Inconformismo quixotesco
Por Rafael Kafka
Dom Quixote. Julio Pomar. |
O que há de cômico em Dom Quixote há de absurdo na existência:
ela não se basta e não nos basta. Por isso, precisamos dar arte, da literatura
mais especificamente, que por fazer da linguagem arte, da nossa fiel
companheira até em momentos mais banais de nosso viver um objeto de prazer,
torna-se um panorama favorável de sensações transcendentais. Dom Quixote é o
típico sujeito que literalmente fica doido de tanto de ler. Mas Cervantes em
seu romance – vamos chamá-lo assim – não defende a não leitura, como dia mais
se faz hoje em dia. Pelo contrário: em um mundo onde cada vez mais a
arbitrariedade do discurso se evidenciava, como bem mostrou Foucault em seu
breve comentário sobre a personagem quixotesca – o autor desenvolveu uma personagem
que procura romper a ordem das coisas, sublimando a existência em algo
grandioso e perfeito.
Podemos dizer que em Dom Quixote
vemos uma atitude similar à um de cinzento Antoine Roquentin: a náusea como
absurdo da existência surge em contraposição à duração do objeto artístico, que
se nos salva é somente por deixar algo nosso no mundo. A arte pelo vislumbre
ontológico que gera de uma existência mais plena e cheia de sentido nos faz
sentir a vida como algo mais digno de viver, pelo simples prazer de sentir a
beleza artística residente em cada ser humano, como produtor ou receptor de
objetos artísticos.
Mas Antoine e Dom Quixote fazem
parte de dois universos diferentes. O personagem sartreano já vive em um mundo
fragmentado, no qual Deus é tido como morto. Dom Quixote se nega a encarar a
queda do mundo apontada por Foucault e decide pela loucura sair um dia de casa
e viver na pele tudo aquilo que leu nos seus livros de novelas de cavalarias.
Arranja um escudeiro, uma amada e ataca moinhos de vento porque se sente
inconformado com a pequenez do mundo.
A sua imaginação toma forma,
pois somente por meio dela é possível se criar um sentimento épico existente
nas novelas. Muitos podem achar absurdo isso nos dias atuais, mas se olharmos
as redes sociais e percebermos o quanto nos preocupamos em criarmos espetáculos
nos quais somos os heróis centrais, descobriremos na verdade que Dom Quixote
demonstrou uma certa atitude de auto ficção que se liga ao que é vivenciado
hoje no mundo virtual contemporâneo. Mas o herói de Cervantes saiu pelo mundo,
vendo-o por meio de olhos encantados. Nós muitas das vezes ficamos em nossas
camas, projetando no discurso verbal e não-verbal das redes o que gostaríamos
de ser. Em sua utopia pessoal, o engenhoso fidalgo procura a nobreza de ajudar
ao próximo e assim se tornar famoso; nós muitas vezes nos conformamos com as
curtidas da audiência regida pelos algoritmos do Facebook.
O devaneio de Dom Quixote, mesmo
não levando a algum engajamento como de Antoine, ainda assim representa uma
revolta justamente por ele sair do lugar onde morava e buscar a expansão do
olhar. Disse em algum lugar dos textos escritos por mim – e creio que não
poucas vezes – que a literatura pode salvar um ser humano justamente pelo poder
da imaginação. Pelo desejo de se ter mais. Um livro leva a outro, a realidade
literária leva a outra, e assim a pessoa sai de seu lugar. Sempre. A
consciência política é algo oriundo de todo um conjunto de reflexões políticas
– e ela nem é abordada no clássico cervantino – todavia o estímulo literário
deve ser dado na esperança de o ser, pela sua própria descompressão, consiga
contemplar novos horizontes.
Numa realidade na qual cada vez
mais pessoas se dizem não leitoras, fica evidente como a falta de contato com o
texto, em especial o literário, faz com que o discurso se torne murmúrio, lugar
comum, mera tautologia. A literatura começa a salvar o ser humano quando o faz
cair na loucura quixotesca de procurar moinhos de vento para se aventurar, para
de alguma forma romper o próprio status quo existencial, digamos assim, no qual
está imerso. A loucura quixotesca é na verdade descontentamento e serve de
reflexão para nós do poder provocador da obra literária.
Por esse motivo, o romance de
Cervantes é mais um grande romance em forma de metalinguagem do que um romance
narrativo em si. A figura de Dom Quixote serve mais de olhar testemunho de uma
série de histórias as quais são contadas no decorrer do enredo, que mescla
elementos das chamadas novelas de cavalaria com alguma coisa da poesia
trovadoresca e dos poemas palacianos que viraram moda durante o humanismo. Dom Quixote assume um aspecto formal
muito similar ao do contexto pós-moderno e pode ser chamado de romance
fronteiriço. Nele a fronteira entre realidade e ficção está sempre presente ao
mesmo tempo em que muitos gêneros assumem presença criando um emaranhado
estético e narrativo. Cada personagem que surge dentro da história possui
histórias pessoais a serem narradas, mesmo que de certa forma elas sejam
criadas em muitos contextos com o intuito de troçar do fidalgo imaginativo.
Assim, Dom Quixote é um livro que parece servir de despedida a uma era
histórica e literária do período humano ao mesmo tempo que a celebra. A
narrativa oral aqui é registrada de forma escrita, com os diversos contos lidos
e contados que compõem a trama. Até mesmo a autoria do livro é assumida de
forma coletiva em diversos pontos, mostrando um aspecto interessante dos tempos
idos do fazer literário quando este era visto como algo não preso à figura do escritor,
um elemento a mais da oralidade literária. Tudo isso faz o enredo criado por
Cervantes uma constante de clímax, começos, fins e nós. A narrativa é densa,
mas de leitura aprazível, justamente por servir mais como um compilado das
viagens provocadoras de um viciado em novelas de cavalaria do que uma história
com começo, meio e fim.
Lendo esse livro, lembrei de dois autores do século XX também usuários
de um discurso literário que se confunde com a realidade, mas em um sentido
mais biográfico: Proust e Kerouac. Ambos desenvolvem obras que falam mais dos
outros do que si, criando-se uma posição de testemunhos da atividade mundana –
seja o mundo burguês, seja a estrada – mostrando como somente a literatura pode
dar algum sentido à realidade. Mas talvez mais Kerouac do que Proust tenha tido
esse inconformismo quixotesco, vivendo cada momento como se fosse algo
literariamente a ser reproduzido. O certo é que ambos criaram, assim como
Cervantes, uma obra que se torna difícil de ser lida justamente por não concentrar
seu foco de atenção em um momento decisivo: todos os momentos são importantes
na banalidade do ritmo narrativo, pois todos são literatura. Tudo é real e tudo
é invenção.
O livro de Cervantes se mostra universal por na sua forma abordar
diversas outras formas, por no seu enredo mostrar como a realidade é cheia de
acasos que por sua vez podem virar novas histórias e por mostrar como a leitura
realmente pode tornar as pessoas loucas. Mas não é a loucura do senso comum,
que culpado de não ler se fecha na realidade sensível usando o discurso
arrogante da visão que a tudo entende. É uma loucura perigosa que leva o ser a
querer e a ser mais, a ampliar sua visão para além de limites impostos.
É uma visão tão perigosa que vivemos atualmente uma série de ataques
seguidos à educação, cada vez mais tecnicista e elitista. Hoje em dia, não
podemos mais nem mesmo “sonhar” em receber incentivos do governo para lermos e
produzirmos conhecimento. Em tempos idos, mas nem tão idos assim, a leitura foi
alvo de sistemas totalitários que não queriam que seus cidadãos ficassem
loucos, imaginativos e questionadores demais. Dia desses, vi um belo filme
estrelado por Kirsten Stewart chamado Equals,
uma bela distopia que mostra uma realidade na qual as emoções são tidas
como falhas, doenças humanas, e devem ser curadas. Vendo tal película, pude
entender melhor o que Cervantes deixou claro em seu livro no tocante à loucura
de Dom Quixote e porque tantos ataques são feitos aos produtos da imaginação
estética. A loucura, como muitos a entendem, pode ser algo perigoso demais
fazendo as pessoas saírem por aí sem rumo procurando o sentimento de aventura,
procurando sair da mesmice cotidiana de formas prontas de prazer e
entretenimento.
***
Rafael Kafka é colunista no Letras in.verso e re.verso. Aqui, ele transita entre a crônica e a resenha crítica. Seu nome é na verdade o pseudônimo de Paulo Rafael Bezerra Cardoso, que escolheu um belo dia se dar um apelido que ganharia uma dimensão significativa em sua vida muito grande, devido à influência do mito literário dono de obras como A Metamorfose. Rafael é escritor desde os 17 anos (atualmente está na casa dos 24) e sempre escreveu poemas e contos, começando a explorar o universo das crônicas e resenhas em tom de crônicas desde 2011. O seu sonho é escrever um romance, porém ainda se sente cru demais para tanto. Trabalha em Belém, sua cidade natal, como professor de inglês e português, além de atuar como jornalista cultural e revisor de textos. É formado pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará em Letras com habilitação em Língua Portuguesa e começará em setembro a habilitação em Língua Inglesa pela Universidade Federal do Pará. Chama a si mesmo de um espírito vagabundo que ama trabalhar, paradoxo que se explica pela imensa paixão por aquilo que faz, mas também pelo grande amor pelas horas livres nas quais escreve, lê, joga, visita os amigos ou troca ideias sobre essa coisa chamada vida.
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