Frida Khalo: do hieratismo perante a dor
Por Márcio de Lima Dantas
Calo-me
diante das telas de Frida Khalo. Silencio numa melancólica aquiescência dos que
aprendem desde cedo a respeitar, e se identificar, com os assinalados, doadores
de sangue e martírio para a sombria deusa Hécate, ergo a cabeça apenas para
contemplar os que tomam a iniciativa inglória de se confrontar com um destino
aziago, lançando exércitos suicidas contra o implacável poder das Parcas.
Eis-me despido diante das cores fulgurantes da pintora mexicana, mulher que me
despe de pronto, deixando-me frágil, nu, atirando-me em direção aos recônditos
abissais do meu ser, arrancando flâmulas arquetípicas das minhas aras
interiores, chafurdando no movediço do meu imo.
A existência-obra de Frida é o discurso plangente do órfão que ama uma madrasta
perversa chamada Vida. É o “sim” primoroso e ardente de quem aceita as migalhas
atiradas com desprezo e parcimônia pelos deuses. Frida teve a coragem de
desdenhar dos donos da situação, contrapondo-se a um moralismo reinante no tempo,
corroendo a disciplina interior por meio de comportamentos heterodoxos as
sombrias cores da sociedade mexicana de então. Frida escancarou portas e
janelas, permitindo que Apolo iluminasse as cores dos objetos, fulgurando em
beleza e sensualidade o que antes era casto, comedido e hipócrita.
De uma amarga realidade, baça de cores, esplendeu luz sobre toda e qualquer
nuança. Digo dela o que Paul Valéry disse de Baudelaire: tudo é luxe, forme e
volupté. Factos de ângulos ásperos recolhidos nas largas tinas interiores foram
transfigurados em imagens fortemente detentoras de um caráter universal,
dialogando com a dor comum a todos os seres sencientes. A extrema lucidez
lançou seus filetes de fósforos nos arquétipos quedados na psicologia mais
profunda de cada ser. Revérberos agônicos e lancinantes, gritando a dor de um
padecer sem tréguas, proclamava o quanto dói existir, o quanto cada um deposita
no altar da vida toda uma série de purgas, privações e impotências diante das
forças do destino.
Frida resguarda uma dignidade de princesa que teve acesso, em vida, aos arcanos
da morte, familiarizando-se através das imagens com fortes predisposições ao
simbólico, autodevorando-se num processo de revirar suas próprias vísceras,
obrigando-as a esplender diante dos seus olhos, como se mergulhasse em seu
inconsciente, revolvendo em comarcas longínquas à cata do remédio para curar-se
de si mesma. O tormento que era habitar um corpo enfermo. O resultado da busca
conduziu-a à redenção de uma realidade extremamente difícil, pois como se não
bastasse o ontológico e sua necessidade de respostas, havia o problema do corpo
pleno de doenças: coluna fraturada, as trinta dolorosas cirurgias feitas no
decorrer da vida, amputação da perna direita. A vida não teve um pingo de
piedade de Frida. A Vida sabe muito bem das culpas que nos são impregnadas no
processo de socialização, de quanto nos custa gerenciar o falso moralismo
difuso na vida social, mas para ela, a Vida, isso não foi o bastante, queria
uma cota maior de sofrimentos. Frida foi ungida, elevada à condição da que
deveria padecer mais que os demais. Eleita senhora da dor, moradora da casa do
sofrimento, aquiesceu, vindo a ser uma espécie de alquimista, a que transforma
padecer em arte, a que fez uso de todas as reservas de tolerância às despóticas
vicissitudes impostas pelo cotidiano, apoiada que se encontrava numa capacidade
de materializar via imagem pictórica aquilo que a pungia. O anseio da
infelicidade, que é sempre par, que se quer transmudado em outra coisa, que
seja transcendental e campei sobre os dragões do tempo, vencendo-os sem se
confrontar com o implacável das horas.
Quando o eu-biográfico encontra-se excessivamente atrelado ao eu-artístico,
saiam de perto: o conluio procria toda qualidade de bastardos, alimentados por
uma seara cultivadora de flores as mais nefastas, enraizadas no fértil estrume
fermentado nos prados tisnados de Saturno. Clarice Lispector não me deixa
mentir. Foi vítima de si mesma, confundindo rosto com máscara. Papel de
celulose com papel social. Posso repetir que o que se ganha em arte se perde em
vida? Mil vezes a vida com suas parcas esmolas, Senhora miserável, gotejando
homeopaticamente néctar nas nossas sedentas bocas, porém: negar quem há-de que
somos viciados em viver e que nunca os sentidos se cansam de buscar sensações?
Cada sentido lateja uma espera, uma necessidade, cada sentido é como se fosse
assim um oco ansiando plenificar-se com dádivas da paisagem ou com precisos
objetos advindos da interação com o outro.
Frida conseguiu conter a impunidade dos que padecem dores físicas, dores da
alma – toda dor é inútil - organizando através de imagens inusitadas aquilo que
punge o humano com estocadas de vicissitudes, com impiedosos bafejos de padecer
angústia sob um sol que reverbera sobre os objetos da paisagem, intensificando
cada cor, estabelecendo a exata diferença entre uma nuança e outra.
Frida é a fenda no muro de pedras, que inutilmente azunhamos, e que jamais
cede, imoto e frio, na sua permanente necessidade conservantista. Frida é a
pequena margem de possibilidade que nos permite fazer frente ao que, muitas
vezes, estranhamente, nos parece obrigatório e necessário por potências
desconhecidas, manipulando-nos feito marionetes, postos num enredo oculto do
qual só nos dão a conhecer o epílogo: a morte.
Frida atesta a necessidade de odiarmos Deus, detestando-o por nos ter
abandonado sozinhos, quais cães sem choro, num mundo hostil e de difícil
aceite. E a atitude de abandonar Deus só pode ser substituída por um altivo
estoicismo aliado a um comportamento cujo lastro sustente a noção de fatalismo,
de destino, enfim, do se dobrar ante a borrasca renitente dos ventos do
infortúnio. Contudo, o tormento humano não se fez estéril, matéria detentora de
bom húmus de significantes, deita olhares cúmplices às imagens estéticas,
procurando a compaixão da arte, lugar desde sempre de guarida das consciências
infelizes. Eis o prodígio de Frida: logrou materializar em opulentas e cruas
imagens tudo o que lhe pungia, retratando por meio de uma simbiose entre domínio
técnico e manuseio livre das imagens a experiência singular de uma mulher
açoitada pelos cilícios sem trégua de uma existência miserável, quedada sobre
um imenso lastro de dores físicas. O seu estoicismo instaurou o necessário
resguardo que possibilitou uma organização interna capaz do confronto com as
forças adversas da Vida. Falo daquele movimento interior que se rege pela
necessidade de manifestar uma experiência por meio da cristalização de símbolos
emanados das camadas mais profundas da psique, permitindo que determinadas
espécies de significantes não apenas expressem uma presença no mundo, mas
também proclame que algumas dores são ontológicas, e que ninguém fica isento de
beber uma talagada de amarga bebida envelhecida nos tonéis do Tempo, acumulada
no decorrer de uma trajetória de desamparo sobre a terra. O singular adquire
valor universal.
Todo mundo sabe, Fernando Pessoa o disse: quem tem alma não tem calma. Achando
pouco, proclamou em fulgente rasgo metafísico: quem quer passar além do
Bojador, tem que passar além da dor. Fernando era uma pessoa que sabia das
coisas. Ora, sabia até como dar cabo de si mesmo, deixando-se consumir
lentamente pelo álcool, vindo a falecer com 47 anos, que também é a idade de
morte de Frida Khalo.
Exultate! Jubilate! A arte pode vencer o carcomer de Cronos e a autonomia das
Parcas. A arte é o refúgio dos dissonantes e dos descontentes, consoladora dos
aflitos, estalagem no meio do caminho de uma grande jornada, arca resguardadora
de preciosidades subjetivas engendradas pelo embate com as forças contrárias
que a vida lança cruelmente contra todos. Frida é a força que rasga o véu do
templo, a candeia posta em quarto escuro, o punhal que fere e brilha, o espelho
de prata polida a refletir sem medo os revérberos de todas as cores. Frida rima
com Vida.
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Márcio de Lima Dantas é Professor Adjunto II da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. É autor de xerófilo e Rol da feira, encartado nas edições 3 e 5 do caderno-revista 7faces, respectivamente; no 5º número publicou também uma edição de artes plásticas caderno de desenhos. Além disso, escreveu os seguintes livros de poesia Metáfrase (1999), O sétimo livro de elegias (2006), Para sair do dia (2006) e os de ensaio Mestiçagem e ensaísmo em João Cabral de Melo Neto (2005) e Imaginário e poesia em Orides Fontela (2011). Também traduziu para o francês, com o prof. Emmanuel Jaffelin, quatro livros da poeta Orides Fontela, organizados em dois tomos: Rosace. Paris: L’Harmattan, 1999 (Transposição e Helianto) e Trèfle: L’Harmattan, 1998 (Alba e Rosácea). Ganhou o prêmio Othoniel Menezes (2006), com o livro Para sair do dia, outorgado pela Capitania das Artes; foi contemplado com o I Prêmio Literário Canon de Poesia 2008.
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