O progresso do amor, de Alice Munro

Por Pedro Fernandes



Neste livro, fica ainda mais visível a grandiosidade de Alice Munro com uma forma literária sobre a qual é especialista. O parâmetro para a constatação é pequeno – o da relação com Ódio, amizade, namoro, amor, casamento – e por isso mesmo pode ser questionado facilmente. Sobretudo, porque deve ser, dada a peculiaridade da escritora em se dedicar apenas à narrativa curta, prática recorrente noutras obras. Mas, esta afirmação se dá porque nela o leitor encontrará o elemento fundamental que sustenta a afirmativa de abertura deste texto.

Por longa data, construiu-se uma tradição do conto a partir dos postulados por Edgar Allan Poe. Isto é, a narrativa curta, dada a brevidade precisa obedecer uma estrutura que zele pela unidade e isso só é possível alcançar se o escritor for capaz de condensar ao limite a informação crucial do enredo e ainda assim não revelá-la integralmente no seu desfecho, obrigando o leitor à leitura de um só golpe e à suspensão depois dela.

Pois bem, em O progresso do amor, Alice Munro renova essa tradição e alia à composição de feições a Allan Poe outra linha criativa da narrativa curta, a de cariz a Tchékhov. Para o escritor russo, o contista, ao contrário do definido pelo estadunidense, devia se afastar do enredo artificial, produzido para causar este ou aquele efeito no leitor e dedicar-se às situações triviais, o dia-a-dia, e, como quem observa, um fotógrafo em busca duma paisagem interessante de ser fotografada, descrever e narrar com certa parcimônia o que vê.

Agora, quais contribuições apresenta a escritora canadense ao alinhavar esses dois traços importantes e fundamentais na criação da narrativa curta? Primeiro, é desprezando a maneira de construir narrativas curtas e explorando ao máximo as situações escolhidas para a composição de sua narrativa. Em O progresso do amor, o leitor não perceberá tanto essa atitude, mas em Ódio, amizade, namoro, amor, casamento, por exemplo, encontrará, salvaguardando todas as distinções possíveis, contos que flertam muito de perto com a forma da novela, principalmente se considerar na sua leitura, como esta observação considera, elementos como a diversidade de núcleos narrativos num só texto e as saídas que encontra, criteriosamente, para cada uma delas.

Ao fazer isso, nota-se, Alice Munro rompe com o princípio da suspensão final; aquele de tomar o leitor pelos fôlegos e deixá-lo sobre um abismo. Ao invés disso, sua narrativa prende o leitor em situações no desenvolvimento do narrado; e prende de uma maneira ao ponto de afastá-lo da revelação que, na maioria das vezes – e em O progresso do amor se percebe isso claramente – está dada logo no início da história. Com uma variação: às vezes o revelado no início do enredo não se confirma ao longo do seu desenvolvimento. Mas, de uma maneira ou de outra, o leitor não deixará de padecer da mesma angústia da suspensão convencionada por Edgar Allan Poe. A diferença de Alice Munro é que ela prefere seguir a narrativa como se esta fosse o curso da própria experiência existencial. E deste o fator surpresa é sempre o determinante por mais racional que inventemos de tratar a vida.  

É suficiente citar duas ocasiões, dentre os onze contos de O progresso do amor. A primeira delas, é o conto que revela o possível desfecho, mas este é, no final de contas, outro e não o previsto. Em “Myles City, Montana”, a contista bebe da forma road novel, embora seja esta uma narrativa alimentada pelo fluxo da memória sobre uma viagem realizada no passado (eis outra recorrência na ficção de Alice Munro, o fluxo de consciência à maneira de Clarice Lispector), para reconstruir uma situação corriqueira da família que decide, por uma razão diversa atravessar o país de carro. Mas, não é a viagem o que primeiro é trazido para a narrativa; é o episódio da morte por afogamento de uma criança, praticamente órfã, visto pela consciência de quando a narradora era também uma criança. À medida que avança para falar da sua relação com o pai, do envolvimento com Andrew, seu companheiro, logo ela levará o leitor, como se o pegasse pela mão, à tal viagem que se propunha atravessar a fronteira do Canadá até ao meio dos Estados Unidos e retornar ao ponto de origem. O percurso, que se confunde com o próprio percurso da memória, servirá para que nos familiarizemos com o casal, seu convívio, os altos e baixos das relações familiares (outro tema privilegiado da contista) e para recobrar um episódio que se limita nos mesmos moldes ao episódio com o qual a narradora abre a narrativa: o possível afogamento da sua filha mais nova enquanto param num clube, no meio da região mais árida dos Estados Unidos, a fim de permitir cinco minutos que fossem de banho na piscina às crianças, embora o local estivesse fechado. Entre a negociação para que as meninas entrem no espaço e a suspeita da mãe, cinco minutos depois de que o pior aconteceria, nos mergulha numa maré de angústia, medo e dor. Isso porque é este episódio uma possível repetição do outro lembrado pela narradora no início da narrativa.



O outro conto que corrobora com a ideia sobre a qual a narrativa já revela sua principal situação logo na abertura – e nesse caso afastamo-nos tanto dela que não conseguimos deixar de atravessar mesmo suspense ao ponto de só depois nos darmos conta de haver caído cegamente no enredo – é “Paroxismos”. “As duas pessoas que morreram tinham sessenta e poucos anos. Ambas eram altas e robustas, e tinham alguns quilos a mais. Ele era grisalho, com um rosto quadrado, bastante uniforme. Um nariz largo o impedia de ter uma aparência perfeitamente digna e bela. O cabelo dela era louro, um louro prateado que já não chama mais a atenção por ser artificial – ainda que você saiba que natural não é – porque tantas mulheres dessa idade o adquiriram”. Assim se lê as primeiras linhas do conto. Introduzida a situação como se uma notícia de página policial que se desloca para um perfil legista, a narrativa aos poucos se afasta totalmente do que enuncia na primeira linha para lembrar dessas duas figuras quando vivas e próximas à família de Peg, personagem que numa manhã ao deixar uma entrega de ovos caipiras ao casal descobre-os na situação revelada no início da narrativa. Mas, entre a visita de Peg, sua entrada na casa dos vizinhos e a descoberta, nada sobre a morte dos dois nos é revelada. Quer dizer, tudo já havia sido revelado, mas a indefinição da abertura da narrativa, a descrição do narrador e a discrição da primeira testemunha sobre o episódio, despertam uma série diversa de especulações sobre e um terrível angústia quando da acompanhamos Peg em busca de um retorno ao seu chamado; e mesmo quando descobrimos não deixamos de cair nas perguntas que começam a ser levantadas pela pacata cidade de Gilmore. E não é à toa: o que essa narrativa discute é justamente o quanto somos movidos pela curiosidade ante o trágico mesmo que tratemos as vítimas durante a vida com certo distanciamento ou nada saibamos a respeito dela.

Alice Munro é uma escritora do drama humano, desses citados e vividos no dia-a-dia e que, quando não é conosco, alimentamos a vã certeza de que nunca nos acontecerá. Nos contos de O progresso do amor repetem-se algumas das obsessões já vistas noutros textos da escritora. No caso dessa antologia, o leitor encontra aí, as liberdades individuais, a não submissão dos sujeitos aos poderes que atravessam as relações pessoais e os dramas desse embate, o papel da memória como reparadora do passado e a possibilidade de aproximação das relações por através de situações determinantes ao lugar dos indivíduos no mundo. É notável a unidade narrativa favorecida pelas situações apreendidas nos contos que no fim buscam expor exatamente o que título que denuncia: a tentativa, mesmo que fadada ao fracasso em alguns casos, de compreender a força do amor, em suas diversas formas, enquanto volição da existência. 

No caso do primeiro conto, por exemplo, é o medo da perda da filha que leva a mãe a buscar uma compreensão sobre o instinto materno e as estreitas relações que se formam no curso da vida. É esta situação que estabelece outra compreensão sobre o cuidado do outro e o cuidado de si e os leva a repensar acerca das tênues fronteiras que separam a vida da morte. No segundo conto, o burburinho entre os moradores acerca da morte do casal Weeble, dividido entre duas frentes, ora da morte por crise financeira ou doença, ora da morte por ciúmes, leva Robert, numa abstração desses lugares comuns a reinventar suas qualidades que sustém a relação com Peg. Isto é, Alice Munro não abdica da compreensão de que o mundo corriqueiro está repleto de histórias grandiosas, mesmo quando suas personagens as consideram banais, e mais, que é possível extrair daí o que de mais bonito se evidencia na aventura de viver: é possível escapar às trivialidades se aprendemos a repará-las com novos sentidos. 

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