Salinger, um grupo de psicopatas e os do MKUltra
Por Rafael Ruiz Pleguezuelos
Norman
Mailer, sempre disposto a ofender, disse numa ocasião que Salinger era a maior
inteligência que não havia passado de secundária. No fundo, o autor de A canção do carrasco declarou é verdade,
embora tenha feito impulsionado por essa espécie de pensamento violento que conforma
sua personalidade de raro escritor. Dou razão a Mailer de que na obra de Salinger
tem algo de desenvolvimento preso, de árvore obrigada a permanecer no tamanho
de um bonsai. O que acredito que o bom de Mailer não entendia, ou queria
entender, é que para muitos leitores de Salinger (incluindo quem assina este
artigo) o que seduz em sua literatura é justamente isso, que viva num tempo congelado
e propicie que entendamos melhor a dor da pessoa que fica presa entre fases, como
se o elevador de sua vida se detivesse entre o andar da adolescência e o da
vida adulta.
O apanhador no campo de centeio é um
livro demasiado especial, singular na
acepção mais obscura do termo. Por isso
conheço tantas pessoas que afirmam que é a melhor obra que leram como a que
detestaram até reconhecer-se incapazes de resistir uma dúzia de páginas de sua
leitura. Isto acontece porque há um tipo de livro que existe somente para ser
amado ou odiado, sem oferecer um julgamento intermediário. Nesta categoria me
vêm à mente títulos como A insustentável leveza
do ser, de Milan Kundera, Pescar
truta na América, de Richard Brautigan ou Graça infinita, de David Foster Wallace.
Os livros grandes
têm essa característica, já se sabe, mas no caso particular de O apanhador no campo de centeio há algo
a mais, existe algo mais profundo que transcende o sensível binômio do gostar /
não-gostar que estamos acostumados. Eu sempre vi essa pequena obra de Salinger como
um texto que inclui uma chave que abre portas em certas pessoas e em outras
não. Podemos lê-lo e continuarmos iguais, porque nenhuma porta abre-se para
nós, mas também podemos terminar o livro e sentir que Salinger mexeu em nossos
mecanismos interiores, mudando-nos para sempre.
A idade que
nos aproximamos do romance deste gênio é também importante, claro. O apanhador no campo de centeio é um desses
livros que é perigoso de ser lido na adolescência, de modo que essa idade é
ideal para aproximar-se dele. É possível que ao entrar pela primeira vez no
universo de Holden Caulfield com cinquenta
anos somente consigamos dormir, ou que se o desfrutarmos em nossa juventude e
depois tentar relê-lo o contemplemos com a mesma atitude condescendente com a
qual percebemos essas fotografias em que aparecemos com espinhas e um corte de cabelo
inverossímil ou lemos nossos diários de jovem apaixonado e inseguro.
A relação de
O apanhador no campo de centeio com a
sociedade, especialmente a estadunidense, nunca foi simples. Desde sua primeira
edição, em 1951, passou-se por tudo: campanhas contra e tentativas de
proibição, publicações com partes não autorizadas (ardentemente perseguidas
pelo próprio autor) e uma longa lista de assassinos que se declaravam
admiradores da obra. Também milhões de leitores que desfrutavam a obra e não
faziam mal a uma mosca, mas desses não se sabe nada, naturalmente.
Muita gente lê
O apanhador no campo de centeio buscando
uma espécie de santo graal da mente humana e findam enganados pelo livro. A razão
é que a obra de Salinger não é um bom livro se nele buscamos tudo. Somente é uma grande obra se nos
preocupa uma questão concreta: o valor da inocência em tempos sem moral.
Quando Mark
David Chapman foi detido pelo assassinato a sangue frio de John Lennon, a polícia
informou que o sujeito tinha consigo dois artigos: uma pistola e um exemplar de
O apanhador no campo de centeio. Os agentes
tinham certeza o que havia feito o primeiro objeto, mas o segundo, a partir de então,
se inaugurou uma maldição ainda hoje mais viva nos Estados Unidos do que possa
parecer. Se amanhã fizerem o registro na casa de um delinquente jovem e encontrarem
uma cópia do romance sublinhada e comentada, estejam certos, que anotarão essa circunstância
nos autos.
Mark David Chapman
comprou o livro, assassinou Lennon e se sentou tranquilamente a lê-lo enquanto
a polícia chegava para prendê-lo. Escreveu no livro “Esta é minha declaração”,
e assinou com o nome do protagonista do romance, Holden Caulfield. Quando foi
preso declarou com a mesma frieza como havia cometido o assassinato que “Estou
seguro de que Holden Caulfield é uma grande parte minha, o protagonista do
livro. E o diabo deve ser uma pequena parte”. Uma das questões mais curiosas e
assustadoras da relação entre o assassino de Lennonr e a personagem da obra é
que Chapman não se esqueceu do livro nem mesmo durante sua longa estadia na prisão,
nem deixou de ressaltar a importância sobre o papel do texto acerca de sua loucura
de sociopata daqueles dias.
Numa
entrevista concedida no ano de 2000 ao todo-poderoso jornalista estadunidense
Larry King, o assassino declarou (falando de si próprio em terceira pessoal, como
se fosse uma espécie de Julio César psicopata): “No dia 8 de dezembro de 1980,
Mark David Chapman era uma pessoa muito confusa. Vivia literalmente dentro de
um romance barato (sic), O apanhado no campo
de centeio, de J. D. Salinger. Vacilava entre o suicídio, tomar o primeiro
táxi para casa de volta ao Havaí ou matar, como disse, um ícone”. A
interpretação que muitos autores deram ao funcionamento da morte de Chapman quando
cometeu o crime é que sentia que Lennon era um desses rapazes que jogavam no centeio
e havia de ser salvo, porque estava sendo corrompido pela sociedade e
abandonando sua pureza.
Como consequência
desta nefasta lenda, O apanhador no campo
de centeio foi em 1981 ao mesmo tempo o livro mais proibido nas escolas
estadunidenses e o segundo mais recomendado. Lee Harvey Oswald, assassino de
Kennedy, mantinha uma cópia do livro próximo de sua cama. Nesse mesmo ano um
rapaz chamado John Hinckley Jr. tentou matar Ronald Reagan e nos
interrogatórios não deixou de falar do livro. Em 1989 Robert John Bardo levava consigo
(adivinham?) um exemplar do romance de Salinger quando matou a atriz Rebecca Schaeffer.
Em nossos
dias, a relação da escola estadunidense com a obra de Salinger continua sendo
bastante especial, embora a gente tenha esquecido do tema e outros clássicos contemporâneos
disputem esse trono de maldito. O tratamento das escolas estadunidenses com O apanhador no campo de centeio pode se
resumir nesta sensível frase que leram em alguma parte: é leitura obrigatória
em todas aquelas escolas em que não está proibido.
Todo o
sentido de O apanhador no campo de centeio
se encontra em seu título. Era tremendamente difícil traduzir esse The catcher in the rye para outra
língua, mas há que reconhecer que em português se fez um bom trabalho. Não
tiveram tanta sorte os franceses L’Attrape-coeurs
é um nome ominoso para o romance, como é o inexpressivo Il Giovane Holden da versão italiana. Num
momento da obra, Holden Caulfield explica qual seria o único trabalho que
poderia lhe atrair: ver os menos jogar num campo de centeio junto a um penhasco.
Dedicar tempo a contemplar enquanto jogam, e ser a pessoa que os salva de cair
no penhasco no último instante. Holden Caulfield quer ser uma espécie de guardião
de nossa inocência, a pessoa que impede que os meninos caiam na vida adulta,
onde tudo o verdadeiramente bom desaparece, sendo substituído por uma suja confluência
de interesses.
O livro cativa
porque nos mostra o mundo sem contar com a opinião dos adultos, centrando toda
sua atenção na maneira em que um adolescente ordenaria a realidade. Lendo os contos
de Salinger temos frequentemente a mesma sensação: os protagonistas são sempre
meninos tremendamente inteligentes que se negam assimilar o que vêm.
Não se disse
o suficiente que a pessoa que seguiu ao pé da letra a mensagem – oculta ou não –
de seus livros é o próprio Salinger. Também se esquece que o autor escreveu a
obra depois de um sofrimento psicológico agudo, derivado da pressão de realizar
as tarefas de contraespionagem na Alemanha e que uma vez conseguida a fama decidiu
recluir-se do mundo, não permitindo sequer que sua fotografia aparecesse na capa
do livro. Tentou salvar-se de cair no precipício, seguindo a simbologia do
livro. O primeiro conto de Salinger em que Holden Caulfield está presente foi
publicado pela revista Collier’s em
dezembro de 1945. Intitulava-se simplesmente “I’m crazy”.
Como todo
mito contemporâneo que se preze, a história de O apanhador no campo de centeio também tem sua própria teoria conspiratória
que se move entre o puro delírio e o romance de espiões a Ian Fleming. Existe uma
autêntica corrente opinião que liga o livro de Salinger a nem mais nem menos
aos experimentos MKUltra (Mind Kontrol Ultra) da CIA. Este nome de videogame
responde a um programa verdadeiro criado e aperfeiçoado pela agência
estadunidense nos inquietantes anos sessenta, que tentava estabelecer um controle
mental sobre sujeitos determinados, pretendendo que um indivíduo pudesse
pré-programar-se e ser utilizado à vontade para qualquer ação, incluindo a
morte de outros humanos.
Diz-se que o
MKUltra provou drogas, hipnose e práticas próximas às da tortura para tentar alcançar
esse controle total sobre a mente, mas também estímulos intelectuais que podiam
atuar como propulsores para se conseguir certas coisas de um indivíduo. A
teoria, que conta com uma bibliografia digital nada desdenhável, afirma que O apanhador no campo de centeio poderia
ser uma obra que sabe tocar nesses instintos
assassinos que ao que parece todo sujeito guarda dentro de si e que os do
MKUltra localizaram. A cereja do bolo desta teoria louca para gente ainda mais
louca é o dado não demasiado contrastado de que Mark Chapman, nosso assassino
de Lennon, esteve recluso num esquadrão da CIA em sua juventude, onde foi
tratado com diversas drogas e terapias psíquicas. Não sabemos se também teve acesso
a bons livros.
Woody Allen
declarou mais de uma vez que O apanhador
no campo centeio é um de seus livros favoritos, como no meu caso seria
motivo suficiente para esquecer-me do romance e deixar de escrever sobre ele. Sem
dúvidas, não posso deixar de pensar na obra de Salinger como um de seus relatos
mais belos do caminho, inevitável, a perda da inocência. Conta a lenda que uma
vez um estudante de Arkansas levantou a mão na sala de aula para perguntar ao
seu professor de literatura que havia mandado os alunos da turma ler o livro
naquele semestre se não considerava que ler O
apanhador no campo de centeio podia ser perigoso. A resposta do professor
foi sublime e deveria imprimir-se em todas as faixas publicitárias do romance: “Não
te preocupes. Somente é perigoso se o entendes”.
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