Rupi Kaur: poeta reconcilia o passado das mulheres indianas e transforma sua dor em tema universal
Por Fernanda Fatureto
Os skihs são seguidores de uma religião monoteísta na Índia
que mescla elementos do hinduísmo com o islã. Em 1984, houve o maior massacre
desse povo pelo exército indiano por conta do assassinato da primeira-ministra Indira
Gandhi por dois guarda-costas skihs. Ao invés de punir apenas os culpados,
vários militares invadiram um templo e violentaram sexualmente centenas de
mulheres, além de matarem seus maridos. O acontecimento ficou registrado na
memória de todos até ganhar os holofotes da imprensa mundial em 2014 pela voz
de Rupi Kaur: a poeta indiana que alcançou o primeiro lugar na lista dos mais
vendidos do The New York Times com o livro Milk and Honey.
Rupi Kaur, radicada no Canadá desde os quatro anos de idade,
fez sua incursão no universo literário aos 21 anos com a auto-publicação de seu
primeiro livro pela Amazon. A postagem de seus poemas no Instagram fez tanto
sucesso, atingindo a marca de um milhão de seguidores, que os desdobramentos do
livro digital impressionaram a Andrews McMeel Publishing. Logo, Milk and Honey foi
lançado pela editora americana e o livro se transformou num verdadeiro sucesso
de vendas e crítica – também no Brasil, traduzido para Outros jeitos de usar a
boca pela poeta Ana Guadalupe e lançado este ano pela Editora Planeta. Por
aqui, ganhou adeptos e é referência quando se fala de literatura feminista em
rodas de discussão.
Isso porque Rupi Kaur consegue escrever sobre temas que são
como ferimentos para o universo feminino, tal qual o estupro; a violência
física e emocional; o abuso infantil; o amor e a regeneração quando disposta a
encarar a dor e seguir em frente. A palavra se transformou em elemento de cura
para a poeta e talvez seja isto que atraia tantos leitores pelo mundo.
O início sem concessões dá uma pista do que virá: “como é
tão fácil pra você/ser gentil com as pessoas ele perguntou/leite e mel
pingaram/dos meus lábios quando respondi/porque as pessoas não foram/gentis
comigo”; nos diz o primeiro poema. Conseguir ter voz e poder alcançar milhares
de pessoas em um mundo não é fácil para a mulher, muito menos para uma mulher
indiana, mas esse feito Kaur consegue na poesia. É uma poesia direta e simples,
sem uso de metáforas complexas, mas o resultado torna-se repleto de força ao
tocar em temas tabus. Em uma entrevista para o The Gardian, Kaur declara: “Quando
eu nasci, já havia sobrevivido à primeira batalha da minha vida: o feticídio de
meninas. Mas nós enfrentamos tudo. Minha poesia é uma das rotas para isso”. O
feticídio – a matança de bebês do sexo feminino
– é prática comum Índia.
Outra rota é afirmar-se por sua etnia no Ocidente; como
rebela seu poema: “nossas costas/contam histórias/que a lombada/de nenhum
livro/pode carregar – mulheres de cor”. Seu feito também está em expor a
relação de mulheres com homens violentos e situações opressivas: “toda vez que
você/diz para sua filha/que grita com ela/por amor/você a ensina a
confundir/raiva com carinho/o que parece uma boa ideia/até que ela
cresce/confiando em homens violentos/porque eles são tão parecidos/com você”.
Dividido em quatro partes – a dor, o amor, a ruptura, a cura
– um dos maiores feitos de Outros jeitos de usar a boca é não ter medo de expor
a vulnerabilidade da mulher e a capacidade de superação. Cada leitora de Kaur
parece abraçar a ideia de que onde haveria vergonha em assumir medos, há na
verdade um espaço para a auto-aceitação e o enfrentamento. Como afirma Rupi
Kaur no seu próprio livro: “o mundo/te dá/tanta dor/e você aí/transformando a
dor em ouro”.
***
Fernanda Fatureto é poeta e
jornalista. Bacharel em Jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero. Seu livro
de estreia Intimidade Inconfessável foi publicado em 2014 pela
Editora Patuá. Participa da antologia poética 29 de Abril: o verso da
violência (Editora Patuá, 2015); da antologia Subversa
2 (Editora Patuá, 2016) e da antologia Senhoras Obscenas (Editora
Benfazeja, 2016). Possui poemas em diversas revistas literárias do
Brasil e na revista InComunidade de Portugal.
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