Elvira Vigna, para sempre
Por Pedro Fernandes
Em texto
sobre O que deu para fazer em matéria de
história de amor, Alfredo Monte lembra que Elvira Vigna “vem construindo
uma marcante obra como romancista desde o final dos anos 1980, um universo
áspero e cáustico, no interior do qual as protagonistas (daí o uso feroz de uma
primeira pessoa muito peculiar, inconfundível, na narrativa)”.
No último dia 10
de julho, os leitores que, desde então, ou muito recentemente, acompanhavam
essa trajetória singular foram surpreendidos com a notícia sobre a morte da escritora.
Apesar da intervenção da natureza que colocou um ponto final no que demonstrava
ainda que renderia muitos frutos para a nossa tão frágil literatura, é possível
dizer, ante os romances que nos deixou, que a obra de Elvira Vigna encontra-se
entre aquelas das quais não é possível deixar de citar quando historicamente formos
nos referir a esse período que cobre três décadas, a contar do ponto de partida
assinalado por Alfredo Monte. Sobre as encruzilhadas do destino, nada se pode
dizer porque sobre elas, nem o mais racional dos espíritos as tem sob controle. A
vida é pulsão e Elvira Vigna sabia ao certo disso; não soubesse não teria construído
essa obra que agora reivindicamos signo de um tempo dentre as publicações mais
interessantes dentre a infinita quantidade de nomes em construção na cena literária
brasileira.
Elvira Vigna
nasceu em 29 de setembro de 1947 no Rio de Janeiro e desde nova foi morar em
São Paulo onde viveu até 2017. Dividiu a escrita entre as mais diversas tarefas
que pode assumir contemporaneamente um sujeito que decide viver do ofício da
palavra: ilustrou, traduziu, e compôs textos para a imprensa escrita. Formada
em Direito pela Universidade de Nancy, na França, em 1975, e Mestra em Comunicação
pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, quatro anos depois, o trabalho de
Elvira Vigna como escritora se constrói a partir de uma série de experiências com
a palavra.
Como jornalista,
por exemplo, escreveu para a revista Fair
Play, depois editou a revista A pomba
e trabalhou em jornais como O Globo, Estadão, Folha de São Paulo e Jornal
do Brasil – nos quais contribuiu com a escrita de textos diversos sobre arte
até 2006, além de se manter regularmente a escrever textos para canais de fora
do país, como a Études Lusophones, da
Sorbonne IV. Nos anos 1970 publicou uma série de histórias infanto-juvenis da
qual, por uma delas, Lã de umbigo, recebeu
o Prêmio Jabuti.
Depois do
primeiro romance – Sete anos em um dia,
uma história de quatro amigos durante a época da abertura política,
pós-ditadura brasileira, quando nada do que acontecia parecia muito real – a obra
de Elvira Vigna ganha algum sedimento por se concentrar na prosa romanesca,
muito embora, ela não tenha se desvinculado das outras diversas formas de criação. A partir da obra publicada em 1981, já é possível
inserir, de maneira segura, a literatura
de Vigna entre aquelas que sempre estiveram muito próximas das questões históricas,
sociais e políticas de um país que tem se constituído numa estranha maré de
levantes, interrupções, esperanças, desesperanças, avanços, retrocessos, incansavelmente
preso num ir e vir que, nos últimos anos, os anos nos quais a escritora se
abrigou para construir seus contextos, tem se mostrado como um estranho tempo de náuseas e dessentido.
Sem se descuidar
do lugar contextual habitado por ela – isto é, da máxima que faz todo grande escritor,
ser figura de seu tempo, capaz de enxergar por entre as frestas desse tempo o
que serve à literatura e aos leitores – Elvira Vigna avançou noutra frente,
genuinamente contemporânea do romance: a de construir os dramas desses indivíduos
presos nesse ir e vir da maré social, não desprezando-os enquanto sujeitos alinhavados
por outras questões concernentes à natureza do que nos constitui enquanto
humanos. Ou seja, a Vigna não interessa-lhe a construção de tipos sociais ou de
figuras marcadas por terminados caracteres responsáveis por dizer este lugar
histórico, político e social do qual participa. Ela esteve sempre interessada
na construção de personagens universais, nas prisões e liberdades existenciais, algo que, no Brasil, por exemplo, terá
impulsionado a escrita de nomes como Clarice Lispector ou Lygia Fagundes Telles,
para citar dois entre os quais a obra da escritora merece estar presente.
O assassinato de Bebê Martê, Às seis em ponto e Coisas que os homens não entendem formam uma trilogia involuntária
por estarem marcadas pela narrativa em torno de uma morte inesperada. Neles,
Elvira Vigna engendra uma das características do romance contemporâneo e da
qual se apropria com estilo próprio: a capacidade de suspender os acontecimentos
relatados, trocando a ideia de verdade , o sempre interesse da arte de contar, pela
possibilidade. No primeiro romance, por exemplo, uma série de perguntas se acumulam
ao longo da narrativa enquanto esta se engendra: a possível confissão de uma
mulher que teria matado o pai. No segundo, exercitando a construção da perversidade
humana, e novamente a ideia da mentira, a narrativa constrói uma figura inesquecível
para o leitor, Maria Teresa, uma dissimulada assumida que se interessa em contar
as histórias alheias, remontando-as à sua maneira, suave, inefável e perversa.
No terceiro, a narrativa volta a tocar no tema da morte: o assassinato de
Aureliano no apartamento em Santa Teresa depois que a fotógrafa Nita,
protagonista do romance, volta ao Rio de Janeiro duma temporada em Nova York.
Ao tratar da
narrativa enquanto possibilidade, é possível mesmo justificar através dessa
ideia, uma das obsessões formais e estruturais da prosa romanesca de Elvira
Vigna que, a cada romance melhor se mostrava. O suficiente para render-lhe
alguns dos maiores reconhecimentos em tão pouco tempo como escritora: em 2010,
por Nada a dizer, um romance escrito
depois de Deixei ele lá e vim, ganhou o Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras; em 2015,
pelo romance Por escrito, recebe o
Prêmio Oceanos. Antes deste último, publicou O que deu
para fazer em matéria de história de amor e depois Como se estivéssemos em palimpsesto de putas, o último livro publicado
em vida, em 2016. Em cada um desses romances, Elvira mais se aprofunda na ideia
de como a memória e a imaginação criativa são modelares nos processos de
fabulação da realidade, ou mesmo o quanto essa dita realidade é insuficiente se
medida apenas com a régua sectária da razão.
Nesse espaço
da imaginação, que é também o mesmo espaço da fabricação dos lugares existenciais
e da criação, a escritora transitava com uma leveza, certo ceticismo, capazes
de construir na justa medida a diversidade de sentimentos possíveis de revelar
o que de mais interior ocultamos. Não que fosse interesse de Elvira Vigna
revelar tais interiores, sua tarefa transitava entre essa possibilidade, mas,
principalmente na tarefa de compreender de que maneira os sujeitos ocultam, fingem,
dissimulam, subvertem, reinventam e dão outros sentidos aos acontecimentos mais
triviais ou de que maneira essas situações triviais alcançam uma dimensão valiosa
e significativa capazes de nos definir quem somos. Se por um lado essa estratégia
de substituir a verdade factual pela verdade possível revela uma compreensão sobre
da narrativa contemporânea – e, por conseguinte, o romance – em dar conta da
realidade em sua totalidade, por outro, confere uma visibilidade de que nas
sendas das possibilidades é onde talvez o que de mais interessante se esconde: as ditas
verdades factuais. Perceber isso, e mais, dar forma a isso através da palavra, não
é uma tarefa barata. É um gesto só possível de ser abarcado por uma capacidade criativa
que só mentes como Elvira Vigna são capazes de criar. E é por isso que sua obra, de agora em diante, precisa trilhar outra vida, a verdadeira vida do escritor.
Ligações a esta post:
* Este texto usa informações da Enciclopédia Itaú Cultural e do do site da Companhia das Letras
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