Gostamos de causar danos (com o grande romance estadunidense)

Por Paula Corroto

William Faulkner, o pai de uma tradição literária estadunidense: a da degeneração


Poderiam abrir nosso coração com um canivete e quase desfrutaríamos vendo correr o sangue aos borbotões. Poderiam dizer que nosso pai é um assassino ou um estuprador e talvez encontraríamos um sentido para a vida. Poderiam comentar que nossa mãe nunca nos quis, que nos abandonou na sala de parto, e nos esqueceu e tudo estaria resolvido. Por fim, encaixariam nossos pensamentos de perda e abandono, o fim do emprego, aquele namorado ou namorada que nos traiu à nossa vista vinte metros de onde moramos. E ainda assim tudo bem.

Esta espessa obscuridade mental, esta descida aos infernos que às vezes propõem as neuroses se fala em muitos romances que nos últimos anos têm gozado do gosto dos leitores e da crítica. Seus escritores são os novos reis do grande romance [estadunidense]: o que dita o pensamento mundial. São os David Vann e Cormac McCarthy que bebem de outros autores desfrutadores da tragédia como Raymond Carver, Herman Melville ou William Faulkner. A tragédia e a brutalidade. O lobo é um lobo para o homem. A natureza depredada. Uma ode ao filósofo Thomas Hobbes, que deve estar se retorcendo em sua tumba enquanto o vitalismo dos Nietzsche e companhia têm dado voltinhas ao seu redor.

“Não há nenhuma razão para pensar que as coisas vão melhorar. Passam-se tempos muito perigosos para o mundo e não me refiro apenas ao tema econômico, não sabemos o que vai acontecer. Sou pessimista, mas não infeliz”, disse McCarthy recentemente numa entrevista. O autor de A estrada ou da famosa Trilogia da fronteira (A travessiaCidade das planícies e Todos os belos cavalos) em que solta todo seu arsenal dos piores instintos que pode possuir o ser humano, apenas oferece uma suspeita do que podemos entender por bondade ou solidariedade. Ao contrário: o obscuro está na alma humana e devemos aprender a conviver com ele.

Algo muito parecido ao que expôs David Vann quando lhe perguntaram sobre a crueldade de seus romances, todos eles marcados pela tensão emocional entre os homens, como não soubéssemos relacionarmos entre nós e, muito menos, com aqueles que temos mais próximos. Leiam A ilha Caribou. Filhos e pais sempre em conflito, casais que não capazes de encontrar um traço em comum. “Nos Estados Unidos temos a ideia de que um livro precisa ter personagens cativantes e deixamos o leitor com bom sabor na boca no final da leitura”, disse certa vez. “Essa nova e estúpida ideia joga por terra dois mil e quinhentos anos de cultura literária. A tragédia consiste em expor a maldade humana, deixando-a a nu. Os europeus são muito mais receptivos a esse tipo de coisas”, acrescentou.

Os europeus sabem muito de guerras e holocaustos. E agora sabe onde precisam aproximar-se para nos dizer na cara como estamos nos matando economicamente. Se isto fosse uma análise freudiana poderíamos dizer que na infância nos desvirginaram [os estadunidenses] de uma forma sádica e o resta-nos ler esses autores vorazmente.

Ou regressar ao condado de Yoknapatawpha, de William Faulkner. Fazer uma imersão nesse mundo hostil, asfixiante, claustrofóbico e violento de O som e a fúria, Enquanto agonizo, Luz em agosto ou Absalão, Absalão! Famílias que se desfazem depois de séculos de tradição. Misérias escondidas que mostram tempo depois que aquele pai não era tão bom como parecia. Que o normal é que te retorçam o estômago até que sangres ou vomites a bile. E se isto não for comprovado em sua obra de ficção, ainda temos os ensaios e discursos; numa carta ao editora da Memphis Commercial Appel enviada em 15 de fevereiro de 1931, ao falar sobre a segregação racial, destaca: “Há certa classe de pessoas de cor que comercializa com a humildade exatamente igual a de certa classe de pessoas de cor que comercializa com outras debilidades e vícios do homem; unicamente acontece que o homem negro está mais em forma para comercializar com a humildade, assim como o irlandês está para a política”. Ninguém é bom simplesmente por sua cor. Tea Party ou um jato de água fria realista? Um olhar além do comum que, sem delicadezas ou doçuras, é do que realmente o homem está feito?

Faulkner escreveu sua melhor obra a partir de 1929, quando publica O som e a fúria. Aquele foi o ano do crack em que os EEUU caiu numa nebulosa depois de uma década de dólares espalhados pela cama tecendo a manta da felicidade. Embora fosse tudo fosse de mentira. O escritor do sul estadunidense foi um agudo intérprete da nova realidade, como também seria John Steinbeck com As vinhas da ira, em 1939, se bem que este romance possui uma maior compreensão sobre as possibilidades de sobrevivência dos homens. A vontade de poder, como diria Nietzsche. A coragem, como sustentaria Ernest Hemingway. Faulkner, como um cowboy, desafiou para um duelo, saiu à frente e oitenta anos depois, sagra-se vencedor. Quase como o hoje também recuperado e idolatrado Shakespeare, em quem Faulkner se inspirou para escrever O som e a fúria. O título do romance é de um dos versos de Macbeth:

“A vida não nada mais é do que uma sombra que passa, um pobre louco que se pavoneia e se agita por uma hora no palco em cena e, depois, nada mais se ouve. É um conto contado por um idiota, cheio de som e fúria, significando nada”.

Ao chegar a este ponto podemos fixarmo-nos sem pudor num dos coetâneos do inglês, Calderón de la Barca, um autor com maiores possibilidades de ser moderno que o mulherengo Lope de Vega. O ar pesado que respiram seus atos sacramentais ou sua famosíssima A vida é sonho, sem falar nas exortações vivificantes de Lope nas comédias do enredo de A dama boba, O cão do jardineiro ou seus dramas de honra, como Fuenteovejuna. Calderón está atormentado por suas crises religiosas. Lope, embora no fim de sua vida se ordenasse padre, vive uma juventude entre mulheres e a fama de ser um dos autores mais vendidos do momento. Lope é o cínico vitalista; Calderón é o atormentado existencial.

David Vann


É interessante que o hálito religioso que se respira nas obras de Calderón está também nestes romances. Neles há uma focalização, sobretudo, no Velho Testamento, nas narrativas do Gênesis e no tema do pecado original. Como se a horrível natureza do homem não fosse tanto, mas como se imbuída pelo que dizem as Sagradas Escrituras. De novo saem à discussão Caim e Abel, Abraão e Isaac e até a arca de Noé. “Caim foi o primeiro tronco. O primeiro filho de Adão e Eva. Caim é o início, o primeiro dos que puderam viver no paraíso”, escreve David Vann em Goat Mountain, romance que relata como uma família pode autodestruir-se por culpa de um filho. O autor criado no Alasca, essa terra selvagem que deve dar uma interiorização profunda em si mesmo, retoma a Bíblia em seus episódios mais sangrentos e violentos, para vermos que mais além não há nada, e que tudo o que veio depois são bobagens. Como a moda New Age, a Era de Aquário e todas essas luas.  No romance Terra, precisamente, expõe qualquer busca pelo transcendente. Como manifestou  numa entrevista: “A filosofia pode nos levar à brutalidade”. E, se é certo que toda imersão na deusa Razão conduz ao ceticismo – e daí para o cinismo resta um só passo – caberia perguntar se a fé não nos dispõe também ao fundamentalismo que, quando menos se espera, não tem nada de suave.

Cormac McCarthy: precisamos aprender a conviver com nosso lado mais obscuro.


Também em Meridiano de sangue, de Cormac McCarthy, encontramos numerosas referências místicas e religiosas com essa visão de como os Estados Unidos se fizeram mediante a guerra e a morte. Um holocausto, resume o escritor. Hobbes volta a respirar mais tranquilo debaixo da terra.

E, sem dúvida, houve uma época em que esta obscuridade literária no que também se divertiu Richard Yates com o seu Via revolucionária ou As irmãs Grimes (não esperem finais felizes), não era tão evidente. Também tivemos fases luminosas como a que traçaram os Beat nos anos cinquenta. Podemos falar numa explicação sociológica: EEUU deixavam para trás a Segunda Guerra Mundial, a crise econômica já não era tanta – o movimento da indústria armamentista fez algum milagre – e começavam a vir os ventos do vitalismo, da liberdade, do bem-estar. O escritor descobria que o ser humano, apesar de tudo, era divertido. E que, sim, o homem mata e produz danos, mas também somos capazes de dar um abraço. Ou beijar. E até transar com amor.

Quando se mergulha nas obras de Jack Kerouac, Allen Ginsberg ou William Burroughs se coloca em destaque as drogas e a autodestruição das personagens, mas possivelmente esta talvez seja uma visão muito superficial. Em Uivo, Ginsberg fala às mentes lúcidas de sua geração e o que busca é sair desse inferno para aprofundar-se na luminosidade. É um grito desesperado. Como o de Kerouac em On the road ou em Big Sur, onde nessa extensão de páginas e páginas o que há é um poderoso afã lúdico: viajar e desfrutar de tudo o que vier. Os Beat não usaram as drogas, o sexo, a bebida como método para danificar-se – ou se fizeram pessoalmente isso não aparece nos seus romances – mas como o pântano para entrar em novas dimensões abandonando a realidade negra, asfixiante, hostil, que seria descrita por Faulkner. Entrar em seu interior se converteu numa dimensão que daria outro artigo sobre.

Os Beat levam a outras vivências de várias décadas anteriores: Jack London, o viajante impenitente que também fez com que sua literatura copulasse com a natureza selvagem, mas não para nos mostrar a relação com a obscuridade, mas para criar um alo solar no leitor. Vida e nada mais. Ação frente à reflexão. Como os cânticos de Walt Whitman que logo fora copiado por Barack Obama naqueles primeiros discursos como candidato à Presidência dos Estados Unidos em 2008. Mas claro, aquele era antes da crise, antes de mergulharmos no mal-humor. Antes de matar os hipercinéticos e deixar a etapa dos que escrevem que um menino de onze anos poderia te matar (flerta-nos David Vann).

Os irmãos Coen colocaram uma peruca em Javier Bardem e converteram-no num assassino. Em 2007, Onde os fracos não têm vez conseguiu o Oscar de Melhor Filme. Lehman Brothers caiu meses depois. Todos éramos maus e responsáveis por não ter escutado aquela balbúrdia financeira que  vestiu nus enquanto outros haviam furado os bolsos. E soltamos a mão daqueles romancistas que nos cortaram o coração com um canivete. Quase poderia ser um ato catártico. Estamos fodidos e gostamos dos danos feitos. Talvez para renascer de novo. Obrigado McCarthy, obrigado Vann.


* Este texto é uma tradução livre para "Nos gusta de hacermos daño (con la gran novela americana)" publicado no suplemento Jot Down espanhol.

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