Alguns dos melhores começos de romances
Gabriel García Márquez, o escritor de começos memoráveis. |
Isto que
agora mesmo você está lendo, a palavra que justamente agora está lendo e que colocada
ordenadamente com as demais formam esta frase, a pausa que acaba de fazer nesta
última vírgula e todo o percurso de letras que seus olhos seguem neste mesmo
instante até este outro, é o último parágrafo que escrevi deste texto.
Logicamente
– continuo –, agora terei que refazer um pouco os seguintes para adaptá-los ao
anterior. Sua compreensão leitora, no fim de tudo, só exige um mínimo de coerência.
Faltaria algo mais.
Não é incomum.
Salvo que alguém tenha realmente claro como vai contar o que vai contar, a redação
de um texto não costuma ser uma viagem em linha reta da primeira à última
palavra. Naipe, cavalo e rei. Normalmente há que voltar atrás variadas vezes,
mudar de direção às vezes, tomar desvios imprevistos e inclusive desandar, como
eu fiz, a primeira rota do caminho.
Imagine as dimensões
do caos se ao invés de um breve artigo para o Letras in.verso e re.verso este texto se tratasse de todo um romance...
Como disse,
na ordem ao escrever influencia mais a forma que o como. Sim no segundo texto pode
haver uma narrativa, mas a alguma segurança maior ou menor como o texto irá se
desenrolar dependerá da estruturação de sua construção. Se podemos figurar,
portanto, quantas vezes lamentará um romancista em seu labor a pobre evolução
de uma personagem, a aparente confusão da trama, a dissipação da intensidade
narrativa ao longo das páginas... Terminar um romance implica fazer e desfazer,
corrigir, revisar, acrescentar e cortar. É difícil – talvez impossível –
ajustar-se sem fissuras à ideia original e por isso não é até o final de todo o
trajeto, observando-a em conjunto, quando a obra adquire por fim uma forma bem
definida. Não parece incorreto, pois, que o início de um romance seja em tantas
ocasiões a última das peças do puzzle
a ser encaixada, já que se exige que o escritor esteja seguro de como contou o
que queria contar.
O primeiro
parágrafo, a primeira frase de um romance, é uma promessa. É um compromisso adquirido
com o leitor de que o autor não deve desfazer-se. Nos diz quem será o narrador,
que ritmo terá a narrativa, qual será seu tom e seu estilo. É uma linha que
deve se adequar ao texto que segue, o que explica sê-lo escrito – ou reescrito –
ao final.
Pode ser
indício de genialidade ou evidência irrefutável de má qualidade. Um romance não
tem porque ser bom apenas por seu início não é, mas será infalivelmente mal se
o modo como começa também é. Apenas umas quantas palavras bastam, geralmente,
para saber o que teremos adiante e do que é capaz seu autor.
De comum, o
primeiro parágrafo não tem nada. É nele que nos fixamos quando cai em nossas
mãos um livro ainda não lido ou lido apenas sua capa e contracapa buscando
informação sobre o autor do romance – se nos for desconhecido. Posteriormente é
comum ler em diagonal uma página à sorte, iniciando-se um primeiro juízo sobre
a qualidade do texto que sempre culmina com o exame do primeiro parágrafo. Do incipit.
Essa é a prova definitiva. A que decide, no fim de contas, se continuaremos
lendo ou não.
Porque o início
de um romance, além de ser a parte que melhor representa o todo e a pista mais
fiável sobre qualidade é – ou deveria ser – a mais eficaz de todas as iscas. Que
motivo mais poderoso para mergulhar numa leitura pode haver num parágrafo
inaugural ou numa primeira linha brilhantes, inesperadas, desconcertantes. “Uma
cicatriz rancorosa atravessa-lhe o rosto: um arco cinzento e quase perfeito que
de um lado lhe lesava a têmpora e de outro o pômulo. Seu verdadeiro nome não importa;
todos em Tacuarembó o chamavam de Inglês de La Colorada. O dono daqueles campos,
Cardoso, não queria vendê-los; ouvi dizer que o Inglês recorreu a um argumento imprevisível:
confiou-lhe a história secreta da cicatriz”. Como ficar por aqui? Igualmente, não
há sintoma mais indicativo – e portanto determinante – de pobreza literária numa
obra que carecer de uma forma digna de começar.
Que
ingredientes fazer de um triste parágrafo ou uma simples frase um bom começo
para um romance é algo que, sem dúvida, é muito difícil de precisar. Em primeiro
lugar porque o julgamento da obra artística intervém inevitavelmente do gosto
pessoal, que sempre é subjetivo e impede a unanimidade em compreendê-lo. Segundo
porque duvido muito que existam receitas milagrosas, dessas que prometem o
verde se alguém mistura o amarelo com o azul.
Não obstante
e melhor para nós, no começo de tudo, Deus criou o céu, a terra e a estatística.
Quais inícios de romances eu considere os melhores é irrelevante, mas quais se
destacam é algo para o qual não existe outro remédio que aceitar, e sobre isso
estamos mais ou menos de acordo. Coisas da democracia... Há aqui alguns dos
mais célebres:
(Normalmente,
neste tipo de lista – se trata sempre de discos, filmes e mesmo romances – acompanha-se
cada entrada com um breve comentário ou descrição. Digo que neste caso seria um
erro imperdoável; qualquer texto acrescentado explicando o porquê da transcendência
de cada incipit seria supérfluo e só
serviria para sujar tantos exemplos literários de excelência).
*
“Lolita, luz
da minha vida, fogo da minha carne. Minha alma, meu pecado. Lo-li-ta: a ponta
da língua toca em três pontos consecutivos do palato para encostar, ao três,
nos dentes. Lo. Li. Ta.” (Lolita,
Vladimir Nabokov)
“Hoje,
morreu mamãe. Ou talvez, ontem, não sei bem. Recebi um telegrama do asilo: sua
mãe faleceu. Enterro amanhã. Sentidos pêsames. Isto não esclarece nada. Talvez
tenha sido ontem.” (O estrangeiro,
Albert Camus)
“Durante
muito tempo, costumava deitar-me cedo.” (Em
busca do tempo perdido, Marcel Proust)
“Muitos anos
depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de
recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo.” (Cem anos de solidão, Gabriel García
Márquez)
“É uma
verdade universalmente reconhecida que um homem solteiro, de posse de boa
fortuna, deve estar atrás de uma esposa.” (Orgulho
e preconceito, Jane Austen)
“Quando
certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua
cama metamorfoseado num inseto monstruoso”. (A metamorfose, Franz Kafka)
“Num lugar
da Mancha, de cujo nome não quero lembrar-me, vivia, não há muito, um fidalgo,
dos de lança em cabido, adarga antiga, rocim fraco, e galgo corredor.” (Dom Quixote, Miguel de Cervantes)
“Chamem-me
simplesmente Ismael. Aqui há uns anos não me peçam para ser mais preciso —,
tendo-me dado conta de que o meu porta-moedas estava quase vazio, decidi voltar
a navegar, ou seja, aventurar-me de novo pelas vastas planícies líquidas do
Mundo. Achei que nada haveria de melhor para desopilar, quer dizer, para vencer
a tristeza e regularizar a circulação sanguínea. Algumas pessoas, quando
atacadas de melancolia, suicidam-se de qualquer maneira. Catão, por exemplo,
lançou-se sobre a própria espada. Eu instalo-me tranquilamente num barco”. (Moby Dick, Herman Melville)
“Bastará
dizer que sou Juan Pablo Castel, o pintor que matou María Iribarne.” (O túnel, Ernesto Sabato)
“Se querem
mesmo ouvir o que aconteceu, a primeira coisa que vão querer saber é onde eu
nasci, como passei a porcaria da minha infância, o que meus pais faziam antes
que eu nascesse, e toda essa lenga-lenga tipo David Copperfield, mas, para
dizer a verdade, não estou com vontade de falar sobre isso.” (O apanhador no campo de centeio, J. D.
Salinger)
“Uma noite
destas, vindo da cidade para o Engenho Novo, encontrei no trem da Central um
rapaz aqui do bairro, que eu conheço de vista e de chapéu. Cumprimentou-me,
sentou-se ao pé de mim, falou da Lua e dos ministros, e acabou recitando-me
versos. A viagem era curta, e os versos pode ser que não fossem inteiramente
maus. Sucedeu, porém, que, como eu estava cansado, fechei os olhos três ou
quatro vezes; tanto bastou para que ele interrompesse a leitura e metesse os
versos no bolso.” (Dom Casmurro, Machado
de Assis)
“No dia em
que iam matá-lo, Santiago Nasar levantou-se às 5 e 30 da manhã
para esperar o barco em que chegava o bispo.” (Crônica de uma morte anunciada, Gabriel García Márquez)
“Estás
para começar a ler o novo romance Se
um viajante numa noite de inverno de Italo Calvino. Descontrai-te. Recolhe-te.
Afasta de todos os outros pensamentos. Deixa esfumar-se no indistinto o mundo
que te rodeia.” (Se um viajante numa
noite de inverno, de Italo Calvino)
“Aquele foi
o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos; aquela foi a idade da sabedoria,
foi a idade da insensatez, foi a época da crença, foi a época da descrença, foi
a estação da Luz, a estação das Trevas, a primavera da esperança, o inverno do
desespero; tínhamos tudo diante de nós, tínhamos nada diante de nós, íamos
todos direto para o Paraíso, íamos todos direto no sentido contrário — em suma,
o período era em tal medida semelhante ao presente que algumas de suas mais
ruidosas autoridades insistiram em seu recebimento, para o bem ou para o mal,
apenas no grau superlativo de comparação.” (Um
conto de duas cidades, Charles Dickens)
“Sou um
homem invisível.” (O homem invisível,
Ralph Ellison)
“Todas as
famílias felizes se parecem, mas cada família infeliz é infeliz à sua maneira”
(Anna Kariênina, Liev Tolstói)
“Era um dia
frio e luminoso de abril, e os relógios davam treze horas.” (1984,
George Orwell)
“Da porta do
La Crónica Santiago olha a avenida Tacna, sem amor: automóveis, edifícios
desiguais e desbotados, esqueletos de anúncios luminosos flutuando na neblina,
o meio-dia cinzento. Em que momento
o Peru se fodera?” (Conversa no Catedral, Mario
Vargas Llosa).
“Vim a
Comala porque me disseram que aqui vivia meu pai, um tal de Pedro Páramo.”
(Pedro Páramo, Juan Rulfo)
*
Devido a
tradução, alguns exemplos perdem a força. Outros a sonoridade. É o caso de Um conto
de duas cidades – “It was the best of times, it was the worst of times, it was
the age of wisdom, it was the age of foolishness, it was the epoch of belief,
it was the epoch of incredulity, it was the season of Light, it was the season
of Darkness, it was the spring of hope, it was the winter of despair”— ou
de Lolita —“Lolita, light of my life, fire of my loins. My sin, my
soul. Lo-lee-ta: the tip of the tongue taking a trip of three steps down the
palate to tap, at three, on the teeth. Lo. Lee. Ta”—, mas, a pesar disso continuam
sendo perfeitos merecedores de figurar na lista em que estão.
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G. Rosa, Grande Sertão - Veredas