A viagem de Fanny, de Lola Doillon
Por Pedro Fernandes
O filme de
Lola Doillon quer prestar contas com algumas das atrocidades que sustentaram a
maior de todas as irracionalidades já produzidas por humanos: a perseguição sofrida
por crianças judias pelo nazismo e a vergonhosa cumplicidade assumida por
diversos estados, neste caso em específico o estado francês, para com o regime
ao atentar contra seus próprios cidadãos em nome de uma selvageria arquitetada
pela condição perversa de um tresloucado de natureza maior.
É evidente que toda
sorte de desvarios praticados contra as gentes que não preenchiam a escala de
requisitos da raça ariana não teria alcançado a proporção do horror se não fosse
possível contar com os tais colaboracionistas e estes foram, em grande parte,
seguidores cegos das palavras de ordem do ódio fascista. Mesmo que não possamos esquecer do estágio de subjugados dos governos ante o poder de destruição nazista, fazer vista grossa aos serviçais e atribuir toda culpa contra o seu
idealizador, imagem que parece um bocado recorrente entre os países que colaboram
de uma maneira ou outra com o regime e gesto que foi tornado tabu tal como foi
por longo tempo a associação direta entre os alemães e a realização do regime
nazista, também não é a melhor atitude.
Só agora, depois de muitas décadas do fechamento dos últimos campos de
concentração, esses sentimentos controversos são melhor enfrentados no âmbito
do longo processo de convivência com essa marca terrível da história. A viagem de Fanny é produto desse novo
momento e funciona como uma cobrança sobre a necessidade de revisitar seus demônios
não com o intuito de reescrevê-los ocultando e atenuando suas dimensões mas
rememorando com o interesse de fornecer para as atuais e futuras gerações um
tom de alerta sobre até que limite o homem já foi possível ultrapassar ao
seguir os imperativos do mal.
Agora, há
outro tom, o de homenagem, ao retratar a grandiosidade de um grupo de crianças,
que entre a inocência e a rebeldia fazem da união estratégica um modo de
superar o cerco imposto. Dizemos isso, porque, como se não bastasse nada mais
para o drama que o leitor já avista no horizonte quando sabe que nessa relação cruel
entre o carrasco e a vítima este segundo polo é composto por crianças, o
relatado em A viagem de Fanny é um reconto
de história verdadeira que se soma a alguns dramas recorrentes na cena da
resistência, tais como o Diário de Anne
Frank. E é sobre esse tom que devemos dedicar melhor atenção porque o
superar o horror e poder contar a história dessa superação é um gesto muito
mais significativo que os muitos investigados por materiais diversos sempre
interessados em cascabulhar novas intrigas mais arrepiantes que as já
registradas dos sistemas de operação do mal. Nada é mais subversivo para os gestos
negativos que seus desmantelamentos e não esse tom quase de enaltecimento construído
por certas narrativas sobre esse período de suspensão das nossas melhores forças.
Toda a
narrativa de A viagem de Fanny está
situada numa linha de dupla dimensão: a do drama que não desapega o espectador
em grande parte do desenvolvimento da trama e da aventura, afinal, a
compreensão desses pequenos, por mais adiantada que sejam – e eles demonstram
muito bem tal poder ao conseguir fazer cumprir aquilo que os mais velhos seus
protetores impunham fazer no intuito de garantir a sobrevivência do grupo – o
tom da fuga entre a França e a Suíça, onde poderiam escapar da morte pelos
soldados nazistas assume-se com uma grande brincadeira. E a narrativa está
repleta desses momentos iluminadores e capazes de arrancar do espectador o riso
e a lágrima, embora essa suspensão da tensão só mostre de maneira muito sutil:
as estratégias de vencimento do cansaço pelas longas caminhadas, as brincadeiras
de criança, a fértil imaginação por construir um reduto utópico quando alcançam
uma cabana abandonada a poucos quilômetros de alcançarem a linha de fronteira,
onde os imperativos do mal não tivessem a chance de tocá-los, são alguns bons
exemplos desses instantes leveza na tensão da narrativa.
É nessas
ocasiões que somos confrontados com outra reflexão muito cara para a narrativa:
sobre o que era ser criança num contexto extremamente conturbado, cujas rixas e
ignorância dos adultos afetam as partes menores e não pensadas durante as
decisões que jogam contra a paz. Em ocasiões cujos cenários aterradores ainda, tantos anos depois da Segunda Guerra Mundial, se repetem em escalas igualmente dramáticas – como os conflitos na Síria, os em nome das religiões ou mesmo a
escavação dos fossos sociais entre condições daquelas nações megalômanas e as
mais pobres – o filme de Lola Doillon não deixa de levar o espectador a, pela correlação de contextos, refletir sobre o terror da guerra em qualquer tempo para os pequenos. Talvez por isso, o
drama das oito crianças que, primeiro têm apoio dos adultos, mas à medida que
as tropas alemãs avançam na ocupação do país perdem essa ajuda até precisarem
se guiar pela mais velha do grupo, seja ainda mais forte para o espectador. É
que somos confrontados duplamente: com o horror do passado e ao mesmo tempo o do
presente.
Outra medida
– e esta diz respeito à feitura da narrativa – é o uso do suspense no ponto de
esticar os nervos do espectador ao limite. Desde quando a primeira alternativa
de fuga sai por outra via que somos confrontados com o possível, e este é sempre no
instante de sobreposição da morte sobre a vida. Nessa condição, as duas linhas
discursivas de A viagem de Fanny, a
da inocência infantil e a do risco sobre a vida, este que as crianças não têm
em sua totalidade, produzem, no instante final da travessia, um sentimento
extremo de salvação, embora tais instantes estejam desenvolvidos em menores
proporções a cada obstáculo vencido por elas. Um exemplo disso se reflete na
maneira como elas se referem aos nazistas – sempre como um monstro do qual precisam
fugir. Essa possibilidade dão a elas múltiplas significações: a do sonho
tornado pesadelo e do qual parecem não restar fôlego para acordar, a da brincadeira
de acreditar que o monstro é produto da imaginação e vencê-lo significa vencer
seus próprios medos e, do ponto externo delas, isto é, do nosso ponto de vista,
esse mal que está dentro e fora das consciências, afinal, não são apenas o gesto do
ódio, da perseguição e da morte gratuitas o que caracterizou o nazismo e sim um conjunto de ideias (monstruosas) disseminadas em consciências diversas.
Ainda existem outras
questões importantes de ressaltar sobre A
viagem de Fanny. Mas estas são suficientes para reforçar o porquê não se
sai ileso depois de assisti-lo.
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