A vida de uma mulher, de Stéphane Brizé
Por Pedro Fernandes
O cinema de
Brizé é capaz de prodígios. Embora, se tomarmos como exemplo este A vida de uma mulher, não demora percebermos
que esteja muito distante dos modelos convencionais para filmes do gênero. Isto
porque, alheio aos dramas-clichês das produções contemporâneas, o diretor francês
decide pela boa narrativa de dicção realista. O espectador de A vida... se um leitor acostumado às
narrativas marcadas pelo acúmulo de situações e muitos plot precisa renunciar à rapidez da ação e ao elemento surpresa
para deixar se levar pelo peso do traço descritivo. Mas, nada é à toa. A
desautomatização é proposta porque o tom da narrativa assim o é.
A vida de uma mulher é a adaptação de
uma das mais de trezentas histórias compostas pelo francês Guy de Maupassant,
reconhecidamente um dos mais importantes nomes da chamada literatura realista /
naturalista, ao lado de Émile Zola e Gustave Flaubert. E
qual é a grande característica das narrativas dessa geração? Além da boa construção
do enredo – o perfeito ajustamento de todos os elementos – há um estreito
apreço desses escritores para com a minúcia da descrição, uma vez que a concepção
de literatura que os norteiam muito se aproxima da possibilidade, mais tarde
negada, de recomposição da realidade externa pela realidade da ficção.
A vida, de Maupassant, constitui uma
espécie de ficção biográfica: o narrador acompanha desde a saída do convento a
jovem Jeanne até o fim de sua vida. Isto
é, trata-se de um romance cujos laivos do chamado romance de formação, embora não seja este uma obra do tipo, aí se
infiltram. Apesar de se concentrar numa história da personagem, o escritor francês não escolhe a perspectiva que acompanha tudo à distância como se
suas figuras fossem meras peças num tabuleiro e através das quais fosse possível construir
uma visão ampla do seu tempo. Neste caso, o declínio da instituição do casamento,
os imperativos do adultério, o fim do amor romântico e a degradação dos modelos
sociais baseados no usufruto dos bens pelo nascimento do capital financeiro.
Logo, uma
história clássica de amor, ainda que aqui seu desenho seja mais o das conveniências,
não estaria completa sem os tons do drama e da tragédia. E, para marcar esses
tons, Brizé escolhe um ponto de vista: o da personagem feminina central da
narrativa. Fora isso, a narrativa cinematográfica, porque se encontra diante de
um romance pronto para o tipo de filme pensado pelo cineasta, não faz grande
esforço para reproduzir as situações da narrativa literária. Embora, a escolha
da perspectiva seja o elemento revolucionário na leitura proposta – ao ponto de
acrescentar na tradução brasileira do título que no francês é o mesmo o do
romance de Maupassant um designativo. A
vida → A vida de uma mulher.
Assim, é a
vida de Jeanne o epicentro do filme de Brizé: do casamento com Julien, o sufocamento
pelo peso e a imposição do macho, radical elemento que introduz toda a sorte de
desamparos padecidos por Jeanne até o fim; a violação do corpo, as rixas decorrentes
da convivência vazia e repetitiva, as frustrações, as traições e toda sorte de
mazelas de um jovem casal imaturo e, por isso, incapaz de reafirmar a continuidade
dos valores da tradição que se impunham desde a geração dos pais. Se Jeanne se
mostra presa a uma ingenuidade fruto de sua educação para ser-mulher, Julien é o
típico macho do mando, da usura e do controle: é eterna queixa, dos gastos da casa
com lenha e velas, dos luxos da mulher, quer a expulsão da empregada depois de
descobrir sua gravidez etc. Mas seu olho não mira o bem-estar da família; é compatível
apenas com suas frivolidades.
Enquanto isso
às vistas de Jeanne se implicam uma catedral de dramas. É presa de um universo vazio de sentido que ela se deixa marcar pelo fim repentino – mas não casual – do casamento; afunda-se num torvelinho de situações com as quais, não a fragilidade, mas a inabilidade a conduzirá à ruína e a danação. No caso do filme de Brizé, o desfecho
de cariz dramático-trágico serpenteia toda a narrativa. O cineasta introduz aqui
outra variante, produto de sua leitura de A
vida, a intervenção na linearidade e repetitividade, do desfecho da trama, como
se é comum, no romance realista-naturalista, a aparição aleatória do elemento
prenunciador dos acontecimentos futuros.
Essas
intervenções, entretanto, não rompem o traço cronológico da narrativa. O contínuo
vagar em círculos, só atesta em cada volta mais uma constante sobre o fim a que
chegará a protagonista principal. Desses círculos, podemos compreender A vida de uma mulher através de três tempos
principais: o casamento tão logo o retorno de Jeanne à casa dos pais; as
traições de Julien e as descobertas da esposa; e a relação entre mãe e filho.
Neste último é quando a narrativa melhor esboça o traço da repetição, quando,
de fato, descobrimos que, condenada ao silenciamento imposto às mulheres de seu
tempo e ao afastamento da mundanidade, Jeanne é o tipo de figura para sempre
presa na mesma rude inocência de quando em criança foi viver no colégio interno
– talvez ela tenha tanta ciência do mal desse modelo de criação que tentará em
vão não repetir o mesmo caminho com o filho.
Agora, a
repetição em A vida de uma mulher não
se restringe ao elemento estrutural, como se dá no contínuo pedido de dinheiro de
Paul à mãe, quando este, depois de sair do internato, decide trocar o universo campesino
e rural pela cidade. Está na própria existência das personagens; Paul é,
afinal, o mesmo retrato da mãe, a figura presa à mesmidade do mundo ingênuo e,
logo, incapaz de reverter quaisquer situações das que lhes são desfavoráveis. A
única diferença, neste caso, são as condições das duas figuras: Paul, por ser
homem tem as liberdades que foram negadas a Jeanne e, assim, um após outro, os
pedidos de dinheiro dele à mãe, no mesmo instante que se mantém por essa condição,
atestam o perfil do caráter ingênuo determinante fundamental para as duas
personagens. Aqui parece se negar a constante de Rousseau segundo a qual o
homem nasce bom e a sociedade é que o corrompe.
Noutra linha,
Paul, entre os primeiros que trocam a paz do campo pela frivolidade da urbe, é
a representação da incompatibilidade entre os dois universos. Embora este
segundo universo esteja totalmente apagado do enredo principal – sua presença só
é definida por inferências, primeiro, pelas correspondências de Paul para a
mãe, depois, pela visita que a empregada de Jeanne faz a Paul, interessada em
recuperá-lo ao seio materno – há uma variante que destoa do universo camponês
onde se passa toda a trama: certo tino corruptor, malevolente, contrário,
portanto, aos traços da honra e bondade que se interpõem à ingenuidade de
Jeanne.
Esse
universo principal, visto por Jeanne, é capturado por Brizé em diversas
sutilezas estruturantes da narrativa fílmica: o formato de tela, por exemplo,
reproduz a sensação de clausura e a atmosfera de fechamento do drama – cada vez
mais que a ruína se aproxima mais os planos se fecham no entorno da personagem;
as filmagens que se utilizam praticamente da luz ambiente, contornando uma
atmosfera sempre escura e pesada, não deixam de, na perscrutação dos espaços e
formas, conduzir outra maneira sobre a passagem do tempo e os diversos tons de
degradação patentes na narrativa: os das relações familiares, do patrimônio,
dos valores, dos corpos e das consciências.
Tudo aí é
estado de espera, como se a ordem do tempo tivesse consigo a mesma força de
manutenção do estado das coisas – o que, evidentemente, fora do estágio de
ingenuidade, nunca se provará como possibilidade, já que a arma de Cronos é a degradação e o fim. Brizé, escolhe a quase ausência de música a fim de reproduzir
essa sensação de lentidão. A preferência pelo ritmo extravagantemente lento, com
uma câmera que ora segue muito de perto a protagonista ora é espécie de olho
que perscruta cada detalhe da cena, dos objetos, dos espaços interiores, cumpre
ainda outra estratégia: assim como na narrativa naturalista-realista a descrição
oferece esse estágio e é ainda via de acesso à condição psíquica das
personagens, esses gestos cinematográficos cumpre o tino de captar os estados insondáveis
dos indivíduos.
No mais, A vida de uma mulher não é apenas uma
operação de investigação sobre a condição das mulheres num determinado estrato
social e momento histórico; as inquietações aí expostas – quais sejam a das
responsabilidades impostas a elas, a da violência doméstica, o do vilipêndio do
corpo e da moral pela força impositiva do macho – são muito contemporâneas,
porque, mesmo com todas as transformações nas relações entre os sexos (e foram
muitas), de tudo ainda se repete com muita ou pouca frequência, a depender das culturas
e dos contextos. É duro constatar isso – mas é uma verdade que não pode ser
varrida para debaixo do tapete.
Nesse
ínterim, toda ingenuidade de Jeanne não é sua culpa, mas de um modelo que impõe
ver a bondade com a mesma lente da ingenuidade. Isto é, ingênuo aqui não quer
se referir a ser bobo ou incapaz e sim como aquele que sempre anseia algo do
melhor nas pessoas e num mundo onde isso não é mais possível recai a falsa
ideia de que é um sujeito destituído de forças por mudar a realidade. De alguma
maneira, ela é quem almeja romper com a condição da imobilidade – quando
enfrenta o marido pela permanência da empregada com o filho junto com eles,
quando quer livrar o filho da situação de ir para a escola interna, quando se
vê diante do impasse entre contar ou não sobre as traições do marido –, mas em
todas as tentativas fracassa porque a situação impõe a escolha pela permanência.
Nisso resulta toda a força da tragédia.
Além de uma
leitura original e de perto da obra de Maupassant, A vida... é um filme sensível às reflexões sobre a condição
social da mulher – o que não é barato para um estrato social, o dos homens, quase sempre incapaz
de traduzir tais impasses com alguma precisão e destreza.
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