Instrumental, de James Rhodes
Por Pedro Fernandes
Por que escrevemos?
Esta talvez seja a pergunta para a qual mais se ofereçam respostas e as quais
menos consigam compreender uma resposta certeira, no sentido de única e convincente.
Há duas respostas, entretanto, recuperáveis aqui que dialogam diretamente com
esta autobiografia de James Rhodes. A primeira, do poeta português Fernando
Pessoa, compreende o ato de escrever enquanto salvação da alma; a outra, da escritora
brasileira Clarice Lispector, para quem o ato de escrever confunde-se ao de
viver porque um e outro se mantêm pela mesma força – fazer fazendo-se.
Essas duas
acepções se relacionam com Instrumental
porque é a vida em todas as suas contradições e dramas o que James Rhodes
deseja fixar quando decide passar tudo a limpo. A vida, a escrita – e acresça,
agora, a música – existem existindo. E, logo se vê claramente que, sem a escrita,
este pianista inglês não teria encontrado uma via pela qual pudesse expiar uma
parte do estar alheio ao mundo. Isso significa dizer: não apenas a música o tem
mantido vivo ou tem lhe servido de contraponto à aridez de existir, mas a
possibilidade de se expressar através da palavra também tem sua parcela nisso.
De modo que é possível adiantar, para ele, que se escreve para expiar os
traumas e dizer para um mundo só capaz de captar a superfície das coisas que há
outro mundo que se oculta e este, por vezes, é integralmente diverso e perverso
daquele que se mostra.
Instrumental, apesar de ser uma ode celebrativa
ao poder da arte no restabelecimento do homem com o mundo, não é um livro
barato de autoajuda; é, antes, uma
profissão-de-fé de alguém que necessita convencer-se desse poder restaurador da
arte. E convencendo-se nos recobra que sem a arte estamos condenados ao vazio
total e, por sua vez, à degradação, a um estágio individual da barbárie. Tanto
é assim que Rhodes escolhe aqueles momentos decisivos, quando a existência oscila
na linha limite do fim, claro, por pura decisão livre do indivíduo e não por
uma condenação do acaso, para expor como foi trazido do caminho aparentemente
sem volta que escolheu pelo poder da música.
Alguns
poderão acusá-lo (e não precisa porque ele próprio não se descuida de registrar
seu mea-culpa, aliás, outro epíteto possível de se aplicar à obra) de um gesto
narcisista: a escrita exibitiva, a exposição de um eu que almeja receber do
outro um gesto de compaixão ou reconhecimento por sua capacidade de subverter
quase que com o mesmo poder do acaso o ritmo autoimposto de um suicida. O que
não é verdade. Há maneiras diversas de tornar o ato de existir embebido numa
adrenalina, mas no caso de James Rhodes há um acúmulo sucessivo de traumas decorrente
de uma condição a qual foi submetido quando ainda na infância e reiteradas
vezes até a juventude: a manipulação do corpo por quem não é dado o direito (e
nem mesmo se fosse dado) de manipulá-lo ao bel-prazer. Ou seja, todo o futuro
de mergulhos a um inferno sombrio e tortuoso experimentado por esse homem é
produto de uma escolha individual mas as determinantes que o levam às escolhas
que faz não são frutos de sua escolha e sim de uma imposição incorporada com sua. Não há sujeito que
não tenha sido confrontado em sua existência com um conjunto variado de
situações cujas forças estão no controle do outro – este que pode ser o carrasco
que o atormentará então e para sempre.
Instrumental é ainda um espaço através
do qual, seu autor, como se numa roda clínica pode tatear em busca de uma
resposta: por que, dentre tantos, eu o escolhido para uma travessia de
calvário? E, ainda melhor que numa roda de autoajuda, porque escrever permite
ao paciente posicionar-se por uma máscara feita de palavras tal como terá
preferido Rhodes desde sempre ao decidir escolher posicionar-se no vão meio escuro
e recluso da existência para se sentir livre. Observação, aliás, que poderia não
ser verdade se se levar em consideração apenas as muitas aparições públicas de
um Rhodes que interage com as plateias nos concertos para piano entre piadinhas
com as peças e os autores que apresenta.
Assim como
não há uma resposta precisa sobre o gesto da escrita, também não há uma
resposta para essa pergunta sobre o terrível destino que se abate sobre uns e
outros não. Primeiro, porque nunca sabemos se alguém-além, tal como se no
embate de Ulisses com os deuses, escolhe uns e outros para embalá-lo numa densa
maré de reviravoltas quase-sem-fim. Segundo, porque nunca sabemos ainda por que
com alguns as coisas seguem um curso para o qual chamamos normal, ou mesmo se
aqui e acolá se virem presos consigam sair da prisão por uma via menos
labiríntica e então menos dramática, que outros. Esses são territórios
insondáveis, pisados pelos aparatos que tentam aferir os lugares diversos da consciência
e da inconsciência, mas até agora só sabemos uma parca ideia de tudo. Por sua
vez, se muitos aferem uma via de escape em subterfúgios diversos (talvez todos
nós tenhamos desses lugares apaziguadores do espírito), Rhodes, quem experienciou
uma sorte variada deles, encontra, sempre em cada encruzilhada a salvação pela
música. Talvez a vida seja mesmo um embate entre os privilegiados que se
adéquam à ordem comum do mundo e a danação dos que lutam por se adequar. E
nesse cabo de guerra os da ponta de cá terão contribuído muito mais para o
mundo não ser o mais-do-mesmo, muito embora estes não tenham consciência clara
disso. Nesse sentido, Rhodes cumpre o papel do reconhecimento dessas forças
fora de regra que ampliaram o horizonte de criação do homem.
Desde a
paixão pela música tornada em obsessão – precisa ser a mais forte de todas porque
as tentações são muitas, perversas e patrocinadas gratuitamente por uma sociedade
doente e em exceção – Instrumental é
uma catedral de sons. Em muitas tonalidades. Altos, graves, agudos e baixos.
Sussurros e impostações. Seu autor, regido pela mesma clave a partir da qual
extrai o som para o piano, constrói uma escrita que se forja música. O mesmo
estágio obsessivo dominante em toda peça musical se deixa ouvir ao longo dessa
execução: o drama do corpo violado, da intimidade desfeita, da impostura de uma
culpa para um que não tem culpa nenhuma se não a de estar na hora, no local e com
a pessoa errada. Este é o maior grito de alguém que foi obrigado a calar porque
lhe cobrariam das explicações mais caras, de reprovações ainda mais duras e
pesadas que as autoimpostas.
Ao ritmo da
música, Rhodes imprime alguns valores explicativos que tornam sua ode a essa
expressão artística acessível ao qualquer leitor leigo do universo clássico. Não
é que dessacralize a música e os seus gênios, mas uma tentativa de torná-la
significativa para um tempo cujos sentidos sobre as expressões musicais estão
saturados pelo som repetitivo das massas. Assim, cada capítulo-faixa de Instrumental tem a mesma forma de uma enciclopédia
livre: apresenta à maneira de um concertista numa performance os autores e as
ocasiões quando escreveram algumas das peças mais importantes da história da
música. E em cada uma delas os dramas dos compositores se entrelaçam aos dramas
do escritor, que, afinal, não são apenas dramas de um desajustado, são também modos
de denúncia.
Aos olhos de
um traumatizado o mundo é uma farsa; o mundo está tomado por uma epidemia de
homens maus. E bem queríamos que a farsa e a epidemia fossem produtos de uma
mera distorção gerada pela visão traumatizada – o que não é. Rhodes denuncia,
lucidamente, mesmo quando sua fala ganha o ritmo verborrágico de um louco, não
apenas a proliferação dos abusos sexuais contra menores, a epidemia de uma sociedade
crescida sob a repressão, o recalque, mas a ineficiência dos modelos educacionais
e de tratamento para vítimas de qualquer má-sorte. A grande de denúncia de Rhodes,
ao cobrar de si certa unidade em torno dos ideais que lhe salvam da iminência
do fim, é sobre nós que assistimos tudo, passivamente, com cara de horror e de
espanto de quem assiste a materialização do gênio criativo, mas quase nunca
somos motivados a pensar o que foi possível acontecer para que tudo chegasse
até ali – ao espetáculo do horror ou o da beleza. Nesse ínterim, não poupa mesmo o universo hermético
da música clássica e sua autoimplosão porque domesticada não pela força que
sempre regeu todo grande espírito criativo, a humildade, mas pelo estatuto cada
vez mais distanciado de seu lugar de origem por uma elitização megalomaníaca.
Rhodes não
quer de nós compaixão. Quer que sintamos naquilo que o mundo convencional, da
aparência, destrata e despreza como matéria de pouco valor, a grandiosidade do
milagre da existência. Ou voltamo-nos para a única possibilidade de redenção, a
arte, ou estamos em definitivo fadados ao fracasso e ao fim aterrador. Uma
frase de Tzvetan Todorov em A literatura
em perigo reescrita substituindo o termo-chave do texto conclui essa constatação
oferecida pelo relato de Instrumental:
“A arte pode muito. Ela pode nos
estender a mão quando estamos profundamente deprimidos, nos tornar ainda mais
próximos dos outros seres humanos que nos cercam, nos fazer compreender melhor
o mundo e nos ajudar a viver. Não que ela seja, antes de tudo, uma técnica de cuidados
com a alma; porém, revelação do mundo, ela pode também, em seu percurso, nos
transformar a cada um de nós a partir de dentro”.
Comentários