Na vertical, de Alain Guiraudie
Por Pedro Fernandes
Quem tiver
visto Um estranho no lago, talvez o
filme que apresentou o trabalho do cineasta francês para um público diverso,
não poderia esperar outra coisa se não o que se vê em Na vertical, embora esta seja uma produção bastante distinta em
relação ao filme de 2013. O que coloca os dois títulos em relação é a obsessão
de Guiraudie em torno de uma ideia que, ao longo da narrativa, no mesmo
instante em que demonstra uma permanência sobre, a aprofunda.
Outra
premissa é a de ser uma história mínima mas capaz de tomar a força do absurdo.
Aliás, esta última característica se verificava já em O rei da fuga, cuja história se centra unicamente nos impasses de
um homem de meia-idade, homossexual, que se apaixona por adolescente e foge com
ela dos seus pais e da polícia. As narrativas construídas pelo cinema do
francês sempre têm permanecido presas numa repetição e em cada volteio revela o
elemento surpresa capaz de deixar o espectador sempre à espera pelo pior. Esta constante,
uma variação da primeira aqui apontada, também alinhava os dois filmes citados
antes do filme de 2009 e serve,
muitas vezes, de explicação entre um e outro. Por exemplo: o envolvimento policial
da personagem principal de Na vertical,
pelas suas atitudes, esclarece, em parte, o mistério instaurado em Um estranho no lago acerca dos
assassinatos a homossexuais que frequentam o point de pegação.
Nesse caso,
qual a repetição? Novamente é a chegada de um estranho – agora no interior de uma
pequena cidade do interior da França – o elemento em questão. Um roteirista de cinema,
em passagem por uma propriedade de agricultura familiar especializada na criação
de ovelhas, acaba por se envolver com a filha do proprietário, uma mãe solteira
com dois filhos pequenos. Os dois se conhecem enquanto Leo desenvolve uma curiosidade
junto a Marie sobre a presença dos lobos sempre a ameaçar o pequeno rebanho.
Paralelo a este envolvimento, ele constrói uma extensa obsessão por um adolescente
da propriedade vizinha que divide o teto com um velho entregue ao som do Pink
Floyd e é obcecado por acusar o rapaz com xingamentos homofóbicos e acusações de
que o usa para roubar dinheiro e garantir os vícios do corpo fora daquele
lugar. O que era para ser uma passagem, um instante numa folga da elaboração de
um roteiro ao qual se dedica, torna-se uma prisão e sua vida e a de todos
passarão por profundas transformações. É que o envolvimento dessa figura não se
restringirá à cuidadora de ovelhas, mas ele próprio se tornará em centro das
obsessões e dos desejos mais escondidos dos principais moradores dessas duas
regiões: o pai de Marie construirá um estranho desejo sexual por ele, que
transita entre a fantasia e a violência do oprimido; e a vida do estranho velho
do sítio vizinho também será modificada, paulatinamente, a partir da insistência
do roteirista por salvar o adolescente do lugar sem perspectiva onde vive.
Esse elemento
estranho, portanto, é o que, no mesmo instante que traz à superfície toda uma
sorte de obsessões reprimidas, sem que ele próprio faça algum esforço para
tanto, mas se mostre apenas uma criatura que se deixa levar pela condição de
homem livre – no melhor da acepção camusiana – instaura o caos na ordem até
então estabelecida. Mas é ainda a força reveladora da hipocrisia que sustém as
relações neste lugar, e, logo, reagregadora e produtora de uma nova ordem, possivelmente
mais autêntica – muito embora não menos complexa do que aquela que encontra na chegada
a esse lugar. Veja que assim se explica o título: é não a aproximação de um
estranho às vidas desconhecidas mas o seu aprofundamento num conjunto das
relações aí estabelecidas. Aprofundamento que alcança, como quem perfura camadas
de subjetividades, lugares insondáveis pela perspectiva do plano superficial
das coisas; aqui, o filme flerta com uma série de diversas manifestações comuns
mas que escapam à explicação usual e à compreensão racional do mundo.
A narrativa
logo se deixa infiltrar por uma diversidade fenômenos que estão na linha limite
entre o mundo trivial e o imaginário poético: o gozo, a comunhão dos corpos, as
aproximações entre o prazer e a vida, o onírico, a os mistérios do corpo desejante,
os celeumas da opressão, o fulgor da juventude, a velhice, a morte, a complexidade
da vida. Somam-se a isso alguns debates um bocado caros à civilização
contemporânea: a destituição das fronteiras entre sexos e entre atividades caracterizadoras
que demarquem lugares entre homens e mulheres, o homem enquanto máquina para o
desejo, a liberdade, não ao limite do desapego exercitado à primeira vista por
Leo, mas a das decisões sobre a própria existência.
Nada em Na vertical é para espíritos dóceis ou
adaptados a roteiros simples e triviais. Guiraudie prefere o realismo cru, capaz
de produzir cenas de sexo sem quaisquer pudores ou um parto natural, e, por
isso, constrói uma narrativa cujo interesse é dizer a pulsão natural da existência,
nua de subterfúgios.
Uma maneira
mais acertada de compreender esse filme é considerar essa narrativa uma
metarrativa, um sonho do próprio Leo na obsessão de escrever o roteiro que
tanto lhe cobram – e o espectador lembra-se do traço nonsense que a certa
altura se infiltra na narrativa e ganha espessura até o seu desfecho, a
perseguição do financiador do enredo num pântano, a prisão de Leo entre dormir
e acordar para concluir o tal roteiro e as estranhas digressões num meio de uma
floresta como se estivesse numa espécie de clínica de tratamento psiquiátrico
natural. Guiraudie não se intimida com o devaneio e com isso provoca a própria
compreensão mais ou menos sedimentada de realidade tal qual a construímos: a
que sublime, aterra, esconde o animal que está em nós.
Nesse
sentido, o lobo, animal que todos nesse sítio querem matar para preservar o
rebanho de ovelhas e com o qual Leo constrói uma relação de curiosidade, se
transmuta numa poderosa metáfora sobre o selvagem que se esconde em nós. É
significativa a cena final dessa narrativa, quando Leo e o fazendeiro se veem expostos
a uma matilha de lobos e esse estranho tenta acalmá-lo com o conselho de
permanecerem em pé e sem esboçar qualquer medo que os lobos desistem do ataque.
Assim parece
querer Guiraudie que recuperemos o selvagem que estivemos a todo tempo reprimido,
seja à base do medo, do abaixar-se ante o desconhecido ou negá-lo. O que temos conseguido
com isso? Parece perguntar-se. Só o distanciamento cada vez maior de nós mesmos
e o fechamento das grades que nos impedem à vida enquanto pulsão. É, por isso, Na vertical, uma interessante tentativa
de propor uma religação do homem com sua condição profunda só revelada no
sonho, no lapso e em comportamentos diversos que o não deixam de negar que sua
vida se rege pela razão, mas principalmente pelo primitivo e pelo imaginário.
Comentários