Água viva, de Clarice Lispector
Por Pedro Fernandes
A maior das
obsessões da literatura, sobretudo as dotadas do princípio da representação, é
a de perfazer o mundo que é, a um só tempo, dentro e fora da palavra. Essa constatação
não é vã nem para os artistas que negam veementemente a força das influências
externas na realização do objeto artístico. Obviamente que este responde por sua
autonomia no mundo, mas não está dissociado dele. Há entre um e outro um conjunto
de forças dialéticas que atuam mutuamente e neles operam transformações.
Dentre os
interesses em dizer o mundo em sua inteireza reside o desejo de agarrar o
presente em sua totalidade expressiva. Mas este é só continuidade e nos escapa.
Possivelmente, a maior possibilidade de aproximação dessa representação resida
na pintura: aquela que se realiza no instante-mesmo em que o pintor transfere
para a tela o ímpeto que lhe nasce de alguma força do inconsciente.
Possivelmente, porque entre a força inconsciente e o objeto artístico há uma
distância corroborada pelo gesto. Isto é, todo gesto, a menos que marcado pela
não voluntariedade psíquica, é um passado.
O presente é
Deus. Sabe-se que está em toda parte, coordena tudo e todos, é continuidade nascida
do nada para o nada, e não se pode agarrá-lo porque é não-forma. É só manifestação.
E se o gesto da pintura involuntária não o alcança o que então fazer para alcançá-lo
pela escrita? Em sua origem a palavra é o pressente. Está em toda parte, coordena
tudo e todos, é continuidade nascida do nada para o nada, e não se pode
agarrá-la porque é não-forma. É só manifestação. Escrita, não é palavra. A escrita
é representação. A palavra também o é. Mas a escrita não só é manifestação
porque intenção mesmo quando não voluntária.
Porque presa
nesse dilema, Água viva, de Clarice Lispector rompe com todos os
limites estruturais e formais da organização da palavra. Isto é, da escrita. A
escrita é estruturação do dizer, mesmo se para buscar dizer o caos da palavra,
o escritor propositalmente tratar de desagregação da ordem. É preciso o leitor
saber entrar nessa água corrente e deixar-se afogar no seu fluxo. Buscar as
linhas da ordem é tarefa fadada ao fracasso porque o eu-que-escreve neste
diálogo ora de si para o outro, ora de si para si, ora de si para ninguém está
tomado pela ideia de destrinçar o mistério de dizer o presente tal como ele é.
E só com o que se depara é com a impossibilidade. O registro sequencial da
letra é já a barreira intransponível entre a vontade de dizer e o dito.
Por isso, o
leitor encontrará em Água viva um
fantasma do que antecede a forma. Não a do romance, nem a do poema em prosa,
tampouco a do ensaio e sim um ensaio sobre a possibilidade do romance interceptado
por lufadas de poesia. A prática antecessora do que o leitor encontra na ficção
de Clarice Lispector: a prosa poética. O texto em questão, entretanto, não
deixa de ser representação: representação sobre a possibilidade da escrita. Uma
coisa qualquer (não no sentido vulgar, mas no sentido de imprecisão) entre o
movimento involuntário da consciência (do nascimento da palavra e do tempo) e o
gesto estruturador, a escrita, realização da palavra.
O instante-presente
e a palavra são sentidos do mundo. Por um e por outro tudo é, flui. O presente
e a palavra são o que se almeja alcançar mas fogem, são formações escorregadias.
Não-formações. Por isso, lapso, descontinuidade. E a única maneira de
aproximação pela escrita – como faz a pintura involuntária – é por sugestões. A
correlação entre pintura e escrita é uma delas. Entre música e escrita, outra.
O presente e a palavra, por essas equivalências, são epifanias. O limiar, condição
quando não definidora do acontecido sua própria condição. A máxima plenitude. O
fugaz. E, por isso, impossível de captar – a obsessão maior do eu-que-escreve.
Água viva é aspiração. Por encontrar o jeito
ideal de tocar o em-si sem contaminá-lo com a escrita ou de uma escrita descontaminada
do gesto. A possibilidade da nudez do eu-da-enunciação ou sua transmutação com
o sujeito-da-recepção. Ao eu-da-escrita interessa fundir-se ao eu-a-quem-escreve.
Na mesma linha, o desejo por tocar o ponto de origem de todas as coisas. Grande
parte das sugestões se constrói pela fabricação da imagem, geralmente de tom
surrealista, como se tratasse, se lembramos do sonho como via de acesso ao inconsciente,
de um acesso à origem do ser.
Desse
exercício, quem não sai, como tocado por uma água-viva, queimado? E mareado por
horas de dor. Dor e assombro. O texto de Clarice é forma virada em símbolo. Todos
os caracteres do título que o apresenta estão aí embutidos: o deslizamento, a
fluidez, a informidade, o desembaraço, o querer-significar, o contínuo reordenar-se,
a descarga de veneno, são caracteres da simbolização da escrita e do ser, da relação
do ser com a escrita, consigo, com a outridade, o mundo. E é, por isso, um texto-desafio;
o que impele o leitor à desautomização e recriação da visão das coisas como um
todo-determinado. Por isso, a necessidade de deixar-se queimar pela palavra.
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