Fama e preconceito
Por Andrea Aguilar
Cabe pensar
que a única “verdade universalmente reconhecida” em torno de Jane Austen quase começa
e termina na famosa frase com que inicia seu romance Orgulho e preconceito, aquela irrefutável suposição de que “um
sozinho com dinheiro deve estar buscando uma esposa”. Em 18 de julho cumpre-se
o bicentenário da morte da autora britânica aos 41 anos, uma romancista cuja
fama póstuma e dedicados seguidores a converteram numa espécie de estrela de rock
literária, um ícone cultural que desperta grandes paixões.
Seus devotos
leitores desenvolvem com ela uma peculiar intimidade e sentem um estranho
esnobismo ou direito de propriedade que poderia resumir-se num “não toquem em
minha Jane” ou “esse bando de fãs cafonas realmente não entendem sua obra”. O
inflamado debate sobre a “leitura correta” de sua obra, sua popularidade ou
transformação num produto pop e equivocadamente superficial, é algo tão clássico
com os trajes de corte imperial usados por suas heroínas nas diversas
adaptações cinematográficas e televisivas de seus seis livros. Como disse
Virginia Woolf que “qualquer um que tenha a ousadia de escrever sobre Jane
Austen é consciente de que há 25 senhores mais velhos residentes na cidade de
Londres que se ressentem ante qualquer matiz sobre seu gênio, como se fosse uma
afronta à castidade de suas tias”.
Sua advertência
não foi muito levada em conta. A diversidade de estudos e livros sobre a vida,
obra, milagres, estilo, costumes, cozinha ou paisagens do universo de Austen
tem sido e é sem fim. A Grã Bretanha imprime este ano notas de 10 libras com
seu rosto; Winchester, onde na catedral está enterrada a escritora, acolhe uma
grande exposição.
Mas o certo
é que a brilhante, doméstica e criativa Jane logo se converteu em motivo de polêmica.
Citada como exemplo por parlamentares conservadores no século XIX em sua defesa
das sãs tradições inglesas frente à ameaçadora modernização. Acusada de ser a criadora
de estereótipos masculinos hiper heterossexuais. “Há outros escritores que
pareçam tão vulneráveis ao serem amados por tanta gente pelos motivos equivocados?”
– se lamentava Henry James já em 1905.
Em Jane Austen, The Secret Radical (Jane
Austen, a radical secreta), a acadêmica de Oxford Helena Kelly desenvolve sua
teoria sobre os motivos que escondem por trás da equivocada, inócua e popular
visão da romancista, antes de reclamar uma leitura mais profunda. Atenção ao contexto
e ao puro texto, adverte Kelly no novo livro, aparecido também no calor do
aniversário.
Nascida em
dezembro de 1775 no pequeno povoado de Steventon em Hampshire, a sétima de oito
filhos de um reverendo, Jane passou cinco anos em Bath e três em Southampton, e
exceto nos períodos de férias e em ocasionais visitas a parentes, residiu a
maior parte de sua vida no condado onde nasceu. Nunca se casou. Entre finais de
1811 e 1815 publicou quatro romances (Razão
e sensibilidade, Orgulho e preconceito,
Mansfield Park e Emma). Outros dois (A abadia
de Nothanger e Persuasão) saíram em
finais de 1817, cinco meses depois de sua morte, com uma introdução do seu irmão
que apresentava a primeira nota biográfica sobre Austen. “Jane, segundo Henry, não
se considerava uma escritora, não tinha uma elevada opinião de seu trabalho e
nunca pensou que chegaria ao grande público. Depois de ceder à pressão de sua
família, estava muito surpresa com o sucesso”, escreve Kelly. Talvez Henry
tratasse de dissimular a necessidade de dinheiro e proteger sua irmã, que logo
escondeu o primeiro manuscrito vendido mais tarde e nunca publicado.
Frente à
insistência de que Jane Austen era uma fiel seguidora dos princípios da igreja,
Kelly revisita as tramas dos romances da britânica em que os clérigos carecem
de vocação e esgrime o temo histórico em que foram escritas. Austen nasceu cinco
anos depois do poeta romântico Wordsworth, um ano antes de iniciar a guerra
pela independência nos Estados Unidos, e tinha 13 anos quando começou a
revolução francesa. Durante a maior parte de sua vida a Grã Bretanha estava em
guerra – era uma época de censura e vigilância por parte do Estado.
Os romances
de Austen – a única autora desse período que escrevia sobre seu tempo de forma
realista – são tão revolucionárias como os textos pelos quais Thomas Paine foi
perseguido, sustém a ensaísta, mas foram escritas com tanta arte que só se o
leitor não estiver buscando no lugar correto deixará de ver. “Jane não era uma gênio
que se movia pela inspiração sem pensar, era uma artista que se comparava a si
mesma como um pintor de miniaturas; em seu trabalho cada pincelada, cada
palavra, cada nome de cada personagem, cada verso citado importa”, escreve
Kelly, antes de aprofundar-se em como nos de romances Austen, aparentemente de costumes,
há espaço para tratar sobre a escravidão, os abusos sexuais, as teorias da
evolução e os direitos das mulheres. Os dramas superficiais em fabulosos salões
escondem muito mais do que parece.
Talvez a
afirmação mais extrema de Kelly seja que “os romances de Jane não são românticos”,
algo que enfureceria milhões de fãs. Elas e eles são os Janeites, termo inventado por George Saintsbury em 1894 e que E. M.
Foster confessava ser (e portanto ser “um pouco idiota”). A estadunidense
Deborah Yaffe se aproxima deste fenômeno em Among
the Janeites: A Journey Through The World of Jane Austen Fandom (Entre os
Janeites: uma viagem pelo mundo dos fãs de Jane Austen). “Houve um tempo em que
ao se declarar fã de Austen significava que você tinha um gosto refinado, a
habilidade de desfrutar da ironia mordaz e da caracterização sutil das
personagens. Hoje, provavelmente, significa britânicos bonitos vestidos como cavaleiros
de equitação”, escreve a jornalista, cuja pesquisa a leva a vários clubes de
fãs, bailes de época ou a um povoado onde a mulher superou os traumas de um
divórcio escrevendo continuações dos romances de Jane Austen.
Em The Making of Jane Austen (A criação de
Jane Austen), a professora da Universidade do Arizona Devoney Looser se refere
às irmãs Hill – a escritora Constance e a ilustradora Ellen – como duas
ilustres e visionárias Janeites que
abriram caminho. Em 1902, seu livro Jane
Austen: her homes and friends (Jane Austen: seus lugares e amigos) narrava
uma rota de peregrinação por cenários da vida e da obra de Austen. E embora em
finais da década de 1860 um sobrinho de Jane tenha começado a reunir material
sobre seus familiares e escrito Memórias
de Jane Austen – surgiu então o apelativo tia Jane, e Austen tornou-se uma espécie de tia universal no mundo anglo-saxão
– foram as Hill quem delimitaram o caminho da compulsiva obsessão por
aproximar-se da escritora de Orgulho e
preconceito. “A invenção de Jane Austen foi e continua sendo uma extravagância
bizarra, sem precedente social, nem literário, nem histórico”, aponta Looser.
O certo é
que quatro anos depois de sua morte, Jane Austen já era situada à altura de
Shakespeare por Richard Whateley, arcebispo de Dublin. “Seu talento para a
observação”, causou e causa sensação. Também seu extraordinário uso do diálogo.
James Wood, crítico do The New Yorker,
a destaca como grande mestra e pioneira do discurso livre indireto. Mas é na
vertente teatral que Paula Byrne se aprofunda na edição ampliada de The Genius of Jane Austen (O gênio Jane
Austen). Ela encontra na paixão por Austen pelo teatro a chave para entender sua
obra. Jane ao longo de toda sua vida participou em produções e montagens
teatrais privadas e via obras do gênero com frequência. “A visão popular que se
tem dela é que era uma romancista interessada apenas em romances e casamentos. Está
claro que o casamento é o centro e o fim tradicional das comédias, mas o que
realmente interessa a Austen são os mal-entendidos e encontros incongruentes
que ocorrem pelo caminho não o final feliz”, escreve.
As
interpretações, obsessões e paixões pelo mundo de Austen parecem não terminar
nunca. Boa causa para celebrar. Porque como adverte em Emma: “Rara, muito raramente, a verdade completa faz parte de uma
permuta; raras vezes algo não finda um pouco disfarçado ou um pouco confuso”.
* Este texto é uma tradução de "Fama y prejuicio", publicado no jornal El País
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