O lugar e o não-lugar do sujeito enunciador na narrativa de Triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto
Por Thiago Feli cio
cena da adaptação de Triste fim de Policarpo Quaresma para o teatro por Antunes Filho, 2011. |
Parece
redundante e curioso o fato que Lima Barreto, depois de ter sido estudado e ter
tido sua obra analisada sob diversos ângulos, ainda tenha coisas a se dizer
sobre sua literatura. É que os clássicos gozam dessa prerrogativa, de sempre estarem
abertos a possibilidades interpretativas que não se esgotam, ao contrário, se
amplificam. A obra de Lima Barreto também proporciona esse encadeamento de
interpretações que nos leva a enxergar na narrativa Triste fim de Policarpo
Quaresma como a literatura não se esgota.
Portanto,
pretendo comentar aqui e analisar como se apresenta o lugar e o não-lugar do
sujeito enunciador nesta narrativa que alcançou o título de clássico nacional.
Para isso, uso como embasamento teórico as noções de lugar e não-lugar
elaboradas pelo filósofo Marc Augé.
Inicialmente
deve-se saber que o romance em questão faz parte do período do pré-modernismo
brasileiro; apresenta uma história com foco narrativo na terceira pessoa,
que é um narrador onisciente e, portanto, conhece o que se passa inclusive
na cabeça de cada personagem. É um romance de crítica, como sabe, ao governo da
época. Tendo em vista isso, pretendo comentar como a personagem Policarpo
Quaresma, enquanto sujeito enunciador, através do discurso indireto livre usado
na narrativa, representa a sua posição, uma vez que o
protagonista representa um homem com ideias predominantemente contra a política
do governo retratado na obra. É, sobretudo, com um discurso nacionalista que
Lima Barreto imprime em suas personagens para mostrar como o contexto de uma
obra, tal qual Candido afirmara, é um elemento estrutural da construção
literária.
Este trecho comprova como desde sempre Policarpo Quaresma se
preocupara com as coisas da nação, da terra na qual vivia: “Desde os dezoito
anos, que o tal patriotismo lhe absorvia e por ele fizera a tolice de estudar
inutilidades. Que lhe importavam os rios? Eram grandes? Pois que fossem… O
importante é que ele tivesse sido feliz. Foi? Não. Lembrou-se das suas cousas
de tupi, do folclore, das suas tentativas agrícolas… Restava disso tudo em sua
alma uma satisfação? Nenhuma! Nenhuma!”
Nesta
citação o narrador heterodiegético apresenta a angústia do que poderia
ter sido. O tom predominantemente melancólico mostra como a personagem, traída
pela pátria amada, vê-se, de repente, desolada. Em seu lugar de ingênuo
nacionalista, Quaresma percebe que sua luta foi fruto também de sua ingenuidade. É
um trecho que aponta a tristeza tomando de conta de Policarpo Quaresma, em que já
se pode perceber como ele, na condição de proscrito, desloca-se da posição
social e intelectual para um sujeito abatido e triste.
Perceba como
o narrador já coloca para o leitor o lugar de enunciador do discurso nacionalista:
Quaresma é um homem que protesta contra a postura do governo. “Você, Quaresma,
é um visionário...”. Essa fala do marechal Floriano
reflete como o lugar dado ao protagonista é um lugar de idealismo. Quaresma é
uma personagem que representa também o entusiasmo humano, tal qual comentou o
crítico Alfredo Bosi: “Lima Barreto conseguiu criar uma personagem que não fosse
mera projeção das amarguras pessoais [...] suas reações revelam o entusiasmo do
homem ingênuo, a distanciá-lo do conformismo em que se arrastam os demais
burocratas e militares reformados[...].”
É importante observarmos como a voz da personagem Quaresma é uma voz relacionada a
simplicidade, motivo de incompreensão para a história. Bakhtin categoriza
dois tipos de personagens para o romance: o farsante (trapaceiro) e o simplório
(tolo). Adivinhemos, pois, em qual se encontra a personagem do romance de Lima
Barreto? Certamente chegaremos a conclusão de que ela se encaixa na segunda
classe, uma vez que esse tipo de personagem
desestabiliza a convenção real do sentido que é construído na obra.
A
personagem Quaresma representa, pois, essa categoria que, diante de um mundo
pomposo, objetiva transgredi-lo e, incompreendida por quase todos (ou todos),
tem seu plano frustrado, já que suas atitudes são consequências de sua formação
simplória e seu comportamento idem. A incompreensão que surge na narrativa é
também uma mostra de como a personagem guarda em si o lugar desse nacionalismo
exacerbado que incomoda outras personagens.
Dentre todas
as lutas empreendidas pelo protagonista, Policarpo Quaresma também luta contra
si mesmo. Defende o tupi como língua nacional, só admite consumir aquilo que
seja eminentemente e genuinamente brasileiro, dentre outras posturas que acabam
por ensejar o riso e a ridicularização do povo até ser internado num hospício.
O sujeito enunciador, de fato, se encaixa, portanto, na classificação
empreendida por Bakhtin.
Esse ser
dotado de decisões, escolhas e intenções que denunciam uma revolta interior é uma
enunciação de um sujeito marcado pela ideologia. Entendendo o sujeito enunciador Policarpo Quaresma como o que enuncia seu discurso de sujeito
transgressor das convenções sociais e políticas, é possível, pois, refletir sobre qual o lugar assume para a narrativa. Se os sujeitos são sempre estruturas sociais e
históricas (cf. Possante, 1996), então podemos compreender que, em Triste fim de Policarpo
Quaresma, a personagem homônima integra, dentro da atmosfera ficcional, pelas suas posturas e decisões, uma crítica ao período histórico brasileiro. Isto é, o seu discurso também se relaciona ao mundo exterior e à
realidade vivida pela personagem, sendo, portanto, o que o teórico Possante
chama de interdiscurso. O discurso ufanista do protagonista é ideológico. E a ideologia de Policarpo Quaresma reflete em suas modulações
sociais. Sendo assim, esse discurso enunciado pelo protagonista é dotado de
consciência do que está falando, dizendo e pensando. A prova disso é que
Policarpo sempre defende com fundamentos, cita os livros, a ciência e a
história para comprovar que sua ideia é conveniente para as mudanças propostas.
Todavia, para entender Quaresma, enquanto personagem sujeito enunciador, é
preciso, pois, ainda que vejamos que ele está relacionado a um lugar, por meio
do qual o discurso transita, mas é também dotação de ação.
Seu discurso
retórico mostra como Quaresma objetivava defender o seu ponto de vista de modo do
seu lugar de enunciador, ignorado, ele não desiste fácil de seus intentos. É, então que, proponho,
pois, a incursão sobre o lugar e o não-lugar do sujeito no romance de
Lima Barreto.
Se Marc Augé
concebe lugar como um espaço antropológico, no qual a identidade, a relação e a
história estão interligados, o não-lugar é aquele que não comporta em si esses
três elementos. Assim, se ele está ausente de identidade, pode-se perceber que
o lugar onde está Policarpo Quaresma constitui também um não-lugar, pois como
ele está livre de identidades, o estar sozinho, desamparado pressupõe o
entendimento desse não-lugar. Não-lugares são,
portanto, aqueles onde se predomina “relações de “solidão”, associadas à ideia
de “contratualidade solitária, ou ainda o “espaço dos outros sem a presença dos
outros, o espaço constituído em espetáculo” (cf. Augé, 1994). Refletindo,
pois, a partir desses conceitos elaborados pelo filósofo francês, percebemos
que a personagem Policarpo Quaresma transita entre esse espaço no qual a sua
identidade e relação com a História vai se desvencilhando no transcorrer da narrativa.
É esse
deslocamento que faz de Policarpo um sujeito que talvez até hoje nos dê
possibilidades interpretativas, uma vez que ele, com suas propostas de mudanças
tenha o lugar relegado, restando-lhe, pois o não lugar. Numa sociedade onde cada
vez mais pessoas se deslocam para um não lugar, Policarpo Quaresma representa,
pois, todos estes que aí estão, enquanto sujeitos discursivos, emitindo falas
que se põem contra as imposições e decisões que não comungam com os desejos do
povo.
* Graduado em Letras / Português pela Universidade Estadual do Piauí (UESPI) e aluno do mestrado na Universidade Federal do Piauí (UFPI). Administrador do blog Papos Literários; contista e
cronista. Atualmente é professor de Língua Portuguesa.
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