O reflexo perdido e outros contos insensatos, de E. T. A. Hoffmann
Por Pedro Fernandes
E. T. A. Hoffmann e seu amigo Ludwig Devrient no bar de vinhos Lutter & Wegner, tela de Carl Themann, 1832. |
Os contos reunidos nessa coletânea por Maria Aparecida Barbosa destoam
em grande parte do ideal que o leitor comum fará de E. T. A. Hoffmann ao
pensá-lo enquanto um escritor do romantismo. Claro, essa observação um bocado
reducionista, encontra reverberação no senso comum que repousa sobre o conceito
segundo o qual o ideal romântico envolve necessariamente um imbróglio amoroso e a danação dos amantes. Um dos contos que preenchem essa alternativa é – e o
título engana bem – “As minas de Falun”, a história de um jovem marinheiro
desiludido da vida errante e porque havia tido sorte nas empreitadas mas não
nas relações familiares e no amor sai em busca de servir como mineiro em Falun.
Dividido entre o amor por Ulla, a filha do patrão, e pela ambição, dirigida por
um certo fantasma, o mesmo que lhe diz em sonho sobre o brio de ser mineiro,
Ellis, é este o nome do rapaz, e Ulla têm uma vida de igual maneira: dividida
entre as marcas da coita amorosa e sua irrealização. Há outras presenças, como
o ingênuo arrebatamento amoroso vivido entre Nathanael e Olympia, uma autômato,
força que o conduz à danação, mas uma crítica interessante ao espírito cego do romantismo de alta voltagem.
Entretanto, a observação aqui apresentada não tem interesse de criticar
negativamente as escolhas da antologista. Pelo contrário, quer estabelecer a compreensão
sobre a importância dessa antologia para a ampliação do conhecimento sobre o
universo criativo de Hoffmann – um escritor de vida breve, mas com extensa e
variada produção artística (também foi compositor e desenhista) e figura
representativa de temas, formas e obsessões fundamentais para algumas das manifestações
literárias desde então. A relação entre literatura e música, a revisão dos princípios
de realidade e ficção pela reinserção do elemento de cariz imaginativo, e as
dualidades das forças e formas não como meras dicotomias mas prolongamentos umas
das outras certamente são muito pertinentes – em parte, mais que os tons do
romantismo já conhecidos dos leitores. Reforça-se, assim, a grandeza
que representou esse espírito de traço eminentemente alemão para a desvinculação
da criação literária do universo vicioso da reprodução do clássico e liberdade
dos impulsos criativos e tão indispensáveis à existência da literatura.
Dentre essa diversidade de contribuições observadas nas produções
literárias de Hoffmann em O reflexo
perdido e outros contos insensatos, fiquemos com uma delas: a reinserção do
elemento de cariz imaginativo. Parte dela, o leitor encontra no próprio título
escolhido para a antologia. O que se denomina insensato é o acontecimento cuja
força existencial não se justifica pelo bom senso, também pelas amarras
delimitadoras da razão. Assim, a atmosfera desses contos – a começar pelo mais
romântico deles, o citado “As minas de Falun” – é sempre a do mistério, casual,
nebuloso e imprevisto. Todas as narrativas se constituem do limiar entre o possível e o impossível, num estado de vigília e de sono, entre o acontecido e
o sonhado que aconteceu, a história factual e a ficção criativa, esta capaz de submeter
os acontecimentos factuais aos seus desígnios, ora para reafirmar a indissolubilidade
entre uma e outra, revestidas sempre dos mesmos elementos composicionais, ora
para recolocar o homem em suspeita sobre os fenômenos captados pelos sentidos e
inescrutáveis pela logicidade do seu funcionamento.
Todas essas construções ficcionais que nos levam além da imaginação,
porque, como sugere Maria Aparecida Barbosa no título do prefácio que abre esta
edição, são situações de cariz filosófico, isto é, produtos capazes de, ao
retirar o leitor da zona de conforto de seus sentidos, levá-lo por uma reflexão
de ordem externa, sobre as determinantes racionais com as quais convive e pratica
sem se questionar. Um exemplo disso é o conto “O anacoreta Serapião”: sua
narrativa se constrói do impasse entre os pares dicotômicos razão/loucura. Tocado
pelo modo de vida alheio ao mundo comum vivido por um monge que se diz ser a
mesma figura que numa época remota da história foi o mártir Serapião, o
narrador buscará demovê-lo da ideia com a garantia de padecer de uma afetação
dos sentidos que lhe tolda a razão e a visão real das coisas. “Se falamos em loucura, e um de nós sofre desse
mal, então aparentemente o seu caso é bem mais grave que o meu. O senhor afirma
ser ideia fixa se me considero o próprio mártir Serapião. Sei perfeitamente que
muitas pessoas pensam assim, ou talvez finjam pensá-lo. Se eu for realmente louco,
só mesmo alguém ainda mais louco pode presumir estar em condições de
dissuadir-me da ideia fixa que gerou a loucura. Se isso fosse possível, logo
não haveria mais louco sobre a terra, pois o homem poderia dispor de sua força
mental, que não é sua propriedade, e sim um bem confiado por poderes superiores”
– assim se posiciona o anacoreta diante das pretensões do seu inquiridor,
toldando inteiramente as tais fronteiras que razão diz segura entre a loucura e
a lucidez.
Não só isso. O conto coloca em pauta outro debate filosófico, o das
fronteiras da realidade: até que ponto esta é o que está fora de nós e o
que está fora de nós não é projeção dos nossos sentidos. Nesse debate entra as
dimensões de tempo e espaço como formulações não só físicas, convencionais e
determinadas mas psíquicas, descontínuas e culturais: “Em primeiro lugar, o
tempo é um termo tão relativo como o número, e eu poderia lhe afirmar que,
segundo minha concepção temporal, mal se passaram três horas, ou como o senhor queira
marcar o transcorrer do tempo, que o Imperador Décio ordenou minha execução.
Então, digamos que o senhor ainda possa me contradizer, aventando a dúvida, de
que vida tão longa como a minha é sem precedentes e contrária à natureza
humana. // Por acaso o senhor tem conhecimento da vida de todos os homens que
existiram sobre a terra inteira para ousar a expressão ‘sem precedentes’? Quer
igualar a onipotência divina à medíocre arte do relojoeiro que não pode salvar
da ruína a máquina morta? O senhor diz que o lugar onde estamos não é o deserto
de Tebas, mas sim uma pequena floresta, situada a duas horas de B*** e
atravessada diariamente por camponeses, caçadores e outras pessoas. Prove-me
isso! ”
Neste debate, a própria contística de Hoffmann se decide pela percepção
multiperspetívica da realidade, a qual se constitui de planos e forças
diversas, como em “O Homem-Areia”, cujo universo narrativo se marca do
embate entre o chamado mundo da superstição e o mundo da razão. Aqui, Nathanael
incorpora à sua existência a história repetida pelos pais na infância de que a criança
deveria dormir cedo para não ser vítima do abominável Homem-Areia. Desde cedo,
envolto em certa dose de curiosidade infantil e ceticismo racional, a lenda se
justapõe à realidade de seu tempo em que vários homens cultos estavam
entusiasmados com os efeitos primitivos da ciência alquímica e as revoluções
aventadas por um imaginário de recriação do mito fundacional em que ao invés de
deus criar o homem à sua imagem e semelhança é o homem quem criaria o homem à
sua imagem e semelhança. E aqui encontram-se algumas das raízes, claro não
originárias com Hoffmann mas readmitidas por ele, do que mais tarde seria chamado
de literatura fantástica e as várias derivações conceituais desprendidas ou
construídas concomitantes daí, tais como insólito, maravilhoso, misterioso, estranho,
fabuloso.
Um dos contos da coletânea que melhor expressa uma das convenções sobre
o universo fantástico é “O reflexo perdido ou as aventuras da noite de São
Silvestre”. A narrativa decorre de uma reunião numa taberna à noite de Ano Novo
onde se apresentam uma sorte diversas de personagens estranhas. Note que todos
os elementos favorecem a arquitetura de uma atmosfera marcada pelo fantástico e
cujas fronteiras estão em vias de: é uma noite, termo de passagem entre um dia
e outro, quando os limites físicos do visível se tornam embaçados; é uma noite
de Ano Novo, termo de passagem de um tempo a outro, marcado pelo espólio das
expectativas e do interesse pelas novas realizações; é uma taberna, espaço de
trânsito, de passagens; três, número cabalístico, são os homens que aí se
reúnem – o narrador, um magro alto que traz consigo plantas raras de uma região
inóspita da América Latina e um tal general russo que ordena cobrir todos os
espelhos da taberna. Num limite em que o que se narra ora parece se realizar
fora dos sujeitos, no plano superficial das ações, e ora, pelas recorrências do
acaso e das coincidências, dentro dos sonhos do narrador, no plano interno,
psíquico, “O reflexo perdido” lida com a construção de uma série de quadros cujo
denominador comum é novamente a interferência do elemento fabuloso no plano
físico: o narrador se verá confrontado com o misterioso caso do homem que fez
um pacto, como um Fausto com o demônio, em troca do amor da misteriosa Julia/
Giulietta, pela qual, ele próprio se vê envolvido no mesmo imbróglio. A perda
do reflexo e a condenação do indivíduo à condição de errante, assinala a
interdependência entre as formas físicas e imaginárias, como enformantes da
existência.
Desse conto é possível dizer ainda sobre o talento de Hoffmann em
surpreender o leitor a partir da libertação com vagar sobre as causas criadas a
partir dos efeitos. Isto é, por vezes, sua narrativa, opera no limite de
inverter as relações causa-efeito. O leitor só saberá que a sedutora Julia é
Giulietta pelas descrições que o narrador oferece de ambas as figuras e que
estas são símiles do mesmo espírito sedutor patente em Goethe, só em outra
dimensão: a da beleza. Ou ainda, que o tal general é assim chamado porque os
que conhecem a personagem e sabem do seu drama da perda do reflexo o comparam à
história lendária de um general russo teria passado pela mesma condição. Percebam,
ainda, quanto a narrativa evoca Doppelgänger
(o mito do duplo): das
personagens, símiles umas das outras, à própria estrutura do narrado, repetição
reflexiva de uma história lendária e
a extensa fabricação de ambiguidades – estas bem visíveis no conto “O
Quebra-Nozes e o Rei dos Camundongos”. Já o debate filosófico aqui é sobre a
relação entre o mundo sensível e sua imagem; e esta como embuste, projeção na
qual não se deve fiar.
O reflexo perdido e outros contos insensatos reúne contos
de três coletâneas distintas: este que nomeia parte do título da antologia, juntamente
com “Jacques Callot”, “Cavaleiro Gluck – uma lembrança do ano de 1809”,
“Kreisleriana” estão em Quadros fantásticos
à maneira de Callot – diário de um viajante entusiasta. O livro, que ficou como
o mais conhecido de Hoffmann no âmbito do conto, se constrói num claro exercício
de intertextualidade exoliterária, ao envolver a criação verbal a partir do
traço gráfico. Jacques Callot foi um gravurista cuja obra se marcou pelo
talento da criação imaginativa de imagens marcadas pela força do estranhamento.
Hoffmann destila sua simpatia e admiração pelo trabalho do francês, cuja obra é
denominada por ele como “fantástica” e dotadas de figuras “criadas pelos elementos
mais heterogêneos” e capazes de ganharem vida “a princípio quase
irreconhecíveis, depois se aproximam e saltam brilhando nítidas e naturais para
o primeiro plano”. Em parte, o autor assim explica o que este texto disse no
parágrafo anterior: as criações de Hoffmann, sobretudo nos contos extraídos
desse livro, têm esse mesmo semblante.
De Contos noturnos, Maria
Aparecida Barbosa escolheu “O Homem-Areia”. E, de Os irmãos Serapião os contos “O anacoreta Serapião”, “As minas da
Falun”, “O Conselheiro Krespel ou O violino de Cremona” e o famoso “O Quebra-Nozes
e o Rei dos Camundongos”, texto que inspirou o balé O Quebra-Nozes, de Tchaikovsky. Portanto, eis uma coleção de histórias
indispensáveis no repertório literário de qualquer leitor.
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