O Bovarismo como pedra de toque na obra de Lima Barreto
Por Alexandre Rosa
cena da adaptação para o cinema de Triste fim de Policarpo Quaresma |
Ainda como
estudante da Escola Politécnica, Lima Barreto iniciou sua carreira literária
escrevendo para a revista humorística Tagarela, criada em 1902, pelos
caricaturistas Calixto Cordeiro e Raul Pederneiras. São textos importantíssimos
para a compreensão ulterior de sua obra, na medida em que já podemos observar a
prosa crítica e afiada do autor, dirigida para alguns temas que se tornariam
constantes em sua produção.1
No texto “Vendo a Brigada stegomya” (Toda crônica, vol. 1), encontramos um procedimento muito peculiar à
escrita barretiana, qual seja: uma espécie de estilo ensaístico, que serve de
preâmbulo antes de o autor adentrar na problemática em si. Neste caso, estamos
nos referindo aos comentários acerca dos “Batalhões” e “Brigadas” que se
formaram para combater o mosquito da febre amarela no Rio de Janeiro do início
do século XX.
As
considerações prévias marcam a posição do escritor e o modo como interpretará o
fenômeno a ser analisado, conforme podemos observar nesta passagem:
“No Brasil tudo é grande,
assegurava Tobias Barreto, exceto o homem, o que ele corroborava com a imagem
feliz que bem parecíamos um moço com cabelos brancos.
Que são
entre nós as grandes instituições dos Argus?
A filosofia
– um bimbalhar de frases ocas e campanudas ou um citar pasmoso de autores
estrangeiros de quarta ordem.
A nossa
literatura e arte são planetas mortos que gravitam para intermitentes e
variáveis sões da estranja.
A política
resume-se num descaroçar de atas falsas, na expressão de um profissional, ou
numa discurseira vazia de inteligência, mas cheia de palavrões e sentenças
acacianas.” (2004, p.62)
Esta espécie de consideração
geral sobre as coisas do Brasil serve para ajustar a crítica que será feita ao
modo como o combate à febre amarela foi posto em movimento no Rio de Janeiro2;
e, em termos mais amplos, já antecipa a postura que o autor adotaria contra a
nossa 'mania de grandeza', expressa, sobretudo, através do conceito de bovarismo.
Observemos mais este trecho:
“E vieram-me vindo essas ideias,
ao ver nas ruas, às calhas trepadas, os rodamentos da Diretoria de Saúde.
Tinham todos
o ar galhardo de campeões em batalha; nas suas faces havia a satisfação sadia
de um híplita que venceu em Maratona, as de Aquiles, garanto, não exprimiriam
tão feroz júbilo, após ter arrastado sete vezes, em torno de Íon, os despojos
sagrados de Heitor vencido.
E o chefe?…
Que belo estava! Jovial e sorridente [...] Era como um Napoleão vencedor dos
mosquitos; parecia um Alexandre que viesse de esmagar pernilongos em Arbelles.” (2004, p.63)
É de se
notar o recurso aos gregos em muitas passagens do texto, talvez uma “influência
do meio” no escritor ainda em formação; algo que seria extirpado de sua prosa
já a partir do livro Recordações do escrivão Isaías Caminha (1909), passando a
ser uma das grandes implicações críticas do autor em relação à literatura de
muitos de seus coetâneos, principalmente o escritor Coelho Neto.
Anos mais
tarde, Lima Barreto sistematizaria estas impressões iniciais acerca de nossa “mania de grandeza”, a partir da leitura de Le bovarysme (1892), obra do
filósofo francês Jules Gaultier. Trata-se do termo bovarismo, que passou a
fazer parte do léxico francês na década de 1860, em decorrência do enorme
debate que a obra de Gustave Flaubert, Madame Bovary (1857), causou nos
círculos letrados da sociedade francesa, sobretudo após o processo movido
contra o escritor.
É muito provável que Lima
Barreto tenha sido o primeiro intelectual a transplantar para o Brasil o
conceito de bovarismo, já célebre em alguns círculos intelectuais franceses,
devido aos estudos de Jules Gaultier concernentes à obra de Flaubert. Existe
uma entrada no Diário Íntimo, datada de 28 de janeiro de 1905, em que o autor registra
suas impressões acerca do livro de Gaultier, anotando que “O bovarismo, livro,
é um aparelho de óptica mental. É o prefácio. O bovarismo é o poder partilhador
do homem de se conceber outro que não é.” (p.59-61) Num artigo publicado no
periódico A.B.C., em 20 de abril de 1918, o autor resume as principais ideias contidas no
livro de Gaultier, muitas delas já presentes no manuscrito do Diário, além de
“lançar” o conceito de bovarismo para além dos limites da literatura e da
crítica literária.3
Como experiência estética, o
bovarismo presente nas obras de Flaubert se caracteriza como um desacordo, uma
distorção da realidade, resultado de uma auto-imagem deturpada que as
personagens constroem para si mesmas, passando a se considerarem “melhores” ou "mais admiráveis" do que realmente o são; a falsa percepção de si, no caso de
Emma Bovary, surge como consequência de seu excesso de empatia para com os
romances aos quais costumava ler desde a adolescência.
Assumindo as
imagens projetadas através das leituras, como sendo a sua própria percepção da
realidade, Emma Bovary acaba personificando a ideia segundo a qual o bovarismo
pode ser concebido como um “mal do espírito”, fruto, a um só tempo, do excesso
de leitura e decepções de ordem sentimental.4
Em
decorrência desta distorção, ocorre certa insatisfação produzida pelo contraste
entre a falsa auto-imagem formulada pela personagem e a carência das
possibilidades em realizar suas ilusões. Normalmente, as ilusões produzidas por
uma psique afetada por bovarismo são desproporcionais às suas capacidades reais
para a realização destas projeções. De outro lado, tais projeções podem ser
obliteradas por forças maiores – no caso de Emma, um casamento medíocre, um
marido estúpido e arrogante, um caso de adultério fracassado etc., que
entraram em franca contradição com o ideal que produzira sobre si mesma.
O conceito tornou-se tão
importante, após sua sistematização por Jules Gaultier, que passou a fazer
parte tanto da teoria literária, quanto do pensamento filosófico, histórico,
sociológico e psico-comportamental.5 Esta foi a grande intuição de
Lima Barreto para se utilizar do conceito de bovarismo – “desse binóculo de
teatro que se pode definir como o poder que é dado ao homem de se conceber
outro que ele não é” (1923, p.20). Aquela mesma disfunção entre uma auto-imagem
deturpada, que produz manias de grandeza e superioridade, e a impossibilidade
de realizar as ilusões construídas a partir desta distorção, acabou sendo
projetada por Lima Barreto para interpretar o nosso brasileiro, o “vulgar do
dia-a-dia” (p.22).
Este é o segundo movimento do
artigo – meio crônica, meio ensaio – intitulado “Casos de Bovarismo”, no qual o
narrador flagra alguns episódios – no manicômio, no bonde, nos trens suburbanos
e em alguns relatos de conhecidos – que revelam alguns "casos" daquela
distorção presente nas obras de Flaubert.
Armado de
seu “binóculo bovárico”, o narrador passa a surpreender alguns personagens do
cotidiano, que estariam "atingidos de bovarismo". Citemos um exemplo:
“O meu amigo H., velho
funcionário público, com tantos e tantos anos de serviço, sem uma licença, está
atingido de bovarismo. Aquele contacto diário com a pena, com o papel e
tinteira; o constante elogio dos diretores pela sua caligrafia, pelos seus
ofícios, despertaram-lhe n'alma uma curiosa imagem. Acreditou-se escritor,
literato; e o humilde escriba para quem o talhe da letra era a única
preocupação, pôs-se febrilmente a escrever versos, romances, contos e, há dias,
coitado!, veio me dizer:
– Você sabe ? tenho uma grande
obra.
– Qual é?
– A comédia do pó.
– ?
– É melhor do que a Divina
Comédia e um pouco superior ao. D. Quixote” (p.22).
Partindo, inicialmente, para
aqueles que podemos denominar de “o comum e ordinário dos brasileiros”, e
depois para os “grandes figurões pátria”, Lima Barreto aventou a ideia de que o
Brasil seria uma nação que sofre de bovarismo; neste sentido, o autor lançou as
bases para uma série de intelectuais que, anos mais tarde, nas chamadas “interpretações do Brasil” – nomes como Paulo Prado, Sérgio Buarque de Holanda,
Lúcia Miguel Pereira, Nicolau Sevcenko, Paulo Arantes, Roberto Schwarz, entre outros
– passariam a se utilizar da ideia de bovarismo no enfoque da realidade
brasileira e de seus percalços (cf. SOUZA, 2013).
Como instrumento, a um só tempo,
de interpretação da realidade brasileira e experimentação estética, o bovarismo
se tornaria, nas mãos de Lima Barreto, importante instrumento de articulação
entre processo social e forma literária, principalmente em obras futuras,
consideradas pela crítica como o ponto alto de sua carreira – o romance Triste
fim de Policarpo Quaresma e os contos “O homem que sabia javanês”, “A nova
Califórnia”, entre outros textos 'menos famosos' do escritor.
Nicolau Sevcenko considera o conceito
de bovarismo como um dos “temas nucleares” da obra de Lima Barreto, que se
encontra disperso por vários de seus livros, textos de imprensa, contos,
reflexões esparsas, etc., e se constitui “o âmago mesmo do Policarpo Quaresma” (2003, p.211).
A epopeia
íntima vivida pelo bom Major Quaresma é um caso exemplar de bovarismo oriundo
daquele “mal do espírito”, decorrente, num primeiro momento, do excesso de leitura.
A tragédia de Quaresma se configura exatamente pelo fato de ter encontrado –
tal como Dom Quixote – um meio extremamente hostil aos seus desejos. Este meio
se constituía nada mais, nada menos, pela nossa própria República, “toda imersa em
atitudes bovaristas” (2003, p.212). Acompanhemos esta leitura fundamental de
Sevcenko:
“O único modo de vencer [o bovarismo] era
pelo desenvolvimento da consciência crítica e da inteligência capaz de imaginar
alternativas. De fato, essa passagem do ufanismo à lucidez crítica resume a
própria trajetória do major Quaresma, símbolo de uma intelectualidade que
reformula suas posturas. Ele implicava sobretudo uma mudança na forma de olhar,
exigindo que se saísse das páginas dos livros e da cultura letrada, das
tribunas, das bibliotecas e dos gabinetes, para um contato direto com a
realidade do país, sua natureza, sua gente, seus campos, suas cidades.” (p.213).
Policarpo Quaresma acaba, ao fim
e ao cabo, sendo vítima do bovarismo, e por duas vezes: quando o desenvolve –
nos trinta anos ininterruptos de estudos sobre a pátria – e quando tenta se
libertar – clamando aos poderosos para a necessidade de se fazer algo prático,
de se partir para a práxis. Só havia uma
maneira de Quaresma se livrar do “mal do espírito”: era a nação se arrumar. Acabou
sendo executado pela própria pátria que quisera ver grande.
A derrota de Quaresma faz surgir
o personagem Castelo – vejam bem a expressividade deste nome – ninguém menos
que o tal “Homem que sabia javanês. Neste momento, Lima Barreto já havia incorporado
definitivamente em sua obra a ideia de que as instituições brasileiras seriam
amplamente favoráveis a uma espécie de “falso bovarismo”, ou, de um “bovarismo
de ocasião”, cuja manifestação prática e localista estaria justamente em nosso ethos
da malandragem.
No próprio artigo “Casos de Bovarismo”, o autor já havia compreendido os descaminhos éticos aos
quais poderia levar aquela falsa especulação sobre si mesmo. Vejamos:
“É um caso
agudo (o bovarismo); outros há, porém, em que o indivíduo atingido dele, para
se aproximar da imagem criada, emprega meios pueris, minúsculos em comparação
com o fim proposto. Na Educação Sentimental, do mestre (Flaubert), é que temos
o taciturno Regimbard, que, no fito de justificar a sua pretensão a entender de
artilharia, se vestia no alfaiate de certa escola militar.” (1923, p.21).
A
constatação de que o Brasil dispõe de um solo fértil para aqueles que utilizam
de motivos pueris para a consecução prática dos ideais bováricos foi levada às
últimas consequências em “O homem que sabia javanês”. Daí pra frente, os heróis
bovaristas de Lima Barreto seriam todos à moda de Leonardinho, o herói
picaresco das Memórias de um Sargento de Milícias (1854), de Manuel Antônio de
Almeida.
O mesmo procedimento
ocorre nos contos “Harakashy e as escolas de Java”, “Um músico extraordinário”, “As aventuras do doutor Bogóloff”, entre outros. Nenhum destes personagens 'sofre'
como o major Quaresma, pois souberam se 'adequar ao meio', utilizando de
expedientes, e não raro de falcatruas, para levar a cabo seus ideais bováricos.
Qualquer
semelhança com nossos dias atuais não é mera coincidência. O panorama cultural
brasileiro é amplamente favorável aos “Homens que sabem javanês”, já para os
Policarpos Quaresmas, só o Hospício ou o paredão de fuzilamento.
Notas
1 No livro Toda Crônica, Vol. I, foram recuperados três textos que o autor escreveu para a revista: “Vendo da Brigada Stegomya” (9– 7– 1903); “Memórias de um stegomya fasciata” (16 – 7 – 1903) e “Ópera ou circo?” (23 – 7 – 1903). Ver em BARRETO, Lima. Toda Crônica, 2 Volumes. RESENDE, Beatriz e VALENÇA, Rachel (orgs). Rio de Janeiro: AGIR, 2004.
2 Ver, a esse respeito, o livro de SEVCENKO, Nicolau. A revolta da vacina - mentes insanas em corpos rebeldes. São Paulo: Brasiliense, 1984.
3 O texto em que Lima Barreto apresenta o livro Le Bovarysme só viria a ser publicado postumamente, no volume Bagatelas, em 1923, mas aparece datado de 1904, muito próximo, portanto, do manuscrito registrado no Diário Íntimo. Ver em BARRETO, Lima. “Casos de bovarismo”. In: Bagatelas. Rio de Janeiro: Empresa de Romances Populares, 1923, p. 19-22.
4 Delphini Jauot. Le bovarysme, histoire et interprétation d’une pathologie littéraire à l’âge moderne. Flaubert [En ligne], février 2009. Consulta em 01 jun 2017.
5 Ver a esse respeito o Dossier Critique nº 20 (Après le bovarysme), da revista francesa Fabula, vol. 13, n. 3, mar 2012. Especialmente o ensaio de Remy de Gourmont. “Un nouveau philosophe: Jules de Gaultier (1903)”. Consulta em 01 jun 2017.
Referências
BARRETO, Lima. Diário íntimo. Rio de Janeiro: Editora Mérito, 1953.
BARRETO, Lima. Casos de bovarismo. In: Bagatelas. Rio de Janeiro: Empresa de Romances Populares, 1923.
RESENDE, Beatriz e VALENÇA, Rachel (Orgs). Lima Barreto. Toda Crônica. Rio de Janeiro: AGIR, 2004. (2 volumes).
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
SOUZA,
Eliana M. de Melo. Itinerários do bovarismo. Ponto-e-Vírgula. Revista de
Ciências Sociais. São Paulo, nº14 – set/2013. Acesso em 01 jun 2017.
* Alexandre Rosa é escritor, educador, cientista social e Mestre em Literatura Brasileira pelo Instituto de Estudos Brasileiros da USP, como pesquisador da obra de Lima Barreto.
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