Inferno provisório, de Luiz Ruffato
Por Pedro Fernandes
Uma das características
definidoras do bom escritor é sua capacidade crítica para com sua própria obra.
Na medida certa ela significa um zelo com a língua e o leitor. Mas, a revisão
repetitiva e contínua de uma obra é um agravo. Demonstra não só insegurança
para com o seu projeto literário como um interesse pela submissão do leitor a
uma obsessão da qual, raras exceções, a do estudioso da obra, por exemplo, ele
não tem interesse em compartilhar. Ainda bem que não podemos inserir Luiz
Ruffato nessa última lista, porque com Inferno
provisório – assim como foi com De
mim já nem se lembra – é, nas palavras do autor, a obra definitiva que começou
a ser gestada em 1998 com a apresentação de Histórias
de remorsos e rancores e findou quase uma década depois com Domingos sem Deus. No intervalo entre os
dois títulos escreveu Mamma, son tanto
felice, O mundo inimigo, Vista parcial da noite e O livro das impossibilidades.
Em geral as
histórias desse ciclo são sobre personagens recorrentes e as diversas
tonalidades de cores e formas que compõem as paisagens da periferia de
Cataguases, cidade natal do escritor, tornadas em metonímia sobre a periferia
do Brasil, país de raiz multicultural mas nascido do mesmo embate de forças, do
fosso social entre pobres e ricos – ainda que os céticos teimem em dizer que o
termo luta de classes não se aplica a nós, o que é, sem dúvidas, uma grande
asneira e limite do dissenso político dos quais muitos padecem.
Mas também o
leitor compreenderia se futuramente a explicação de Ruffato que apresenta Inferno provisório como o ponto final de
um projeto não se sustentasse. A leitura dos cinco livros aí reunidos deixa
entrever que não foi este um caso pensado e sim um exercício contínuo como o de
alguém que olha reiteradamente a mesma paisagem e uma vez nela percebe figuras
e situações úteis de meter numa história. Isso significa dizer que nada impede
que o escritor venha a construir novas peças e rearranjar o conjunto da série.
Sobre esta
ideia ser forma em construção, um marco
que se vislumbra é o da descontinuidade textual. Ou seja, não persiste no
interior de Inferno provisório uma
repetição cansativa e sim uma reiteração iluminadora, como se estivesse com o leitor
o poder coparticipativo de construção desse extenso painel social que o escritor
se dedica pintar. Dessa maneira, Luiz Ruffato parece recobrar, à maneira de
Balzac, a história oculta de um povo, não vista pela história que só tem olhos
para o acontecimento extraordinário ou os fatos oficializados pelo poder. O cotidiano,
as aflições, os dramas pessoais e familiares, os sonhos particulares, nenhum livro
de história fala deles e se fala é para colocá-los em contraste com um
determinado padrão capaz apenas de reduzi-lo ainda mais enquanto
insignificância.
Nesse
sentido, Inferno provisório vai ainda mais longe porque não apenas
trata o comezinho como elemento primordial para a história oficiosa e oficial como
ainda se abre para as próprias vozes silenciadas sejam as vozes do que se
narra. Mesmo quando uma história é narrada por um ponto de vista exterior, este
é ora modificado pela maneira de contar do observado ora tomado pela sua voz.
Assim as narrativas deixam-se infiltrar por uma diversidade linguística de
grande valia e por um tom bastante característico do falar mineiro do interior,
que associado a uma reiteração de objetos e passagens históricas conformam uma
atmosfera que imerge todos os sentidos do leitor ao universo recobrado. Isto é,
aquilo que se repete, porque é natural do estilo de um escritor, é a forma e a
estrutura do narrado, sempre marcado pela memória, o fragmento, o contar miúdo,
a repetição dos dizeres, as recriações de palavras ou a recuperação de outras
perfazendo duas das tarefas mais caras do fazer o literário: o registro e a
renovação da língua.
A revisão
dos textos dos cinco livros reunidos em Inferno
provisório trouxe modificações significativas em todo o projeto já conhecido
e seria cansativo numa ocasião como esta enumerá-las. Basta dizer que, aparentemente,
a tentativa de Ruffato não foi a de construir uma linearidade temporal ou mesmo
de enredo das histórias, visto que o corte temporal onde estão situadas recobrem
pelo menos cinco décadas, sobretudo as de antes e durante o período de
industrialização do Brasil e da ditadura militar – duas circunstâncias
fundamentais para compreender o impasse cultural aí recorrente, as
transformações no modus vivendi da
gente à qual se refere, bem como as repetições das formas de poder e opressão
por entre e sobre os indivíduos – é fragmento e descontínuo; nem as narrativas
representam quaisquer traços de continuidade.
O reaparecimento
de situações, condições, espaços apenas constituem, como dissemos, retomadas como
se a observação sobre o universo ao qual se dedica o escritor fosse uma maneira
de recompor o mais amplo e realisticamente possível o cotidiano das vidas comuns.
Nesse ínterim, há uma variedade de temas que constituem de forma diversa as narrativas
– a imigração, o sufocamento das identidades sexuais, o machismo, a violência
em suas mais diferentes formas, o racismo, os imperativos do poder, as relações
de classe, o capital enquanto deformador das existências, a história e suas
implicações nas vidas dos indivíduos –, os sonhos, as lutas, a canseira da vida
e do trabalho, a coragem, os medos, as espertezas, os desejos reprimidos, a loucura
e danação das gentes e dos corpos, os trânsitos entre as religiões e o levante
dos cultos e modos de ser evangélicos, os preconceitos, o desamparo, as rinhas
entre vizinhos, marido e mulher, pais e filhos, empregados e patrões, as crenças,
os discursos da impostura, as cicatrizes do passado, o abandono, o esquecimento,
os jogos de conveniência, de interesses, os valores humanos e suas derrocadas,
o funcionamento e apagamento das hierarquias, enfim, toda uma sorte de
elementos que compõem uma sociedade compreendida pelo escritor como um tipo
caleidoscópico.
Luiz Ruffato
almeja, ainda que provisoriamente tal como denuncia o título da obra, alcançar
uma totalidade da vida, isto é os seus movimentos e suas pulsões e, por isso ignora
uma dicotomia entre o conteúdo psíquico e o histórico; do contrário, almeja alinhavar
essas duas pontas, construindo uma compreensão extremamente lúcida em que se
presume uma correlação de formas: o interno e o externo, o real (no sentido do
fato ou ação desempenhados a olho nu) e o irreal participam assiduamente na constituição
do mundo.
Além de um
panorama histórico-social sobre a periferia do Brasil, o que coloca Luiz
Ruffato numa lista que inclui nomes como Aluísio Azevedo, João Antonio, Lima
Barreto, para citar alguns dos nomes da nossa literatura que são fundamentais
para pensar a parte da urbe do país que se oculta, Inferno provisório constrói uma visão peculiar da nossa heterogênea
e complexa atitude que nos define enquanto brasileiros: as implicâncias, os
jeitinhos, as corrupções, os maus-acomunados.
Pela variedade
de temas e caracterizações aí presentes, nota-se que a organização busca pelo
escritor foi, sempre em torno do título que nomeia a série de textos. Isso
significa que os olhos do escritor recai sobre o baixo da sociedade, o inferno,
tal como denominam seus próprios habitantes e tal como rebaixam os das classes
favorecidas. Se o inferno é mesmo construído por dramas e frustrações não há outra
denominação melhor para esses textos. E se o leitor reparar bem, notará outro
elemento que reafirma essa consideração: do inferno todos almejam a sair, de
uma maneira ou de outra. Essa parece ser a força que impulsiona todos os desse rico
universo ruffatiano. E justamente por isso há sempre uma expectativa em
suspenso, como um oásis, uma tábua de salvação – mesmo que esta seja,
reiteradas vezes, a própria morte. Esta, aliás, confirma que, para o bem ou
para o mal, não há mal que nunca dure uma eternidade, porque tudo é provisório.
No mais, eis
um livro que favorecerá aos interessados em construir uma visão acerca da
gênese da obra de Luiz Ruffato e com seu universo, uma vez o leitor terá contato
com os temas e obsessões espraiados em vários romances sempre lembrados entre
os mais importantes da nossa cena literária recente. É este um dos trabalhos literários
filiados a extensa e importante tradição da nossa literatura de pensar sobre
nossas raízes tão numerosas, diversas e complexas – um antídoto, portanto, contra
as expectativas de base unicista que tentam pintar o país desconsiderando e subjugando
nossa verdadeira história. Sim, ela não repousa nos livros de história, nem nos
universos pálidos dos noticiários. Nossa verdadeira história pulsa, tem vida, e
cotidianamente silenciada, vilipendiada em nome de um enredo tosco e inexplicativo. Pensar um projeto de nação passa por compreendermo-nos. E ainda bem que se, isso é um sonho distante, sempre se pode pegar um atalho por obras como esta. Se não, onde
estaríamos agora?
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