Um romance sobre a aparência que se torna essência
Por Rafael Kafka
Thomas Mann
escreveu um imenso e genial romance sobre a decadência familiar burguesa
chamado Os Buddenbrook. Um romance
tão genial que anula um pouco o brilho deste Sua Alteza Real que tive a chance de ler na semana passada. Verdade
que a história de Klaus Heinrich é escrita de modo mais direto, mais simples do
que a do jovem Johann Buddenbrook, mas no romance sobre a família de
comerciantes Mann foi mais ousado em diversos aspectos e escreveu um texto que
além de ser um romance sobre a decadência liga os temas dos interesses
econômicos de uma família aos papeis de gênero na sociedade burguesa com sua
estrutura da sagrada família.
Ainda assim, Sua Alteza Real pode ser lido como uma espécie
de complemento do panorama tecido em Buddebrook.
Mais uma vez, não vemos Mann lidar diretamente com uma individualidade e sim
com uma coletividade. Do gênero romanesco, o autor alemão pega a identidade
fixa das personagens com seus nomes específicos, mas sentimos que diante de nós
não temos uma personagem que representa a si mesma e sim um todo, um grupo
social.
Em um estilo que
mais lembra o de um poema em prosa em certos momentos, Mann nos faz seguir a
trajetória de Klaus Heinrich, um herdeiro de trono que nasce com uma
deficiência física que afeta profundamente o ar intocável tido pelos
aristocratas. Afinal, vistos como representantes de Deus na Terra, é
inadmissível que tal casta de nobres se mostre com este ou aquele defeito em
sua constituição, pelo menos externável.
O romance é
dividido basicamente em duas partes. Na primeira, Mann faz uma tessitura
narrativa que lembra demais as notas feitas por Sartre em seu diário sobre
determinado nobre e mostra como os reis nascem com uma vida determinada e de
certa forma escravizada. O nobre é um ser-para-reinar, diz o pensador francês.
Assim sendo, todos os seus gestos desde o nascimento são controlados no intuito
de formar o ser apto a reinar ou a fazer parte da corte real. Assim sendo,
vemos na primeira metade do romance o comportamento de Klaus como o de um ser
cristalizado, que não pode ir além do que lhe foi imposto.
Os locais onde
estuda, os colegas de estudo, os espetáculos ao ar livre, tudo é feito de forma
programada para se criar ao redor do pequeno príncipe um ar de majestade que
mais tarde espera-se cristaliza-se. Quando mais jovem, Klaus em cada gesto
questiona essas limitações e somente aos poucos vemos o rapaz começar a aceitar
o seu futuro. Mas aqui temos a presença de uma consciência não tética, ou seja,
não reflexiva. A liberdade de Klaus está presa ao ambiente aristocrático e de
forma livre, sem julgamento, o jovem entrega-se ao mundo que desde pequeno o
arrebanhou.
Neste sentido, Sua Alteza Real segue a linha
tradicional do romance de formação com o protagonista sendo ensinado a viver e
ao final se tornando aquilo que é. Tal processo se dá no choque com membros de
outra classe social a qual luta pelo poder, a burguesia. E uma burguesia
estrangeira. A paixão pela filha de um excêntrico milionário norte-americano
faz Klaus enfurecer os membros da nobreza a princípio. Ademais, a jovem parece
esnobar em cada gesto seu o modo teatral de Klaus como estúpido, sem vida.
Porém, após uma
série de atos insistentes, Klaus consegue propor casamento à jovem, obtendo
para tanto a permissão dos seus pares aristocratas. O curioso é que em certo
momento parece que o Klaus adulto voltará a assumir a liberdade do Klaus
adolescente, todavia mesmo o seu casamento se revela uma espécie de jogo de
interesses. Com as finanças do reino em ruínas, o matrimônio acaba sendo visto
como uma interessante fonte de obtenção de fundos para salvar a economia
combalida.
Sua Alteza Real mostra aqui uma grandeza
crítica que não encontramos em Os
Buddenbrook. Enquanto este focou de forma extremamente ontológica nos
modos de ser de homens e mulheres, cada qual com determinado papel social
dentro da tradicional família patriarcal, o outro romance mostra como a classe
burguesa e a classe aristocrata se enfrentam em busca do poder e acabam, quando
necessário, criando acordos para manterem uma união estável e sem conflitos.
Os burgueses
agora são os donos do reino com sua fortuna, mas diante de todos a aristocracia
é quem ainda impera. Interessante observar como o povo vê em Imma após
determinado tempo uma pessoa com ares de nobreza, uma pessoa aristocrata, mesmo
ela sendo da burguesia. O olhar do outro, do público aqui, indica que
aristocratas e burgueses na verdade fazem parte de uma mesma classe dominante
que exerce o poder de formas diferentes, mas com o mesmo ar de aparência e de
nobreza. Burgueses e aristocratas em verdade são o mesmo, apesar de agirem de
forma diferente e de terem, em certos momentos da história, tido suas querelas.
Sua Alteza Real é então um romance sobre
aparências, no âmbito micro de um nobre que pensa em se libertar de seu papel,
mas logo se rende a ele; e no nível macro, de instrumentos de imprensa criando
uma imagem aristocrática intocável e de relações de poder que parecem parte de
um conto de fadas. No romance de Mann, a aparência se torna essência e Klaus
não realiza a ruptura que Johann faz em Os
Buddenbrook, deixando de lado os negócios dos pais para seguir uma
carreira dedicada à música. Aqui a liberdade tem como objeto não ser livre e
sim ser coisa. Ser uma engrenagem perfeita dentro de um sistema de dominação
que segue a funcionar tão bem que escraviza os próprios dominadores em seus
lugares de conforto.
***
Rafael Kafka é colunista no Letras in.verso e re.verso. Aqui, ele transita entre a crônica e a resenha crítica. Seu nome é na verdade o pseudônimo de Paulo Rafael Bezerra Cardoso, que escolheu um belo dia se dar um apelido que ganharia uma dimensão significativa em sua vida muito grande, devido à influência do mito literário dono de obras como A Metamorfose. Rafael é escritor desde os 17 anos (atualmente está na casa dos 24) e sempre escreveu poemas e contos, começando a explorar o universo das crônicas e resenhas em tom de crônicas desde 2011. O seu sonho é escrever um romance, porém ainda se sente cru demais para tanto. Trabalha em Belém, sua cidade natal, como professor de inglês e português, além de atuar como jornalista cultural e revisor de textos. É formado pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará em Letras com habilitação em Língua Portuguesa e começará em setembro a habilitação em Língua Inglesa pela Universidade Federal do Pará. Chama a si mesmo de um espírito vagabundo que ama trabalhar, paradoxo que se explica pela imensa paixão por aquilo que faz, mas também pelo grande amor pelas horas livres nas quais escreve, lê, joga, visita os amigos ou troca ideias sobre essa coisa chamada vida.
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