Potnia, de Leonardo Chioda
Por Pedro Fernandes
Em diversas culturas
a água se apresenta como a origem da vida. No mito bíblico sobre a criação do
mundo, para citar ao menos uma dessas recorrências, se diz que no princípio de
tudo só o espírito pairava sobre as águas. A filosofia de Tales de Mileto numa
de suas primeiras formulações sobre a unidade de todas as coisas teria compreendido
que tudo é água. E, mesmo a ciência, reitera que a origem da vida na terra se
deu a partir de um único elemento e que este se formou e se transformou na
água. Pela água também é que o homem se descobre homem. O encantamento de Narciso
por sua imagem nos diz que pela água conseguimos pela primeira ver a nós mesmos
ou o outro de nós. Eis então a primeira condição para a reflexão. Para a
alteridade. Pela nossa imagem, desenvolvemos as primeiras compreensões sobre
uma interioridade e uma exterioridade a nós.
A água é um
elemento de fora e de dentro de nós porque tanto participa de nossa composição químico-biológica
e física e de nosso campo psíquico. Logo, não é gratuita sua recorrência no
imaginário poético. Nas águas vivem as ninfas capazes de trazer ao poeta a
engenho de contar, a verdade do que diz. Na Odisseia
esse elemento é meio onde se locomove Ulisses no retorno a Ítaca e dela surgem
não apenas as grandes forças de embate com o herói como se prenuncia um dos
dilemas criativos que tomaram forma e alcançaram o limite de chegar a responder
pelo espírito criativo do ato literário: o impasse entre o mundo definido pelos
sentidos controlados pela astúcia, protótipo da ação, e o mundo construído pela
liberdade do imaginário, força primitiva. Esta observação toma como ponto de
apoio o sempre lembrado episódio de Ulisses e as sereias.
É nesta
senda por onde se infiltra a poesia de Leonardo Chioda em Potnia. O eu-poético desse livro que sobreviveu aos constantes embates
do poeta / a figura civil com a reescrita – exercício fundamental do processo
natural de construção do objeto artístico-poético – é o Ulisses da epopeia
clássica (ou seria as sereias?) cuja voz se deixa ouvir sussurrada no ouvido do
poema que o transmuta noutras vozes e por isso mesmo noutro Ulisses, o da
palavra. Este é também tão perspicaz quanto o herói; transita num mundo
degradado, entre os escombros, reanimando com halo poético símbolos e formas,
recriando-os a uma maneira a trajetória fundadora de toda atitude heroica: o
desafio e a recriação num contínuo flerte com um universo abstrato cujas bases também
estão assentadas na dimensão invisível de nós. Sua atitude é o poema e sua
gênese. Trata-se de um livro que almeja ser o lugar de trânsito entre a
agitação do pensamento e o cultivo lapidar e racional da construção poética.
É este um
livro de resgate e um resgatado. Primeiro, porque aí encontramos um estreito
diálogo com uma extensa ancestralidade do homem, capaz de nos colocar dentre os
escombros de um tempo cujas formas ainda eram mesmo que variadas um todo
informe e logo não-descontínuo como terá se tornado em quando da cisão que nos colocou
em relação de permanente conflito com o mundo. É este gesto o fundador da
viagem homérica: o desafio do herói para com os deuses assinala, com o mesmo
sentido da tradição bíblica de expulsão do casal adâmico do paraíso, a cisão
entre o homem e o mundo. Na mesma posição, o poeta responde ao desafio da palavra.
Este tempo outro, entrevisto nos poemas de Potnia,
entretanto, nos chega descontinuado e insinuado por pequenos pontos de passagem
oferecidos pelo olhar meticuloso, mas despretensioso, do poeta sobre o seu
entorno. A poesia de Chioda é puro ato de insinuar-se. Ora, nosso tempo já não
é para grandiosidades. Somos resquícios e o que nos resta são revelações. O
poeta é o mago do nosso tempo, o capaz de nos oferecer sua leitura dos laivos
que uma e outra vez avultam sem nossa percepção e por entre os gestos de
perquirição imaginativa de um minerador que cavouca os silêncios na busca de
uma pedra capaz de lapidar em joia dizer a palavra de consolo ou de danação.
Em Potnia a cisão que nos condenou à errância
se esconde na camada de reiterações temáticas que por vezes parecem – se
julgadas sem o cuidado de olhar a unidade da obra – inarticuladas. Particularmente,
esse gesto reitera a natureza da criação poética contemporânea. O poeta, o
outro Ulisses, é também um errante porque homem entre os homens. E duplamente
errante, porque marginal. O expulso do paraíso e o expulso da república. É este
que agora abraça a tarefa de quem recolhe, entre tempos sem limites e
fronteiras, os diversos materiais com os quais constrói sua trajetória e esta é
nada mais que o poema, objeto em torno do qual dedica todo seu esforço.
A água é
meio favorável aos embates que este eu-poético investe na composição de uma
unidade poética capaz de se erguer do manejo adequado dos remos, a escrita, e
da direção dos ventos, as articulações entre as camadas diversas de sedimentos levantados
pelo poeta na escavação do imaginário. A natureza maleável da água, ora
elemento concreto porque sentida pelas forças dos sentidos, ora abstrata porque
incapaz de permanecer totalmente retida, deslizante, se confunde com a natureza
da linguagem. E com a do nosso tempo – um todo que sentimos passar mas não tempos
possibilidades de agarrá-lo.
Se tudo é
água, a palavra é tudo. A liberdade pela qual o poeta corre aparentemente
entregue a nada, como corre o aventureiro em mar aberto, e a cela de onde é
impossível escapar. Sim, a água não é só vida. É destruição e morte. No mito
bíblico, Deus desapontado com os homens, decide destruí-los com um dilúvio. Se
nos mata a sede, a água, quando em excesso, nos afoga. Assim, também a palavra.
Se dita de maneira equilibrada nos sacia, porque nos afaga, porque nos reponde
às inquietações que nos priva da liberdade. Mas quando tomadas de suplementos
da intolerância nos matam. A água e a palavra são de natureza limiar. Está aqui
a chave para o universo de Potnia, entre
o fazer e o desfazer de sentidos – este princípio crucial da linguagem: representar
e acrescentar – o poeta constrói sua obra. Isto é, não mera catedral de
palavras.
Todos os
poemas que compõem até a chegada de uma passagem designada pelo poeta por
“Axioma” estão ao mesmo tempo fechados na navegação pela feitura do grande
poema enunciado no título do livro. Só depois, o grande poema, como se aquela
flor drummondiana, se abre. Quando suspeitamos que esta obra de Leonardo Chioda
emerge dos sussurros das sereias a Ulisses enquanto forma que converge a razão
e o imaginário na composição do poema é porque este outro Ulisses que se mostra
como eu-poético é forma híbrida. Tomado pelas vozes das sereias, o herói da Odisseia também se converte em limiar, e
logo, figura mista; tocado e não tocado pela força sedutora das sereias. Razão
e desrazão. Essas vozes que se indeterminam, ou seja, que juntas são e não são,
confluem com o princípio definidor de Potnia,
o grande poema que se quer formar e com
voz igualmente híbrida. Este poema, todo tempo indiciado como tal, porque seu
tempo é este líquido, fractal, impossível de responder por uma determinação
obtusa, alcança nesse impasse sua grandeza.
E é preciso
atravessar, mesmo sem arte de marinharia mas não alheio ao bulício da linguagem
poética, todo o marejar a fim de perceber este livro como um axioma sobre a
próprio fazer do poema; só então, flor desabrochada, o leitor olha para o
rastro de espuma na água e perfaz o dilema do poeta ante o mar aberto, aqui não
azul, mas alvo como o papel. Potnia, portanto, a “soberana”, “rainha” se confunde
com o próprio poema, ora reencontrado com a suas mais originais forças, ora a
prensar o do mais significativo da poesia moderna e contemporânea. Embora nua
se mostre, é tarefa nossa ainda a despir; não das roupas que isto é camada supérflua,
mas das muitas tessituras sugeridas pelo seu mistério.
Na tradição
grega, Potnia integra parte da força misteriosa de Perséfone, a deusa que está
no círculo vida-morte, capaz de levar o neófito da morte à vida e imortalidade,
tal qual a poesia, tal qual o diálogo inaudível entre Ulisses e as sereias, tal
qual sua trajetória entre Tróia e Ítaca, tal qual, por fim, o itinerário de constante
renascer que marca a reiterativamente estes poemas de Leonardo Chioda.
Nesse
ínterim, o leitor terá descoberto por que Potnia
é um livro resgatado? Porque, ao mesmo tempo que introduz novas inflexões
na lírica contemporânea brasileira, entrelaçando-a a uma tradição ocidental
(aliás, é este um dos trabalhos mais ardilosos em que uma variada produção
literária se filia, num movimento contínuo de universalização do literário
patente desde quando as criações literárias se centravam apenas no exercício de
cópia do clássico), os poemas nos
levam ao tempo do ato poético enquanto pulsão, força sublime. Essa característica
poética se deixa ouvir desde alguns dos poemas de Tempestardes, o livro de estreia do poeta já dotado de algumas
ambições aqui colocadas em prática e, portanto, demonstrativas de que estamos ante
um afeito em conformar uma trajetória para nós interessante de acompanhar de
muito perto.
Provam a condição
de engenho poético, uma espécie de segunda parte do livro, onde parece o poeta
revelar algumas dessas peças coletadas para o corpo do poema por fazer. Uma suspensão da maneira de pelos objetos para. Propositalmente,
ao que parece, interrompe-se o fluxo do poema de estrutura maior pela sentença curta,
à maneira de dicionário (ou se revela na estirpe do reino drummondiano onde o poeta mergulha para catar
os poemas que esperam ser escritos). O poeta a despir-se para o seu leitor?
Possivelmente. Que a poesia é este contínuo jogo de sedução: revela e segreda,
segreda e revela. Há em nesse mover-se um jogo de natureza sensual e erótica no
qual o poeta enquanto herói funde-se, como se nos revelar fosse sempre forma transmutada
no dizer do poema. E é preciso o leitor imiscuir-se ou não sobrará da poesia nada
mais que seus conteúdos enformadores. Melhor assim: o poema tal como sentença
de um oráculo nunca foi de nos deixar dizer que ante nós estamos confortáveis. Sempre
nos foi enigma e confronto. Confronto porque enigma. Não nos deixemos levar
pela superfície lisa ou agitada da água. Cuidemos que sua movência nos exige a
posição de estarmos em alerta; tal como Ulisses ante o canto das sereias.
Comentários