Seishi Yokomizo, o rei do romance policial japonês

Por Sergio Vera



Hoje quando vemos, tão educados e tímidos, não podemos esquecer: os japoneses são guerreiros. Passaram séculos lutando entre eles, nunca a katanazo limpa, desde quando Tokugawa Ieyasu venceu na batalha de Sekigahara (1600).

Assim que, para recuperar o tempo perdido, quando o Japão abriu suas fronteiras de novo em finais do século XIX, em apenas cinquenta anos, o país do Sol Nascente se meteu numa diversidade de confrontos. Sem perder a ironia, pouca coisa. Só uma guerra contra os chineses (entre 1894 e 1895) e outra contra os russos (1904-1905). E por onde os japoneses saíram?

Em 1937 voltaram a invadir a Manchúria, começando a Segunda Guerra chino-japonesa que logo se diluiu na Segunda Guerra Mundial. E não contentes com tudo, em 1941, a Marinha Imperial Japonesa atacou a Pearl Harbor, base naval dos Estados Unidos e quartel-general da frota estadunidense do Pacífico, na ilha de O’ahu, no Havaí. Se até então foram bem sucedidos, no fim de tanta guerra os samurais precisaram guardar a katana – é que vieram os tristes bombardeios a Hiroshima e Nagasaki que abalaram profundamente àquele país.

Tudo isso para dizer que, depois desse triste período da Segunda Guerra Mundial, a ficção detetivesca ressurgiu das cinzas, agora, com um novo nome, suiri shosetsu, ou ficção do raciocínio dedutivo, e renovado brio. Foi na geração do pós-guerra que se destacaram cineastas como o conhecido Akira Kurosawa, quem dirigiu filmes do estilo como O anjo embriagado (1948) e O cão raivoso (19949) e escritores como Futaro Yamada, autor de títulos como Os ninjas de koga e seu código secreto (2012). Agora, se fosse pedido para destacar um único responsável por esse renascimento do gênero, este seria, sem dúvida, Seishi Yokomizo – o grande mestre japonês do Whoudonit.

Yokomizo nasceu em Kobe, em 1902. Desde pequeno foi um grande apaixonado pelo gênero, no qual estreou logo em 1921. E pela porta larga: ganhando um prêmio para conto. Apesar disso, estudou Farmácia na Universidade de Osaka para tomar conta do negócio familiar e em 1926 mudou-se para Tóquio, incentivado por seu amigo e mentor Edogwa Ranpo, quando foi colocar em prática suas pretensões literárias.   

Na capital, durante muitos anos ganhou o pão como editor de revistas de ficção detetivesca, até quando dedicar-se enfim profissionalmente à escrita. Mas sua primeira obra, um romance policial de ambientação histórica intitulado Oni-bi (1935), foi parcialmente censurado. Com sorte, deu à luz sua segunda tentativa, Ninngyo Sashichi torimonocho, publicado entre 1938 e 1939 e, com notável sucesso. Mas então começou a guerra.

O detetive gago

Yokomizo, companheiro do tratamento para tuberculose de Dashiel Hammett, se viu forçado a permanecer em Yokohama durante os conflitos da guerra e sem publicar uma só linha. Passou mais fome que os pavões de Manolo (que sabe Deus de onde eram, mas segundo a história, deviam comer pouco).

Assegura a Wikipédia (e por uma vez este texto faz eco às suas palavras, porque, certas ou não, têm sua graça) que durante esse período ironizava que “a tuberculose e a fome estavam numa mesma corrida para ver quem acabava antes com sua vida”.

Mas, depois da rendição incondicional do seu país, que o escritor voltou a publicar: primeiro um ensaio, Ficção detetivesca e guerra (1946) em que critica os japoneses por chegarem à desastrosa situação em que chegaram e por não serem leitores suficientes da literatura de mistério. E recomendava inclui-la na educação, porque, essa literatura desenvolveria o hábito de observar de maneira lógica e explorar as coisas em profundidade.

Nesse mesmo ano, publica em folhetins O caso dos assassinatos Honjin, um enigma de quarto fechado ambientado em 1937, onde apresentava a personagem que lhe daria fama: Kosuke Kindaichi, um detetive particular gago, desastrado e com a mania de esfregar a cabeça e que por trás de sua aparência excêntrica ocultava alguns prodigiosos dotes dedutivos.

As aventuras da personagem foram inspiradas em obras de John Dickson Carr (de quem Yokomizo se declarava fã número um) e outros autores clássicos da era de ouro que o japonês imitava e homenageava explicitamente. As narrativas de Kindaichi eram jogos intelectuais sem quaisquer aspirações literárias, situadas principalmente em ambientes rurais e aristocráticos, repletos de personagens funcionais, sem sequer um desenvolvimento psicológico.

A ilha das Portas do Inferno foi publicado também em folhetim entre 1947 e 1948. Foi seu segundo romance da série, mas o primeiro a escrever depois da guerra. Tanto que a narrativa começa com a recém Segunda Guerra terminada e Kosuke chegando à remota ilha japonesa que dá título à obra, para tentar proteger as irmãs de um companheiro soldado morto em combate.

Apesar dos desvelos de nosso protagonista, como não podia ser de outra forma, logo começam a ocorrer estranhos assassinados. Alguns crimes mirabolantes inspirados num conhecido haicai – numa intenção de japonizar Nursery rhyme murders, de Carolyn McCray com O caso dos dez negrinhos, de Agatha Christie.

Um romance policial como tantos outros, mas considerado em duas ocasiões com o melhor do século XX segundo enquete realizada com mais de cinco dezenas de escritores e leitores japoneses do gênero (em 1985 e 2012). Se não este, qual romance então pode ser o melhor de Yokomizo? O clã Inugami, do início dos anos 1950 numa publicação seriada.

Nesta ocasião, Kindaichi é requisitado para investigar os macabros assassinatos que acontecem depois de se tornar público o incompreensível testamento de um rico homem de negócios. Outro mistério de manual, mas com mais ritmo, fair play e portanto melhor realizado que seu romance antecessor e que também foi adaptado para o cinema.

Escritor muito prolífico e crítico?

Estas obras são apenas uma pequena mostra do prolífico trabalho de Yokomizo, que publicou mais de 600 contos e romances, todos de grande sucesso durante os anos 1940 e 1950. Depois de cair de moda durante as décadas posteriores às do reconhecimento – quando esse território estará dominado pela escola social de Seishi Matsumto – o chamado boom Yokomizo dos anos 1970 levou o escritor a retomar a personagem pela qual ficou famoso e o nascimento do mistério ortodoxo (honkaku).

O escritor morreu em 1981 e desde um ano antes se concede um prêmio literário no Japão que carrega seu nome – até então um dos melhores do mundo em dinheiro. Com ele vemos que, apesar de seguir adotando e adaptando modelos estrangeiros, a literatura japonesa nesse território continua em desenvolvimento. E Yokomizo teve um papel fundamental nesse processo. Tanto que depois de tudo, Kosuke Kindaichi continua sendo o detetive particular mais conhecido no e do país do Sol Nascente. E há, inclusive, estudiosos como Nakagwa que defendem que seus livros não são apenas simples divertimentos, mas encerram certa crítica à cultura patriarcal e ao sistema político tradicional japonês.

Seja como for, é tal a relevância da série de narrativas de Kindaichi no Japão e logo inegável que Seishi Yokomizo é muito mais que o grande senshei nipônico aí produzido.


*Todos os títulos de obras de Seishi Yokomizo referidos neste texto são traduções a partir dos títulos em espanhol. Este texto mesmo é uma tradução livre de "Seishi Yokomizo, el rey de la novela negra japonesa" publicado Elemental e compõem uma série de textos sobre mestres do mistério japonês.


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