Os terraços de junho (contos e sonhos), de Urbano Tavares Rodrigues
Por Pedro Belo Clara
No verão em
que se conta quatro anos deste o desaparecimento deste notável autor, toma-se a
que se considerou feliz decisão de dirigir novamente um foco de atenção sobre
uma das suas obras, oferecendo assim aos leitores mais interessados vislumbres renovados
da temática essencial do escritor, jornalista, crítico e professor com fortes
ligações a Lisboa e ao Alentejo.
Não será um
dos trabalhos mais conhecidos, tampouco dos mais antigos, este que aqui se toma
em consideração, editado em 2011 pela D. Quixote, mas um dos mais
significativos no que toca à capacidade de revelar a extrema mestria de Urbano
na elaboração de narrativas curtas. Sem nunca enublar a nitidez dos contornos
da sua identidade literária, o autor reúne textos de plena maturidade onde
oferece sérias reflexões de carácter moral e social e breves – mas profundas –
viagens pelo íntimo humano mais recôndito ou reprimido.
Destacando
desde já a toada poética de cada linha escrita, afirma-se que este conjunto de catorze
contos (e um punhado de sonhos), dedicados a Teolinda Gersão, “dilecta amiga”, consegue
obter o mérito da superação. Ou seja, com eles nasce uma nova marca estabelecida
além da anterior, pelo próprio autor firmada no vasto campo das suas
realizações. Certos críticos corroboram este aspecto ao afirmarem que Urbano
nunca foi “tão longe na devassa do ser humano e dos seus alçapões”. A viagem
far-se-á, em súmula, através de uma maior exploração das sensações humanas, um mergulho
profundo na intimidade mais secreta do comum indivíduo.
Este livro
revela os seus segredos, de facto, servindo até, sob uma certa óptica, como
espécie de lugar de conforto, talvez até confessionário, dada a facilidade que
certos leitores poderão ter em se identificar com os impulsos mais íntimos das
personagens construídas, de tão humanas que se apresentam em sua natureza mais
impulsiva. Paixões intensas e desejos estonteantes estão muitas vezes na base
de riscos absolutos, de encontros casuais que terminam em relações privadas sem
qualquer refreio. O carácter poético, sempre adjacente, como antes foi dito,
faz-se notar nas horas certas para conceder o efeito mais desejado: o debruar
de um certo contorno, o enfeite de um conteúdo, o incremento do sonho como modo
de adocicar a árida realidade. O balanceamento de ambos é conseguido de modo
amplamente satisfatório.
É o conto de
abertura que nomeia a obra. Este “Os Terraços de Junho”, nascido de um traço
afável mas pungente, oferece material para um épico que nunca desejou ser. Lido
em profundidade, espanta pelo potencial de extenso romance exposto numa
brevidade assombrosa (em flecha serão contados esses “dias venturosos de Junho
em flor, com o roxo dos jacarandás por toda a parte”). Certos elementos da
estrutura irão repetir-se nos contos vindouros, alterando-se somente o rosto
que tais pilares vão envergando: a sedução da mulher (quase sempre) estrangeira,
a paixão arrebatadora que então nasce e irremediavelmente se vê condenada por
um ou outro motivo, a luta na clandestinidade pela instauração de um governo
democrático (ideia geral, pois por vezes só o seu desdobramento se expõe:
denúncia de condições sociais, contendas contra a repressão vigente e afins).
Também à semelhança de muitos outros, o fim não se dirá sorridente: o
afastamento dos amantes (no caso, por morte) e a saudade do vivido como o único
remanescente de tão intensa experiência. Mas convenhamos: em quantas situações
uma vida comum não contará com episódios idênticos, tal a efemeridade de tudo?
Se
desejarmos seguir o caminho dos exemplos que assumem novas formas dentro do
geral proposto, surge-nos “A Escada de Cristal”, um conto de considerável sensibilidade
poética, expurgado somente do maior vinco imposto pela questão social, tão
central, como se sabe, na temática (e vida) do autor.
A personagem
que o narra é desta vez um copywriter numa agência de publicidade de Lisboa que
por intermédio de amigos trava casualmente conhecimento com duas catalãs, mãe e
filha, desenvolvendo com a primeira uma paixão deveras arrebatadora, só
refreada pelo aparecimento de uma grave doença que ditará o afastamento físico
da mulher catalã, mas não a diminuição do sentimento que os uniu. Só pelo
título se descortina, já posto em frase, a magia poética do sentimento exposto
com tamanha ternura: “És a minha escada de cristal para o paraíso”. Nada mais
justificará o seu acrescento.
Já que
falamos sobre contos capazes de impressionar pela intensidade do que propõem ao
seu leitor, destacamos o brilhante “A Hora da Fome”. Não se hesita em afirmar
que se trata de um assumido bastião de todo o trabalho de índole social
produzido por Urbano, e bem se sabe da sua considerável extensão, donde advém a
dificuldade em superar o já conseguido, mas a crueza do relato, bem como
daquilo que em entrelinhas sugere, abala qualquer estrutura acomodada ao seu
falso brilho. Se a isto juntarmos a evidência do conto possuir a extensão de
apenas uma página, talvez se cale a negação do génio por detrás da palavra.
A narrativa
centra-se em Dona Estefânia, uma senhora idosa de vida solitária e empobrecida,
que tomava a sua sopa no centro de assistência social e na farmácia só selecionava
os medicamentos que lhe eram mais essenciais. De facto, “há uma altura em que
as bocas desdentadas já só mastigam tristeza e desalento”. Diante deste
cenário, não se encontra dificuldade em colocar Dona Estefânia, a pobre viúva,
na “primeira linha do desespero”. Então, num desses dias cinzentos, tão
cinzentos quanto muitos outros já sobrevividos em ritmo de estoico esforço, um
fulminante acidente vascular cerebral (AVC) termina com a sua deplorável vida,
um farrapo de boas recordações oriundas de um passado glorioso e da miséria que
se lhes seguiu, em plena rua da cidade imergida numa primavera fria. No término
do relato, a evidência que todos os outros, em seu conforto, conhecem e abafam,
lançada ao vento na total dureza das suas linhas, tem a força dos profundos
tremores:
“Deixe lá,
meu senhor, não se aflija, as que morrem como ela, hoje em dia, ainda são as
mais felizes ”
Talvez agora se compreenda de
modo mais claro os moldes da exploração da miséria humana e como os mesmos são
geralmente abordados ao longo desta obra. No entanto, importa relembrar o ano
do seu lançamento e em que provavelmente foi escrito, enquadrando-o assim com a
realidade portuguesa de então, após a grave crise mundial de 2007 e
imediatamente antes do pedido de resgate financeiro ao Fundo Monetário
Internacional, agravado pelas consequências que daí advieram, nomeadamente o
rude golpe sofrido no orçamento de famílias da dita “classe média-baixa”, mas
igualmente uma crítica subentendida ao tratamento que a população mais idosa tem
(i)merecido na sociedade moderna. Pelo retrato que nos oferece, é justo que se
transcreva a passagem mais icónica:
“São cada
vez mais numerosas as senhoras da pequena burguesia que já venderam ou
empenharam tudo o que tinham em casa e sobrevivem com os mínimos trastes, a
cama, duas cadeiras, uma mesa de pinho, talheres de estanho, porque as de
porcelana lá vão há muito na voragem.
Um vento de
gelo dobra-as cruelmente e lá vão assim, pela manhã, comprar um saco de leite,
o frigorífico já há muito não existe. Têm pão duro e pouco mais. ”
Mas nem só
do que até ao momento se expôs se faz o conteúdo deste livro. O autor guardou
no corpo da obra espaço para nele tatuar linhas de cariz autobiográfico, como
exemplifica o docemente nostálgico “É Natal”.
De início
inspirado num realismo deveras poético, com matizes líricas a dobrar ao de leve
o contorno das palavras eleitas, mergulha-se nas reminiscências dos natais da
infância do autor, celebrados no Alentejo junto da família mais próxima. É um exercício
que ao leitor oferece a invocação de figuras ímpares na história pessoal de
Urbano Tavares Rodrigues, tão castiças que quase se poderiam confundir com a
própria planície alentejana, as suas azinheiras solitárias ou as imensas searas
em desolada ondulação. O Zé Gaio e os seus “olhos maliciosos de um verde de
poejo” ou o Mestre Chico, «encanecido e um tanto alquebrado aos quarenta e sete
anos”, são óptimas ilustrações do que se disse, sem ignorar a lembrança dos
trabalhadores que por aquela época iam junto do pai do autor receber os seus
pagamentos, esses de “faces toscas” onde rapidamente se decifravam “fomes,
humilhações, um percurso espinhoso, de muitas dores curtidas, rugas de
desesperança”, apesar da ternura sem fim dos seus também calejados corações.
Trata-se de
um conto que exala um aroma puro a Alentejo profundo, um retrato real e bem
penetrante, dada a situação social e política da década. Sobra ainda uma
referência ao irmão Miguel, recentemente falecido, a respeito da ideologia que
ambos acabariam por abraçar: “havíamos de nos colocar mais tarde ao lado deles,
já numa luta acerba pela sua dignificação, que nos custou perseguições e tratos
de polé”. No fundo, somente um pálido agradecimento, de justeza mínima, para
com tão humanamente desgastadas figuras que coloriram a sua infância, de quem
beberam “a sabedoria do povo”, de quem partilharam a infantil felicidade de um
natal simples.
O conto com que
esta obra se encerra é decerto o mais desconcertante de todo o conjunto, dado o
vincado cariz onírico que exibe. Um trabalho diferente, e novo até, de elevada
perplexidade em muitos momentos, e cuja mera leitura do (belíssimo) título
convida a fértil imaginação de qualquer leitor a fazer das suas, no intento de
lhe adivinhar os contornos do corpo: “Angústia com Licor de Rosas”.
Logo no
princípio da aventura, em jeito de preâmbulo, o autor adverte com o mesmo
cuidado de quem confessa: “Hesitei muito antes de me determinar a entregar-vos
o meu livro de sonhos, esta colecção de pesadelos e êxtases e de estados hipnagógicos”.
Assim, desde o embate surreal da primeira abertura, um cenário onde dois cegos
caminham até tropeçarem num lagarto que, pleno de encantos, se vai revelando uma
mulher escamosa dotada de cativante sensualidade, existe um expresso convite a
visitar um universo ainda mais íntimo do autor, o lugar onde os verdadeiros
segredos brotam, tantas vezes à revelia de quem os cultiva, frutificando sem
que o próprio lhes antecipe o gesto.
O factor
mais comum a todas estas angústias que nunca evitam o desesperado choque com a
crueza da real vida mundana, é a intenção sexual que em regra se lhes
identifica, dado que muitas ocorrem em torno das subdivisões dessa, digamos, “característica”,
seja pela busca do ente que será alvo de prazer ou pelo encontro com esse outro,
de rosto mutável, que sempre termina no fulgor do ansiado espasmo.
A grande
curiosidade, e principal motivo de interesse, está neste recurso ao sonho,
tantas vezes pesadelo, e a partir dele construir uma literatura viável, com o
seu grau de perturbação, oscilando entre o manifesto dos desejos calados e os
mais inusitados impulsos de que só o inconsciente humano conhecerá os motivos.
Dentro
daquilo que oferece, não sobram dúvidas de que esta obra dignifica de grande
modo tudo o que Urbano Tavares Rodrigues nos deixou escrito. Não apaga o seu
perfume mais depurado nem tampouco distorce o movimento mais cadenciado da sua
prosa plena de ocasos e nascentes poéticos. Para quem quiser tomar o seu risco
nas páginas deste livro, decerto concordará, chegado ao término do exercício,
de que desfrutou de uma deveras aprazível experiência de leitura. Acompanhada
por um fino licor de rosas, suficientemente amargo para na boca deixar
contraste, é coisa que de muito bom modo se recomenda.
“Foram o
azul profundo das noites estreladas e o que o vento e as nuvens diziam aos meus
ouvidos que fizeram nascer em mim palavras que depois naturalmente começaram a
escrever-se.
Da pobreza e
do sofrimento dos trabalhadores que me rodeavam só mais tarde me apercebi e
senti a necessidade de lhes dar voz por entre as vozes da natureza e pela
estrada da vida fui andando com eles no pensamento e nos actos.
Nas ruas de
Lisboa e de outras cidades onde não entra o sol de Inverno, tapado por altos
edifícios, experimentei a saudade profunda dos descampados alentejanos, das
vozes do rio e da tristeza dos homens, dos seus cantares. Levei-os comigo para
França e para o mundo, para as aulas que dei e até para as prisões onde os meus
ossos enregelaram.
O livro é
palavra de combate, mesmo quando não parece sê-lo, se apenas nos mostra os
homens das suas fainas e penas. ”
(“As Vozes
da Natureza”)
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