Avenida Niévski, de Nikolai Gógol
Por Pedro Fernandes
Apesar de só
recentemente os estudos literários dedicarem alguma atenção sobre o
espaço enquanto categoria multiforme e portanto plurissignificativa no e para a narrativa literária, esta parece haver galgado a obsessão desde sempre. O conto de Nikolai Gógol é um exemplo disso: data de entre 1832 e 1842. Detalhe: trata-se de uma
peça que integra um conjunto textos nos quais o escritor russo escolheu como
mote criativo Petersburgo. A cidade era, então, capital do Império Russo, papel
que exerceu até 1918, quando as instituições administrativas do governo mudaram
para Moscou. Já a avenida que dá título ao texto é a via principal de
Petersburgo. Logo, a escolha de Gógol em situá-la como protagonista da
narrativa não é gratuita.
À maneira de um cronista seduzido pela importância,
magnitude e imponência da avenida Niévski, o narrador, contrariando a crítica
que faz à pintura russa, acusando-a de ser destituída de cores vivas e
movimento, oferece-nos um retrato vivaz e de corte multiperspectivo à maneira do captado pela vista de um flâneur, termo francês que designa o vagabundeio por uma cidade, a caminhada
despretensiosa mas que se situa no limiar da atenção sobre as coisas e o
devaneio. Este cronista não capta apenas um estado de espírito do sentir-se
na avenida Niévski. Tampouco é um olhar que paira sobre a arquitetura e os
espaços diversos que compõem o lugar.
Quando se compreende que esta avenida se constitui
em protagonista da narrativa é porque se leva em consideração que este espaço
participa ativamente do enforme das ações e das caracterizações dos seus transeuntes,
moradores e mesmo do narrador. O olhar que não capta os planos superficiais do espaço, está interessado numa arquitetura íntima da avenida, bem como numa
compreensão de como os indivíduos são modificados pelo espaço onde se situam. É
nesta arquitetura íntima que o narrador pode perscrutar ainda sobre as
fantasias, as obsessões, as felicidades, enfim, aquilo que se deixa encobrir
pela suntuosidade do espaço. Tanto é verdade, que de uma extensa região rica de
variadas espacialidades, este narrador escolhe justamente os lugares desconhecidos
do visitante e mesmo da maioria dos petersburgueses, lugares, aliás, por
vezes, produtos de uma condição imaginativa.
Avenida Niévski, por isso, reveste-se de um brio nonsense. Tão logo, o narrador abandona o tom do cronista
que à primeira vista parecia se propor à composição de uma ode a avenida, o
leitor atravessará duas historietas colhidas pelo olhar transeunte, tanto que
são enredos breves e retrospectivos: num primeiro, o narrador aproveita a
passagem de uma bela figura feminina a quem o pintor Piskanóv devota todos os
olhares durante seu trajeto para contar como, seduzido por essa figura
entregou-se à tragédia qual súcubo de uma obsessão. É esta narrativa cujo
fôlego é o do insólito qual uma narrativa de E. T. A. Hoffman, qual “O reflexo
perdido”, o conto do escritor alemão em que um homem perde todo brio (simbolizado na perda da sombra) em
nome dos encantos de uma misteriosa mulher.
Piskanóv, na ordem dos românticos
empedernidos substitui aos poucos as cores da vida real pelas da fantasia. Esta
é uma narrativa envolta numa atmosfera onírica e à medida que realça a
impossibilidade de confluência do material do sonho e da realidade, reafirma a
impossibilidade de explicação do primeiro pelo segundo, além de revelar quão
frágeis são seus limites e quão perigosas são as seduções pela superficialidade
do mundo. Sob a primeira vista do que se vê escondem-se camadas diversas que
são em grande parte o oposto do que se vê; uma clara crítica ao império do
efêmero e do aparente – a principal das observações ensaiadas por Gógol na composição
dessa arquitetura íntima da avenida Niévski.
O leitor notará isso desde quando
o tom da narrativa, depois de perscrutar os primeiros turnos do dia alcança o
trânsito da tarde para a noite e no quanto nesse ínterim os interesses dos
transeuntes se concentram no trabalho da exposição visual nos modos de ser e
estar. A segunda historieta, aproveitando o gancho propiciado pela primeira,
expõe muito claramente isso: Pirogóv, um respeitado sargento, atencioso para com
todos que passam e vivem em Niévski, se mostra, pelo lado de dentro, isto é, na
sua vida privada, como um indivíduo fora-da-lei.
Ao garantir que as mulheres
são todas falsas e existem para servir aos caprichos do homem, o sargento envolve-se
na tentativa de ter para si uma jovem alemã casada. Paira aqui uma observação
sarcástica sobre os falsos rigores da lei e seus abusos contra a gente comum.
E, porque nada neste texto é gratuito, não poderá passar despercebido aos olhos
do leitor o trocadilho que o narrador de Gógol faz com duas personagens patentes
neste núcleo do sargento Pirogóv: Schiller e Hoffman. O primeiro é o companheiro
da alemã assediada pelo sargento; o segundo amigo de copo do alemão. Sobre os
dois paira a explicação ao narratário de que não os confundam com as duas
figuras da literatura, o que só acende ainda mais as suspeitas sobre as influências
de Gógol para a composição de Avenida Niévski.
Quando Pirogóv vai pela primeira vez à casa de Schiller, encontra os dois
amigos numa cena que novamente traz o nonsense para a composição da trama: decidido
pela compreensão de que o nariz lhe dá altos prejuízos pelo consumo variado de
tabaco (e essa personagem é signo do mesquinho que quer juntar a primeira fortuna o quanto
antes), Schiller convence o amigo a arrancar fora o nariz – acidente que só não acontece
pela interrupção da cena por Pirogóv. Se Hoffmann está para esse episódio nonsense, Schiller
para o amor idealista do romântico Piskarióv, quem sucumbe aos encantos de um
fantasma.
O quanto de verdade reside na segunda historieta reside de
inverossímil na primeira. Mas uma não anula a outra. É mais possível que a
primeira seja alguma daquelas lendas urbanas comuns em toda cidade e estas por
sua vez como parte do imaginário social se constituem característica
indispensável à identidade de um lugar. E, claro, sob toda aparência, mostrada
como real, a realidade é outra.
“‘Tudo se passa ao contrário. A este, o destino
deu lindos cavalos, e ele os cavalga com indiferença, sem sequer notar sua
beleza – enquanto isso, outro, cujo coração arde de paixão por cavalos, viaja a
pé e se satisfaz em apenas estalar a língua, quando passam diante dele cavalos
trotadores. Este tem um cozinheiro excelente, mas por infelicidade sua boca é
tão pequena que não consegue de jeito nenhum enfiar dentro dela mais de dois bocadinhos;
outro possui a boca da grandeza do arco do prédio do Estado-Maior, porém – que
pena! – tem de se contentar com um almoço alemão qualquer, feito de batatas. Como
nosso destino brinca conosco de modo estranho!’ Porém os acontecimentos mais
estranhos de todos têm lugar na avenida Niévski. Ah, não acredita nessa avenida
Niévski! Eu sempre me envolvo mais ainda em minha capa quando passo por ela e
tento, de todo modo, não olhar para os objetos que encontro. Tudo é ilusão,
tudo é sonho, nada é o que parece! Você pensa que o cavalheiro que passei com
uma sobrecasaca feita com todo o esmero é muito rico? Nada disso: todo ele consiste
apenas na sobrecasaca. Você imagina que aqueles dois gordões parados diante de
uma igreja em construção trocam opiniões a respeito de sua arquitetura? Nada
disso: conversam sobre a maneira estranha como duas gralhas estão paradas uma
na frente da outra. Você pensa que aquele entusiasta que sacode os braços conta
como sua esposa jogou uma bolinha pela janela em cima de um oficial que lhe era
completamente desconhecido? Nada disso, ele está falando sobre Lafayette”.
Ao revelar a arquitetura interior de Niévski, Gógol ingressa-se no âmbito das revisões ideológicas só dada à literatura e à arte geral; neste caso, a principal delas, a necessidade de transver. Isto é, ver o que se passa além das aparências. Entre a superfície e o fundo das coisas há uma zona bastante difusa que nos diz melhor sobre o que, de fato, o mundo é: um amontado de contradições.
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