aí
tudo bem, porque do ponto de vista ético, apesar de nem sempre as coisas se
desenvolverem com as cores da ficção, esse cuidado é fundamental; mais ainda se
considerarmos alguns pequenos esforços ensaiados pela classe médica em prol de
uma humanização das atividades hospitalares. Mas, na ficção, esse esforço cansa.
Não é o caso de o espectador esperar pela cena brutal capaz de agitá-lo na
poltrona do cinema, mas é a maneira como a adaptação conduziu, lentamente o
passo a passo do procedimento cirúrgico – o tom documental, como ficou dito
antes.
Mas, nesta ocasião o que se imagina é que a narrativa havia chegado ao fim e
na necessidade por preencher o tempo de um longa, a produção cismou em colocar
em teste a paciência do espectador, com um detalhe: a previsibilidade certeira
de que não existiria, depois de quebrada a resistência da família do doador,
mais nenhum drama a ser vencido se não o cumprimento do estabelecido pela conduta
médica. Claro, também não é o caso de o espectador está na torcida pelo desvio
do curso de salvação e do felizes do fim da narrativa. É unicamente o tom cansativo
assumido numa ocasião em que se esperava mais da objetividade.
Tanto
é verdade que, na primeira parte da trama, há um excesso também de situações
que não levam a lugar algum uma vez que a atenção da narrativa cinematográfica se
concentrará no drama de uma personagem e seu núcleo – a família. Aqui, essa
insistência em dizer mais quando o que se quer é dizer menos acaba contribuindo
para um funcionamento capenga das personagens, extremamente rasas, como o espectador
já estivesse familiarizado com elas – o que não é verdade. Em parte isso da construção
do drama e das personagens rasas é corrigido em alguns aspectos no segundo
momento, quando se concentra na vida da pianista Alice e seus filhos, embora
alguns erros voltem a se repetir, como a descontinuidade sobre um dos rapazes
que seria o mais problemático da família. Ou seja, mesmo o tom pedagógico
assumido não incomoda tanto porque se sobressai outras determinantes, porque afinal
Coração e alma vai na direção contrária
das narrativas contemporâneas não apenas por remontar a um tradição tornada em
descrédito, mas pelo interesse desenvolvido em contar um drama cuja trajetória
se desfaz do tom recorrente do trágico ou ainda por depositar uma crença
inabalável na capacidade humana em fazer prevalecer justamente essa
característica que nos coloca em relação superior na natureza: a humanidade.
Então, cabe
agora ressaltar a vitalidade deste filme que o coloca noutra posição, mesmo que
isto não o redima da reprovação. É que estamos tão marcados pela repetição contínua
da mídia – sobretudo num Brasil que cultiva diariamente o registro do negativo
e do esforço sobre a maldade humana contra seus semelhantes, e isso também se
verifica reincidentemente nalgumas das diversas produções cinematográficas –
que o esforço, quase sobre-humano em nome do e da salvação de uma vida abre-se
no espírito algum alento. Nesse sentido, o filme de Quillévéré nos contrapõe e
contrapõe a face do mal com uma luz e nisso reside sua beleza maior que o faz
um melodrama de graciosa emotividade. É um registro de um milagre conduzido por
homens sem Deus, um marco nas epopeias de corte racional, num lugar quando a razão
aos poucos tem se demonstrado muito próxima da desrazão.
São duas
narrativas que dão forma a Coração e alma:
a de um grupo de jovens do interior da França apaixonados por Surfe em que num acidente
de carro, no retorno de uma de suas aventuras, o que estava sem cinto tem decretada
a morte cerebral; e a de uma família em Paris em que a mãe, a pianista Alice, tem igualmente decretada
a morte cardiovascular se não alcançar em tempo um órgão são para doação. As
duas narrativas ora correm em simultâneo, ainda que não seja mostrada dessa
maneira pela câmera que prefere primeiro contar uma para depois contar a outra,
sendo que esta segunda é a história que ultrapassa a primeira, visto que a
salvação dessa mãe é, de certo, a sobrevida de Simon, o garoto morto. Ao desprezar
a complexidade da narrativa, preservando um plano quase teatral para construir
a trama cinematográfica, a diretora responde qual seu objetivo em contar essa
história: chamar atenção para um tema ainda considerado de difícil abordagem mesmo
com todos os avanços da medicina e os esclarecimentos oferecidos ao público
(aqui está o valor pedagógico da narrativa) e construir uma reflexão sobre o
poder transformador dos gestos e as atitudes que zelam pelo outro como nosso semelhante. A compreensão entre um e outro lugar fica sob responsabilidade do espectador.
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