Coisas que não quero saber, de Deborah Levy

Por Fernanda Fatureto



A escritora sul-africana Deborah Levy esteve na Festa Literária Internacional de Paraty 2017 e apresentou Coisas que não quero saber publicado pela Autêntica Editora. Também sua mesa na Flip, dividida com o escritor e surfista William Finnegan, teve um público considerável. Deborah Levy tinha, antes da Flip, apenas um livro traduzido no Brasil – Nadando de volta para casa, romance editado pela Rocco em 2014. Toda essa curiosidade pelo universo de Levy se dá, em parte, pela temática: Coisas que não quero saber é uma resposta ao ensaio Por que escrevo, de George Orwell, escrito entre 1928 e 1949. Uma resposta pela perspectiva da mulher e em diálogo com algumas escritoras que antecederam, em seus discursos, o movimento feminista como Simone de Beauvoir e Virgínia Woolf. De Woolf, mais especificamente o ensaio Um teto todo seu, de 1929, numa época em que era raro uma mulher frequentar as universidades na Inglaterra.

Responder à questão “por que escrevo” é o cerne do livro. Em Coisas que não quero saber, Levy mantém dividido em quatro partes como fez Orwell os capítulos cujos títulos são: objetivo político; impulso histórico; puro egoísmo e entusiasmo estético. A narrativa biográfica permeia todo o ensaio. Deborah Levy começa investigando o motivo que a leva a chorar toda vez que sobe as escadas rolantes das estações de trem em Londres. Nesse tempo, Levy já morava na Inglaterra há anos e era, praticamente, considera inglesa. Mas nasceu na África do Sul e vivenciou o apartheid que segregava brancos e negros controlados por um rígido sistema que punia e perseguia aqueles que defendiam direitos iguais para todos. Seu pai foi vítima desse sistema. Era membro do Congresso Nacional Africano e o governo tinha banido o CNA por lutarem por uma sociedade mais justa. Naquela época, Nelson Mandela também estava preso. “(…) As crianças brancas tinham um medo secreto das crianças negras e lhes faziam outras maldades. (…) Se você faz uma maldade com alguém, é porque não se sente seguro. E se não se sente seguro, não se sente normal. Os brancos não eram normais na África do Sul. Eu tinha ouvido a história toda do Massacre de Sharpeville que aconteceu um ano depois que eu nasci, de como a polícia branca matou crianças, mulheres e homens negros a tiros, de como choveu depois disso e de como a chuva lavou o sangue”, escreve Levy.

Naquela época, ainda menina, tinha dificuldade para falar enquanto sua voz saía muito baixo: “Na escola, quando eu tentava falar, fazia um esforço enorme para minhas palavras saírem alto. O volume da minha voz tinha sido abaixado, e eu não sabia como aumentá-lo. O dia inteiro me pediam para repetir o que eu tinha acabado de dizer, e eu tentava, mas repetir as coisas não as tornava mais altas.” A voz abaixada era uma metáfora do que tinham feito com seu pai. Levy levava sua infância sem entender como funcionava a desigualdade. O pai, a mãe, ela e seu irmão eram brancos – o que aumentava o desentendimento entre pessoas que defendiam a segregação racial e não entendiam como o pai da garota defendia os negros.

Para projetar a voz, decidiu escrever. “Disseram-me para expressar meus pensamentos em voz alta e não só na minha cabeça, mas resolvi escrevê-los. (…) Encontrei uma esferográfica e tive o impulso de escrever meus pensamentos. O que saía da caneta para o papel era mais ou menos tudo o que eu não queria saber. Papai desapareceu.” A escrita se tornou refúgio, uma maneira de estar no mundo para que todos a ouvissem. O pai ficou preso por quatro anos. Ao voltar para casa, mudou-se com a família para Londres. No exílio, aos quinze anos, Deborah Levy procurava uma maneira de se integrar e esquecer o que havia acontecido na África do Sul. Em um momento da narrativa, a escritora pergunta: “ Como as pessoas se tornam cruéis e depravadas? Se você tortura uma pessoa, você é louco ou normal? Se um homem branco instiga seu cachorro contra uma criança negra e todo mundo diz que está tudo bem, se os vizinhos, a polícia, os juízes e os professores dizem “por mim tudo bem”, vale a pena viver? E quanto às pessoas que não acham que está tudo bem? Há uma quantidade suficiente delas no mundo?”.

Essas questões serão o cerne da busca pela escrita realizada por Deborah Levy. Não que a escrita dê respostas claras, mas serve de base à novas perguntas. Questionar o mundo passa pela grafia e qual é a função de um escritor senão levantar dúvidas sobre a normalidade das coisas? Levy escreve para ressignificar o sistema de opressão do qual foi testemunha e que, quando partiu para a Inglaterra, descobriu que mesmo não sendo negra seria oprimida por ser mulher. Projetar a voz pela escrita e tentar entender a violência na sociedade que abafa o som das minorias. Escrever é traçar uma via possível para a escuta do outro.

Coisas que não quero saber é um belo ensaio sobre encontrar seu lugar no mundo, como afirma Deborah Levy em dado momento: “(...) para me tornar escritora, precisei aprender a interromper, a projetar minha voz, a falar um pouco mais alto, e depois mais alto, e depois a simplesmente usar minha própria voz, que não é nada alta.”

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Fernanda Fatureto é poeta e jornalista. Bacharel em Jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero. Seu livro de estreia Intimidade Inconfessável foi publicado em 2014 pela Editora Patuá. Participa da antologia poética 29 de Abril: o verso da violência (Editora Patuá, 2015); da antologia Subversa 2 (Editora Patuá, 2016) e da antologia Senhoras Obscenas (Editora Benfazeja, 2016).  Possui poemas em diversas revistas literárias do Brasil e na revista InComunidade de Portugal.

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