Roa Bastos e Juan Rulfo: as duas caras do exílio
Por Jorge Eduardo Benavides
Recentemente
se cumpriram cem anos do nascimento de Juan Rulfo, esse mexicano astuto, calado
e universal que depois de escrever um conjunto de contos e um romance – Chão em chamas e Pedro Páramo, respectivamente – decidiu empreender uma discreta
viagem até o fundo de si mesmo e prender-se no exílio interior, nessa penumbra
fresca que era como a antessala de onde contemplava os louros e as famas a
partir de suas obras. Provavelmente faria isso com certa perplexidade, com dizem quem
estava muito íntimo do escritor, pois era homem de acusada modéstia, pouco
sensível às turbulências da fama e do ditirambo. Porque a partir do instante em
que vieram a lume suas duas breves
obras, complementares em estilo e potencialidades, estouraram como fogos de
artifícios as referências, os estudos, as críticas, as sucessivas edições e
traduções para diversos idiomas: nunca antes trezentas páginas escassas
serviram para conformar um corpo narrativo que sessenta anos depois continua
sendo celebrado pela crítica e pelos leitores que se aproximam do universo rulfiano.
Que aconteceu
depois com Juan Rulfo, que publicou O
galo de ouro, em 1980, a quase seis anos de sua morte? Mas este texto, que
serviu para que Gabriel García Márquez e Carlos Fuentes elaborassem um roteiro cinematográfico,
foi escrito entre 1956 e 1958, isto é, pouco depois do aparecimento dos contos
de Chão em chamas e o inquietante e fantasmagórico
povoado de Comala de Pedro Páramo,
publicados entre 1953 e 1955.
Rulfo terminou – ou esgotou – seu fazer literário
numa década e a partir daí passou o tempo explicando que a morte de seu tio Celerino,
que era quem lhe contava as histórias que ele passava depois para o papel,
havia feito impossível continuar escrevendo. Uma maneira como qualquer outra de
se retirar discreta e elegantemente para seu exílio interior, provavelmente
farto de ser deslumbrado pelas manifestações contínuas da fama, quando o que
desejava era a tranquilidade reflexiva na qual havia vivido até então. E o Galo
de Ouro se incorporou discretamente, orbital e periclitada quase desde seu nascimento,
ao conjunto de sua obra, quando ele já havia içado âncoras e partia a um
tranquilo retiro narrativo.
Mas outro centenário
– talvez ainda mais silenciado – se passou no mês passado e nos remete a um escritor
cuja obra é considerada, como a do próprio Rulfo, audaciosa, ambiciosa e de ruptura
com as formas tradicionais e habituais da literatura até aquele momento. Trata-se
de Augusto Roa Bastos, o paraguaio autor de Eu
o Supremo (1974), romance de poder absoluto e brutal que tem sido a parábola
de todos os excessos ditatoriais da América Espanhola que a tantos e tantos condenou
ao silêncio ou ao exílio.
Porque
diferentemente de Rulfo, Roa Bastos não decidiu sobre seu exílio. Exilaram-no. A ditadura de Stroessner em
1947 o obrigou a partir para a Argentina, onde viveria quase trinta anos até a chegada
ao poder do general Videla, em 1976, que inaugurou uma das mais sórdidas e
bestiais ditaduras da América Espanhola. Partiu então para a França, para uma
estadia marcada pela melancolia. O degredo, a inconformidade, os apuros econômicos,
a nostalgia de um homem comprometido com sua sociedade e seu tempo, tudo isso conta
Roa em O fiscal (1993), o romance que
encerra sua trilogia política começada com Filho
do homem (1960) e continuada com Eu o Supremo, todos romances com um
firme e cervantino empenho de testemunho e redenção, de labirinto e alienações,
de mistura idiomática e mestiçagem cultural.
Mas se na
hora de narrar, em Rulfo tudo resulta essencial e quase austero, em Roa pulsa
uma épica da desmesura (nem sempre realizada); se para o mexicano o mundo dos
mortos redime o dos vivos, no mundo de Roa apenas há resquícios para a vida. Um
se encarregou da crítica sutil ao sistema e outro à denúncia aberta do mesmo.
Rulfo e Roa decidiram pois desvelar o belo território de suas histórias rurais
e anônimas, históricas e atemporais, com uma linguagem florescida de resultados
e uma audácia que emana do Século de Ouro mas também de Faulkner – talvez o
verdadeiro patriarca, a mamá grande
de todo o Boom. Tanto Roa como Rulfo nos ofereceram a paisagem convulsa de uma
América em constante crise que se espanta ou se exila reiteradas vezes.
Um decidiu
retrair as velas logo cedo e confinar-se num universo mais íntimo e o outro
viveu o exílio praticamente até sua morte. Ambos, sem dúvida, pertencem à mesma
estirpe dos escritores devorados pelo fogo de sua literatura. Os dois seguiram caminhos
à primeira vista antagônicos, mas o certo é que entre esses dois extremos, oscilando
entre a retirada e o desterro, seus respectivos exílios constituem uma grande
metáfora desse território em perpétua tensão que continua sendo a América
Espanhola.
* Este texto é a tradução de "Roa Bastos y Rulfo: las dos caras del exilio", publicado no jornal El país.
Comentários